quinta-feira, 5 de setembro de 2019

COMPÊNDIO DE SÃO JOSÉ (XX/Final)


96. Se na atualidade a arte sacra tem contribuído para uma imagem de um São José mais bíblico, o mesmo tem feito a arte profana?

Evidentemente que a arte profana tem pouco se interessado deste campo; contudo, um dos grandes meios de penetração e de formação de opinião na sociedade, o cinema, não deixou de registrar através do filme 'Jesus de Nazaré' de Franco Zeffirelli, a importância de São José na história da encarnação de Jesus, inserindo-o na árvore genealógica de Davi, dando-lhe assim o fundamento jurídico ao seu título de Messias. Zeffirelli apresenta um José atraente e jovem com a missão de pai de Jesus e protetor de Maria, inserido dentro de uma família normal e exercendo a sua profissão de carpinteiro. Um indivíduo humanamente completo, enriquecido de uma grande religiosidade que o tornava dócil aos planos de Deus. Entretanto, se bem que o perfil humano de José apresentado no filme seja bem conduzido, todavia deixa a desejar no aspecto teológico, pois apresenta José desconhecedor do mistério da gravidez de Maria e, portanto suspeito de sua honestidade, buscando inclusive uma solução para o impasse com o conselho de um rabino. Omite também o anúncio do Anjo a José durante o sono, não evidenciando que ele era divinamente guiado. Contudo, muitos valores da pessoa e da missão de José não passaram desapercebidos. 

97. Olhando a história, percebemos que houve um crescimento na reflexão sobre a pessoa de São José. A que ponto se encontra hoje os estudos josefinos?

Na verdade, o que se tem hoje organizado em nível internacional de estudos sobre São José é fruto de uma caminhada iniciada desde 1945 quando em Barcelona, junto ao Santuário de 'San José de La Montaña', foi organizado o primeiro Congresso Josefino com o intuito de se estudar São José. Depois, em 1947, por iniciativa dos Carmelitanos Descalços de Valladolid (Espanha), iniciou-se a publicação da primeira revista de pesquisas sobre São José, denominada de 'Estudios Josefinos'. Os mesmos Carmelitanos Descalços, em 1951, criaram a 'Sociedad Ibero-Americana de Josefologia', compreendendo as nações americanas de língua espanhola e portuguesa. Esta iniciativa, liderada por Pe. José Antonio Carrasco, foi tão válida que outras semelhantes surgiram em outros países. Por isso, em 1952, foi fundado, junto ao Oratório de São José em Montreal no Canadá, o 'Centro de Pesquisa e Documentação sobre São José', que passou a publicar no ano seguinte os Cahiers de Josephologie. Tudo evoluiu e, em 1962, o Pe. Roland Gauthier, grande estudioso de São José, fundou a Sociéte Nord-Américaine de Joséphologie do Canadá.

Outra iniciativa importante na promoção da teologia e do culto a São José surgiu em 1981 em Roma denominada 'Movimento Giuseppino', por meio da Congregação dos Oblatos de São José, fundada pelo Bem-aventurado José Marello. Da mesma forma, sob a responsabilidade de Pe. Tarcisio Stramare, um dos maiores conhecedores da Teologia Josefina, surgiu também na Itália, após a publicação da exortação apostólica Redemptoris Custos, o centro de formação Josefina para sacerdotes, religiosos e leigos denominado Meeting Point Redemptoris Custos. Surgiu também o centro de estudos josefinos de Kalisz denominado Studium Jozefologii Kaliszu na Polônia. Na América Latina, os missionários Josefinos do México fundaram o 'Centro de Estudios Josefinos' na cidade do México, passando, a partir de 1983, a ser denominado 'Centro de Documentación e de Estudios sobre San José de México'. Também em El Salvador em 1985 surgiu a 'Sociedade Centro Americana de Investigación e Divulgación de San José'. Todos estes centros de estudos publicam continuamente estudos sobre São José.

