quinta-feira, 17 de novembro de 2016

OS SOFRIMENTOS DO PURGATÓRIO (I)


1º sofrimento — Pena dos sentidos


Ó meus caros mortos, se para meu coração toda a pena fosse a da separação, seria cruel, por certo; mas o pensamento de comunicar convosco pela oração, e ainda mais a ideia de vos tornar a ver no Céu, e de vos tornar a ver mais santos e mais amantes, aliviaria esta dor; mas, ah! este mesmo pensamento que me dá a es­perança de vos tornar a ver, leva-me a contemplar-vos nas chamas do Purgatório, sofrendo e consternados.

Não escutarei a imaginação, que poderia levar-me além da realidade; quero ouvir os santos, e o que me dizem eles acerca do que vós sofreis, é bastante para excitar a minha compaixão, e obrigar-me a so­correr-vos. 'Reuni', diz Santa Catarina de Gênova, 'todas as penas que os homens têm sofri­do, sofrem e sofrerão, desde o principio do mundo até o fim dos tempos; juntai todos os tormentos que os tiranos e os algozes têm feito sofrer aos mártires; será uma pálida imagem dos tormentos do Purgatório; e, se aos pobres encarcerados fosse permitida a escolha, prefeririam aqueles suplícios durante mil anos a fica­rem no Purgatório mais um dia; porque, diz São Tomás, 'o fogo que os envolve é o mesmo que atormenta os condenados no inferno, e esse fogo é terrível!'

Deus, escolhendo o fogo, soube achar um reparador digno de sua justiça! Não há dor, dizem os que têm estudado a natureza desse elemento, que iguale a que ele causa. Não objeteis que o corpo não está no Purgatório: a dor, diz São Tomás, não é o golpe que se recebe, mas a sensação dolorosa desse golpe. Quanto mais delicadeza há nessa sensação, mais viva é a dor, e a alma, ainda sendo ferida, ela so­zinha experimenta ao mesmo tempo a aflição que lhe fariam sofrer todos os membros do corpo atacados separada­mente.

Esse fogo do Purgatório, cuja natureza não conhecemos, dotado por Deus de uma espécie de inteligência para esmerilhar os recessos da alma e consumir todas as manchas que lhe deixou o pecado, obra ao mesmo tempo sobre a imaginação e a memória, sobre o juízo e a vontade. Não aprofundemos mais este ponto; po­rém, fixando a atenção, escutemos o grito pungente que, do fundo desse abismo de fogo, vem até nós: 'Eu sofro, sofro muito no meio destas chamas: uma gota d’água! uma prece, por piedade!'

(Excertos da obra 'Mês das Almas do Purgatório', do Monsenhor José Basílio Pereira, 1943)


Oração pelas Almas do Purgatório

Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Senhor, preparai e fortalecei nossos corações com a abundância de vossa graça, a fim de que, penetrando, em espírito de fé, caridade e compaixão, nas tristes prisões do Purgatório, possamos levar aos fieis que nele sofrem os tesouros de su­frágios que dão alívio aos seus padecimentos, glória à vossa divina Majestade, con­solação e paz às nossas almas.

V. Vinde, Senhor, em meu auxílio.
R. Deus, acudi em meu socorro.
V. Dai às almas o repouso, Senhor.
R. E da luz eterna o esplendor.
V. Descansem em paz.
R. Amém.

Ó Jesus, abandonado de todos e até de vossos apóstolos no Jardim de Getsêmani, dignai-vos lançar os olhos de misericórdia sobre as almas do Purgatório, em particular sobre as que não recebem orações nem consolações e que, pelo decurso do tempo ou efeito de irreligiosidade e negligência, estão esquecidas; fazei que participem das orações, santos sacrifícios, boas obras, cujo mérito não pôde ser aplicado àqueles por quem a Igreja os oferta. Ah! Senhor, não terei eu abandonado, em um criminoso esquecimento, almas que tenham jus ao meu reconhecimento, sejam de parentes, de amigos ou de benfeitores? 