98. Existe alguma iniciativa em âmbito mundial de estudos sobre São José? 

Hoje existe uma teologia de São José chamada com o termo técnico de 'Josefologia'. Os estudos da teologia de São José são publicados pelos vários centros de estudos josefológicos de diversas maneiras. Recentes pesquisas apontaram que hoje existem mais de 8000 volumes publicados e catalogados sobre São José e, somados a estes, juntam-se vários grossos volumes publicados pelas semanas de estudos josefinos promovidas anualmente e os volumosos tomos de estudos publicados a cada três anos como resultado dos Simpósios Internacionais sobre São José Na verdade, estudiosos desta matéria teológica de todas as partes do mundo reúnem-se a cada três anos, num determinado país, para estudos, conferências, debates e exames do progresso desta matéria, constituindo-se assim, por meio da organização das sociedades e centros de estudos Josefinos da Europa e da América Latina, os 'Simpósios Internacionais sobre São José'. Desde 1970 até hoje, já foram realizados sete simpósios. O primeiro foi realizado em Roma em 1970 e abordou estudos sobre 'São José nos primeiros 15 séculos da Igreja', buscando assim a origem e os princípios fundamentais da teologia josefina. O segundo Simpósio Internacional foi realizando em Toledo (Espanha) em 1976 e estudou-se 'São José no Renascimento' (1450-1600). O terceiro ocorreu em Montreal (Canadá) em 1980 desenvolvendo 50 conferências sobre 'São José no século XVII'. O quarto Simpósio foi organizado em Kalisz (Polônia) em 1985 e o tema foi: 'São José no Seiscentos'. O quinto foi celebrado na cidade do México em 1989 e foi desenvolvido o tema: 'São José no século XVIII'. O sexto simpósio ocorreu novamente em Roma em 1993, junto ao Santuário Romano de São José al Trionfale e abordou estudos sobre 'São José no século XIX'. O sétimo simpósio internacional sobre São José realizou-se em 1997 em Malta e foi enfocado o estudo sobre: 'São José no século XX'. 

Todos estes simpósios foram realizados com estudiosos de São José, abordando o caminho percorrido ao longo dos séculos quanto aos estudos josefinos, constituindo-se assim uma preciosa coletânea de material indispensável para uma teologia josefina que se pretende colocar como científica para sociedade de hoje, exigente e pouco disposta a aceitar aquilo que não é devidamente documentado e sério. Tudo isso demonstra que nosso querido santo mais do que nunca encontra-se num lugar importante no coração da Igreja e dos homens.

99. A presença de São José no Brasil foi significativa desde o seu descobrimento? 

No Brasil, desde a colonização tanto os indígenas como os africanos adotaram exteriormente os elementos do culto católico impostos pelos colonizadores, especialmente as imagens dos santos, para poderem manter sob esta fachada ortodoxa a fé dos ancestrais; desta forma, escondiam o próprio ritual secreto e defendiam o seu patrimônio cultural e religioso. Por isso, houve também uma dificuldade de se implantar desde o princípio uma devoção a São José. Conjuntamente com isso, a devoção popular católica teve a sua alta expressão em Nossa Senhora, como de resto em toda a América, marcada pela presença dos colonizadores portugueses que manifestaram uma veneração a Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora dos Prazeres, Nossa Senhora do Rosário… enquanto que o povo simples se identificou mais com Santo Antônio, São Jorge, São Cosme e Damião, São Sebastião… Entretanto isto não significa que, desde o princípio, São José não foi venerado; basta lembrar o grande número de localidades, províncias, cidades e depois, a partir do século XVIII, as igrejas, ermidas e capelas que tiveram São José como seu patrono. Salienta-se ainda que o nome José foi desde o início da colonização brasileira um dos mais populares entre as pessoas. Hoje encontramos dioceses, catedrais e cidades importantes brasileiras com o nome de São José; contudo não podemos constatar ainda de uma maneira organizada e conhecida racionalmente, um centro de irradiação e de estudos sobre São José, talvez porque este despertar para o conhecimento e a valorização do nosso santo é ainda uma iniciativa que está dando os seus primeiros passos. 

100. O Brasil, sendo um país de predominância católica e constituído por um povo de sensibilidade religiosa, não poderia promover uma iniciativa para a divulgação de São José? 

Sim e isto poderia dar-se sobretudo através das Congregações Religiosas Josefinas, tanto masculinas como femininas as quais, com maior ou menor intensidade, têm São José como protetor e modelo. Neste sentido a Congregação dos Oblatos de São José, fundada por São José Marello em 1878 em Asti (Itália) organizou e mantém o 'Centro de Espiritualidade Josefina' na cidade de Apucarana/PR, com a finalidade de se constituir um centro de irradiação da espiritualidade, da devoção, da iconografia e dos estudos de josefologia.

('100 Questões sobre a Teologia de São José', do Pe. José Antonio Bertolin, adaptado)

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

AS DUAS FACES DA FÉ

A fé tem um só nome, mas duas maneiras de ser. Há um gênero de fé que se relaciona com os ensinamentos de Cristo e inclui a elevação de uma pessoa e sua concordância sobre determinado assunto; diz respeito ao interesse pessoal, conforme o Senhor: 'Quem ouve minhas palavras e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna e não incorre em condenação' (Jo 5,24) e 'Quem crê no Filho não será julgado, mas passa da morte para a vida' (Jo 3,18.24). 

Ó bondade imensa de Deus para com os homens! Com efeito, os justos foram agradáveis a Deus pelo trabalho de muitos anos. Mas aquilo que alcançaram, entregando-se corajosamente e por muitos anos ao serviço de Deus, isto mesmo em uma simples hora, Jesus te concede. Porque se creres que Jesus Cristo é Senhor e que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo e levado ao paraíso por aquele que nele introduziu o ladrão. E não hesites em acreditar ser isto possível, pois quem salvou o ladrão neste santo Gólgota, pela fé de uma só hora, pode também salvar-te a ti, se creres. 

O outro gênero é a fé que Cristo concede por graça especial. Pois a uns pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria, a outros a palavra da ciência, segundo o mesmo Espírito. A outros a fé, no mesmo Espírito, a outros o dom de curar (1Cor 12,8-9). Este carisma da fé dado pelo Espírito não se relaciona apenas com a palavra; torna ainda capaz de realizar coisas acima das forças humanas. Quem tiver uma fé assim, dirá a este monte: 'Vai daqui para ali; e irá' (Mt 17,20). Quando, pois, pela fé, alguém disser isto, crendo que acontecerá sem hesitar em seu coração, então é sinal de que recebeu esta graça. 

Dela se disse: 'Se tivésseis fé como um grão de mostarda (Mt 17,20). Como o grão de mostarda, tão pequenino, possui uma força de fogo e que, semeado em estreito pedaço de terra, produz grandes ramos que, depois de crescidos, podem dar sombra às aves do céu, assim também, num abrir e fechar de olhos, a fé realiza as maiores coisas na pessoa. Porque lhe dá uma ideia sobre Deus e o vê tanto quanto é capaz, inundada pela luz da fé. Percorre os confins da terra; e antes da consumação do mundo, já prevê o juízo e a entrega das recompensas prometidas

Guarda, então, a fé que de ti depende e que te leva a ele para que recebas de suas mãos também aquela que age muito além das forças humanas.

(Das Catequeses de São Cirilo de Jerusalém)

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

'A sabedoria deste mundo está em esconder as maquinações do coração, velar o sentido das palavras, mostrar como o verdadeiro é falso, demonstrar ser errado aquilo que é verdadeiro. Pelo contrário, a sabedoria dos justos consiste em nada fingir por ostentação; declarar o sentido das palavras; amar as coisas verdadeiras como são; evitar as falsas; fazer o bem gratuitamente; preferir tolerar de bom grado o mal a fazê-lo; não procurar vingança contra a injúria; reputar lucro a afronta em bem da verdade. Zomba-se, porém, desta simplicidade dos justos porque para os prudentes deste mundo a virtude da pureza de coração é tida por loucura. Tudo quanto se faz com inocência, eles reputam tolice e aquilo que a verdade aprova nas ações, soa falso à sabedoria humana'.