Quero de ora em diante reparar tão grande ingratidão. Se conhecesse algum meio eficaz, por mais penoso que me fosse, empregá-lo-ia para aliviar essas pobres almas sem proteção no meio de um oceano de sofrimentos. Entretanto, eu me proponho fazer todos os sacrifícios que puder, e todo bem que fizer ofereço-vos à vossa glória pelas almas do Purgatório. Em consideração de nossa fé e esperança em vós, em consideração, principalmente, da agonia mortal e cruel abandono que sofrestes: dignai-vos, ó Jesus, remir-lhes as penas que ainda têm de sofrer, a fim de que pos­sam ter livre entrada no reino eterno a que aspiram e onde celebrarão a grandeza ine­fável de um Deus que não desampara ninguém. Amém.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

PIO X E A SANTA COMUNHÃO

O papa São Pio X é reconhecido como o papa da Eucaristia, da codificação do direito canônico, da condenação ao modernismo e da restauração da música sacra. Todas estas honras são preciosas para descrever o seu glorioso pontificado na Igreja. Muitos outros predicados, entretanto, igualmente gloriosos, muitas vezes são pouco enfatizados.

Um deles era o cuidado extremado do papa com a manifestação do sagrado aos pequeninos, o que defendia ser necessário estabelecer desde a mais tenra idade. Há muito o jansenismo deixara como realidade um conceito demasiado severo de Deus e a imposição de preocupações exageradas para a comunhão das crianças, o que não era permitida antes dos 12 anos ou até mais em muitos lugares. 

Pio X estabeleceu a idade de 7 anos para se fazer a primeira comunhão e, assim, criar nos mais pequeninos, desde muito cedo, a devoção a Jesus Sacramentado. Para ele, bastava como base religiosa para receber o sacramento, que os pequeninos fossem capazes de saber as verdades fundamentais da fé cristã e ter clareza de distinção entre a ceia eucarística e a alimentação com o pão comum.


Um fato concreto ilustra bem estes cuidados extremados. Certa ocasião, uma senhora apresentou ao Santo Padre o seu pequeno filho, para receber dele uma bênção especial e este a interpelou:

- 'Quantos anos ele tem?'
- 'Quatro, santidade, e espero que em breve ele possa receber a comunhão'.

Pio X dirigiu-se, então, paternalmente à criança:

- 'Quem você recebe na comunhão?' 
- 'A Jesus Cristo'.
- 'E quem é Jesus Cristo?
- 'É Deus', respondeu o pequeno sem hesitar.

Virando-se para a mãe da criança, deliberou:

-'Traga-o aqui amanhã e eu mesmo lhe darei a comunhão'.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

COROA EM HONRA ÀS CHAGAS DE JESUS


Primeira Chaga: Chaga da Mão Direita de Jesus


Senhor Jesus Cristo, nós Vos amamos, honramos, adoramos, damos louvores e graças pela Chaga da vossa Mão Direita, pela dor e pelo Sangue que dela jorrou.


Santíssima Chaga da mão direita do meu Jesus, adoro-vos. Dói-me, bom Jesus, ver-Vos sofrer tão dolorosa pena. Dou-Vos graças, ó Jesus da minha vida, por me terdes cumulado de benefícios, apesar da minha obstinação no pecado. Ofereço ao Eterno Pai o sofrimento e o amor da Vossa santíssima humanidade e suplico que me ajudeis a fazer tudo para maior honra e glória de Deus.


Segunda Chaga: Chaga da Mão Esquerda de Jesus

Senhor Jesus Cristo, nós Vos amamos, honramos, adoramos, damos louvores e graças pela Chaga da vossa Mão Esquerda, pela dor e pelo Sangue que dela jorrou.

Santíssima Chaga da mão esquerda do meu Jesus, adoro-vos. Dói-me, bom Jesus, ver-Vos sofrer tão dolorosa pena. Dou-Vos graças, ó Jesus da minha vida, porque por Vosso amor me livrastes de sofrer a flagelação e a eterna condenação merecida por causa dos meus pecados. Ofereço ao Eterno Pai o sofrimento e o amor da Vossa santíssima humanidade e suplico ajuda para que faça bom uso das minhas forças e da minha vida, para produzir frutos dignos da glória e vida eterna, e assim aliviar a justa ira de Deus.

Terceira Chaga: Chaga do Pé Direito de Jesus

Senhor Jesus Cristo, nós Vos amamos, honramos, adoramos, damos louvores e graças pela Chaga do vosso Pé Direito, pela dor e pelo Sangue que dela jorrou.