(São Gregório Magno)

domingo, 1 de setembro de 2019

PÁGINAS COMENTADAS DOS EVANGELHOS DOS DOMINGOS

Filho, realiza teus trabalhos com mansidão e serás amado mais do que um homem generoso. Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade e assim encontrarás graça diante do Senhor (Eclo 3, 19-20)

sábado, 31 de agosto de 2019

REZAI PELAS ALMAS DO PURGATÓRIO!


'A minha vocação religiosa e sacerdotal é uma graça imensa que atribuo à minha cotidiana oração pelas Almas do Purgatório que, ainda menino, eu aprendi com minha mãe' (Beato Angelo D'Acri)

'Quando quero obter alguma graça de Deus, recorro às almas do Purgatório e sinto que sou atendida por causa de sua intercessão' (Santa Catarina de Bolonha)

'Caminhando pela rua, no tempo livre, rezo sempre pelas Almas do Purgatório. Estas santas Almas, com sua intercessão, me salvaram de muitos perigos da alma e do corpo' (São Leonardo do Porto Maurício)

'Nunca pedi graças às almas purgantes sem ser atendida; pelo contrário, aquelas que não pude obter dos espíritos celestes as obtive pela intercessão das Almas do Purgatório' (Santa Catarina de Gênova)

'Todos os dias ouço a Santa Missa pelas almas do Purgatório: a este piedoso costume eu devo tantas graças que, continuamente, recebo para mim e para meus amigos' (São Conrado Ferrini)

AS RAÍZES DOS SETE PECADOS CAPITAIS

Como ensina São Gregório Magno e, depois dele, São Tomás, os pecados capitais de vanglória ou vaidade, preguiça, inveja, ira, gula e luxúria não são os mais graves de todos, pois maiores são os de heresia, apostasia, desesperação e de ódio a Deus; mas são os primeiros a que se inclina nosso coração, levando-nos a nos afastar de Deus e a cometer outras faltas ainda mais graves.

O homem não chega à perversão absoluta de uma vez, mas pouco a pouco. Examinemos primeiro, em si mesma, a raiz dos sete pecados capitais. Todos eles se originam no amor desordenado de si mesmo ou egoísmo, que nos impede de amar a Deus sobre todas as coisas e inclina a nos apartarmos dele. É evidente que pecamos, isto é, que nos desviamos de Deus e nos afastamos dele cada vez que tendemos para um bem criado, indo contra a vontade divina.

Isto é a consequência fatal de um amor desordenado de nós mesmos, que vem a ser a fonte de todo pecado. Por conseguinte, não só é necessário moderar esse amor desordenado ou egoísmo, mas também é preciso mortificá-lo, para que o amor ordenado ocupe seu lugar. Enquanto o pecador em estado de pecado mortal se ama a si sobre todas as coisas, praticamente antepondo-se a Deus, o justo ama a Deus mais que a si e deve, além disso, amar-se em Deus e por Deus; amar seu corpo de tal maneira que sirva à alma, não lhe obstando a vida superior; amar a alma convidando-a a participar eternamente da vida divina; amar sua inteligência e vontade, de modo que participem mais e mais da luz e do amor de Deus. Este é o sentido profundo da mortificação do egoísmo, do amor e da vontade próprios, opostos à vontade de Deus.

O amor desordenado de nós mesmos leva à morte, como diz o Senhor: 'O que ama (desordenadamente) a sua vida, perdê-la-á; e quem aborrece (ou mortifica) a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna' (Jo 12, 25). Desse desordenado amor, raiz de todos os pecados, nascem as três concupiscências de que fala São João (I Jo 2, 16) quando diz: 'Porque tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, e concupiscência dos olhos, e soberba da vida; e isto não vem do Pai, mas do mundo'.

Observa Santo Tomás que os pecados carnais são mais vergonhosos que os espirituais porque nos rebaixam ao nível do animal; contudo, os espirituais, os únicos que se compartilham com o demônio, são mais graves, porque vão diretamente contra Deus e nos afastam dele. A concupiscência da carne é o desejo desordenado do que é ou parece útil à conservação do indivíduo ou da espécie e, deste amor sensual, provêm a gula e a luxúria. A concupiscência dos olhos é o desejo desordenado do que agrada a vista, o luxo, as riquezas, o dinheiro que nos proporciona os bens terrenos; dela nasce a avareza.

A soberba da vida é o desordenado amor da própria excelência e de tudo aquilo que pode ressaltá-la; quem se deixa levar pela soberba, erige-se a si em seu próprio deus, a exemplo de Lúcifer. Daí se vê a importância da humildade, que é virtude capital, tanto quanto o orgulho é fonte de todo pecado. São Gregório e Santo Tomás ensinam que a soberba é mais que um pecado capital: é a raiz da qual procedem mormente quatro pecados capitais: vaidade, preguiça espiritual, inveja e ira.

A vaidade é o amor desordenado de louvores e de honras; a preguiça espiritual se entristece pensando no trabalho requerido para santificar-se; a ira, quando não é uma indignação justificada e sim um pecado, é um movimento desordenado da alma que nos inclina a rechaçar violentamente o que nos desagrada, de onde se seguem as disputas, injúrias e vociferações. Estes pecados capitais, sobretudo a preguiça espiritual, a inveja e a ira engendram tristezas amargas que afligem a alma e são totalmente contrários à paz espiritual e ao contentamento, ambos frutos da caridade.

A prática generosa da mortificação dispõe a alma para outra purificação mais profunda que Deus mesmo realiza, com o fim de destruir completamente os germes de morte que ainda subsistam em nossa sensibilidade e faculdades superiores. Mas não basta considerar as raízes dos sete pecados capitais; é preciso analisar suas consequências. Como consequências do pecado, se entendem geralmente as más inclinações que os pecados deixam em nosso temperamento, mesmo depois de apagados pela absolvição. Entretanto, também pode entender-se como consequências dos pecados capitais os demais pecados que têm sua origem neles.

Os pecados capitais assim se chamam porque são um como princípio de muitos outros; temos, em primeiro, inclinação para eles e depois, por meio deles, para outras faltas às vezes mais graves. É dessa forma que a vanglória gera desobediência, jactância, hipocrisia, disputas, discórdia, afã de novidades, pertinácia. A preguiça espiritual conduz ao desgosto das coisas espirituais e do trabalho de santificação, em razão do esforço que exige, engendrando a malícia, o rancor ou a amargura contra o próximo, a pusilanimidade ante o dever, o desalento, a cegueira espiritual, o esquecimento dos preceitos, a busca do proibido.

Igualmente, a inveja ou desagrado voluntário do bem alheio, bem que temos como mal nosso, engendra o ódio, a maledicência, a calúnia, a alegria do mal alheio e a tristeza por seus triunfos. Por sua vez, a gula e a sensualidade geram outros vícios e podem conduzir à cegueira espiritual, ao endurecimento do coração, ao apego à vida presente até à perda da esperança da vida eterna, ao amor de si mesmo até ao ódio de Deus e à impenitência final.

Frequentemente, os pecados capitais são mortais. Podem existir de uma maneira muito vulgar e baixa, como em muitas almas em pecado mortal, ou bem podem também existir, nota São João da Cruz, em uma alma em estado de graça, como outros tantos desvios da vida espiritual. Por isso se fala às vezes da soberba espiritual, da gula espiritual, da sensualidade e da preguiça espiritual.

A soberba espiritual inclina, por exemplo, a fugir daqueles que nos dirigem reprimendas, ainda quando tenham autoridade para isso e no-las dirijam justamente; também pode levar-nos a guardar-lhes certo rancor em nosso coração. Quanto à gula espiritual, poderia fazer-nos desejar consolos sensíveis na piedade, até o ponto de buscarmos nela mais a nós mesmos que a Deus. É o orgulho espiritual a origem do falso misticismo.