Santíssima Chaga do pé direito do meu Jesus, adoro-vos, Dói-me, bom Jesus, ver-Vos sofrer tão dolorosa pena. Dou-Vos graças, ó Jesus da minha vida, por aquele amor que sofreu dores tão atrozes, derramando sangue para castigar os meus desejos pecaminosos e a procura dos prazeres. Ofereço ao Eterno Pai o sofrimento e o amor da Vossa santíssima humanidade, e peço a graça de poder lastimar as minhas transgressões e de perseverar no caminho do bem, cumprindo fielmente os mandamentos de Deus.

Quarta Chaga: Chaga do Pé Esquerdo de Jesus

Senhor Jesus Cristo, nós Vos amamos, honramos, adoramos, damos louvores e graças pela Chaga do vosso Pé Esquerdo, pela dor e pelo Sangue que dela jorrou.

Santíssima Chaga do pé esquerdo do meu Jesus, adoro-vos. Dói-me, bom Jesus, ver-Vos sofrer tão dolorosa pena. Dou-Vos graças, ó Jesus da minha alma, por terdes sofrido dores tão atrozes para me deter na minha corrida para o precipício, sofrendo Vós por causa dos pungentes espinhos dos meus pecados. Ofereço ao Eterno Pai o sofrimento e o amor da Vossa santíssima humanidade para me ressarcir dos meus pecados, que detesto com sincera contrição.

Quinta Chaga: Chaga do Coração de Jesus

Senhor Jesus Cristo, nós Vos amamos, honramos, adoramos, damos louvores e graças pela Chaga do Vosso Sagrado Coração, pelo Sangue e Água que dela jorraram, e nesta chaga escondemos as nossas almas. Amém.

Santíssima Chaga do sagrado lado do meu Jesus, adoro-vos. Dói-me, bom Jesus, ver-Vos sofrer tão grande injúria. Dou-Vos graças, bom Jesus, pelo amor que me tendes, ao permitirdes que uma lança introduzida no Vosso corpo fizesse derramar a última gota de sangue, para me redimir. Ofereço ao Eterno Pai esta afronta e o amor da Vossa santíssima humanidade, para que a minha alma possa encontrar no Vosso Coração trespassado um refúgio seguro. Amém.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

PALAVRAS DE SALVAÇÃO


'É uma lástima ver como a grande maioria das pessoas reza o Rosário. Rezam-no com uma precipitação tremenda, engolindo inclusive parte das palavras. Ninguém aceitaria receber homenagem de uma maneira tão ridícula, nem mesmo o último dos homens. Entretanto, cremos que, desta forma, damos honras e louvores a Jesus e a Maria... Não seria natural, portanto, compreender porque mesmo as mais sagradas orações cristãs não produzam quase nenhum fruto e que, mesmo depois de tantos e tantos Rosários rezados, não nos tornamos mais santos?' (São Luís Maria de Montfort)

O ANJO QUE APAGAVA OS PECADOS

Conta-se que, certa vez, São João Clímaco, superior do Mosteiro do Monte Sinai no século VII, recebeu em confissão um homem profundamente perturbado pelos seus muitos pecados e ansioso por uma conversão definitiva.

'Padre, sou um grande pecador, mas Deus tocou-me o coração. Venho arrependido pedir perdão e fazer penitência neste mosteiro. Quero que os exemplos de tantos santos que vivem aqui me ajudem a me tornar santo também. Padre, aceita-me aqui como mais um dos seus servos!'

'Meu filho' - respondeu o santo - 'bendito seja Deus que te abriu os olhos para conheceres a gravidade das tuas culpas. Entra neste santo abrigo e procura com a oração e a penitência reparar os teus muitos erros cometidos'. 

'Padre' - insistiu o pecador arrependido - 'Deus lhe pague tanta caridade. Mas vou lhe pedir um pouco mais; concede-me agora a permissão especial de tornar pública a minha confissão, de modo que, confessando todos os meus pecados diante destes piedosos monges, eles possam ter compaixão de mim e, assim, todos possam rezar pela minha completa conversão'.

São João Clímaco julgou conveniente satisfazer os desejos daquele homem arrependido e fez reunir todos os frades na sala do convento para o ouvirem em confissão. Ajoelhado no meio da sala, o homem começou a declarar publicamente os seus muitos pecados. Todos os presentes, em profundo silêncio e recolhimento, ouviam a confissão.

Um velho frade, entretanto, mantinha os olhos concentrados no altar, tão apreensivo que parecia estar sendo testemunha de alguma visão. Num certo momento, reclinou-se quase até o chão em um ato que parecia revelar profunda reverência e oração. São João Clímaco observava toda a cena com vívido interesse e atenção, tendo percepção voltada principalmente para o homem em confissão e para o velho frade.