Felizmente, diferentemente das virtudes, estes vícios não são conexos, ou seja, pode-se possuir uns sem os outros, e muitos são até contrários entre si: assim, não é possível ser avarento e pródigo ao mesmo tempo.  A enumeração de todos estes tristes frutos do exagerado amor de si deve levar-nos a um sério exame de consciência e nos ensina, ademais, que o terreno da mortificação é muito extenso, se quisermos viver uma vida cristã profunda.

O exame de consciência, longe de apartar-nos do pensamento de Deus, aponta-nos para ele. Deve-se inclusive pedir-lhe luz para enxergar um pouco a alma como o próprio Deus a vê, para enxergar o dia ou a semana que passaram como se os víssemos escritos no livro da vida, à maneira de como os veremos no dia do Juízo Final. Por isto temos de repassar cada noite, com humildade e contrição, as faltas cometidas de pensamento, palavra, ação e omissão.

No exame, deve-se evitar a minuciosa investigação das menores faltas, tomadas em sua materialidade, pois semelhante esforço poderia fazer-nos cair em escrúpulos e esquecer coisas mais importantes. Trata-se menos de uma completa enumeração das faltas veniais que da investigação e acusação sinceras do princípio de onde geralmente procedem. A alma não deve se deter em demasia na consideração de si mesma, deixando de olhar para Deus. Pelo contrário há de se perguntar, tendo os olhos fitos em Deus: como julgará Deus este dia ou semana que agora termina? Foi este dia meu ou de Deus? Busquei a Deus ou a mim mesmo?

Desse modo, sem turbação, a alma julgar-se-á desde um plano elevado, à luz dos preceitos divinos, tal como se julgará no último dia. Mas, como diz Santa Catarina de Sena, não separemos a consideração de nossas faltas do pensamento da infinita misericórdia. Olhemos nossa fragilidade e miséria ao lume da infinita bondade de Deus que nos alevanta. O exame, feito deste modo, longe de desalentar-nos, aumentará nossa confiança em Deus.

Por contraste, a visão de nossos pecados nos esclarece o valor da virtude. O que melhor nos revela o valor da justiça é a dor que a injustiça produz. A imagem da injustiça que cometemos e o pesar de tê-la cometido devem nos despertar a 'fome e sede de justiça'. Por contraste, é necessário: que a fealdade da sensualidade nos revele a beleza da pureza; que a desordem da ira e da inveja nos faça compreender o alto valor da mansidão e da caridade e que as aberrações da soberba nos ilustrem acerca da elevada sabedoria da humildade.

Peçamos a Deus inspirar-nos um santo aborrecimento do pecado, que nos separa da divina bondade, da qual tantos benefícios recebemos e esperamos para o porvir. Esse santo ódio do pecado não é, de certa forma, senão o outro lado do amor de Deus. É impossível amar profundamente a verdade sem detestar a mentira, amar de coração ao bem, e o soberano Bem que é Deus, sem que por sua vez detestemos o que nos separa de Deus.

A maneira de evitar a soberba é pensar com frequência nas humilhações do Salvador e pedir a Deus a virtude da humildade. Para reprimir a inveja, temos de rogar pelo próximo, desejando-lhe o mesmo bem que para nós desejamos. Aprendamos igualmente a reprimir os movimentos da ira, afastando-nos dos objetos que a provocam, trabalhando e falando com doçura. Esta mortificação é absolutamente indispensável.

Pensemos que temos que salvar nossa alma e que ao nosso redor há muito bem a se fazer, sobretudo na ordem espiritual. Não esqueçamos que devemos trabalhar pelo bem eterno dos demais e empregar, para consegui-lo, os meios que o Salvador nos ensinou: a morte progressiva do pecado, mediante o progresso nas virtudes e, principalmente, no amor de Deus.

(Excertos da obra 'As três idades da vida interior', do Pe. Garrigou-Lagrange)