Terminada a confissão pública, o homem lhe perguntou: 'Padre, estou realmente perdoado de todos os meus pecados que possa merecer ser um servo a mais neste mosteiro? Será que Deus teria tanta piedade em favor de um pecador tão miserável?'

'Meu filho, o nome de Deus é Misericórdia!  Jesus veio ao mundo, como Ele próprio disse, 'não para condenar, mas para salvar o mundo' (Jo 3, 16). Você agora é um de nós e Deus acaba de envolvê-lo em seus braços e já não tem memória de nenhum dos seus pecados. Crê nisso?'

'Eu creio, Padre, eu creio firmemente nisso e que a salvação me encontrou neste santo dia. E que Deus me console na sua paz todos os dias da minha vida!'

O superior do mosteiro despediu-se do homem convertido e chamou reservadamente, então, o velho frade e lhe sondou o motivo do seu estranho comportamento durante o ato da confissão pública - 'Meu bom frade, percebi a sua atenção concentrada no altar, durante a confissão pública deste pecador arrependido. Por acaso, o Senhor Deus lhe favoreceu com alguma visão particular?'

'Sim, meu Padre' - respondeu o velho frade ainda claramente emocionado - 'para corrigir o meu coração mau e ainda insincero. Quando o senhor nos chamou para a confissão desse homem, aqui vim contrariado por interromper meus afazeres no jardim do mosteiro e para ter que ouvir o que eu pensei ser nada mais que uma cantilena de desvarios e pecados que eu não precisava ouvir. Mas o Bom Deus cuida de todos os seus filhos e olhou por este nosso irmão e pela minha pobreza espiritual  também. E, com certeza absoluta, nos curou a ambos'.

E continuou: 'Eu vi um anjo sobre o altar com um grande livro nas mãos e, à medida que o homem fazia a sua confissão pública, o anjo sorria e passava a sua mão sobre as páginas do livro, apagando os registros de todos os pecados. Ao final da confissão, ele me fez ver que todas as páginas do livro agora estavam em branco, tal como agora estava limpa e sã a alma daquele homem. E, com toda a certeza, também a minha'.

domingo, 13 de novembro de 2016

A IGREJA DO FIM DOS TEMPOS

Páginas do Evangelho - Trigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum 


Eis um dia singular daqueles tempos ditosos em que Cristo andou pela terra dos homens: Jesus, os apóstolos e outras tantas pessoas caminhavam juntos, sob a vista esplêndida do Templo de Jerusalém que, erigido por Salomão como obra prima das grandes realizações humanas, era então o centro de peregrinação religiosa de todo o povo judeu. Mesmo abundantes na graça, alguns daqueles eram ainda homens de pouca fé: admiravam o templo físico portentoso da criatura, mas não percebiam o Templo de Deus vivo diante deles no caminho poeirento ao Monte das Oliveiras.

Jesus, ciente desse naturalismo extremo, vai confundi-los: 'Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído' (Lc 21,6). Menos de quarenta anos depois, a terrível profecia de Jesus seria concretizada por completo. Mas aquelas pessoas, mesmo sob evidências tão claras, pensaram em termos dos fins dos tempos e Jesus, então, vai respondê-los, associando o acontecimento da destruição do Templo tão próxima com a consumação dos séculos, em tempos bem mais remotos: 'Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu!’ e ainda: ‘O tempo está próximo’. Não sigais essa gente! Quando ouvirdes falar de guerras e revoluções, não fiqueis apavorados. É preciso que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim' (Lc 8-9).

E Jesus val lhes falar não apenas dos sinais das guerras e das revoluções, mas também dos terremotos, das pestes, da fome, dos escândalos, de eventos extraordinários no céu. Mas todos estes serão apenas sinais precursores. Antes da grande tribulação, a Igreja e os filhos da Igreja serão caluniados, perseguidos e mortos: estes são os grandes sinais dos tempos do fim. A era das perseguições também deve ser a era dos mártires, a era das testemunhas fieis, dos herdeiros da graça, dos soldados de Cristo revestidos da armadura espiritual de São Paulo: 'Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé' (2 Tm 4,7).

Mas a Divina Providência vai interceder em favor do 'pequeno resto' porque, os perseverantes na fé e fieis a Cristo, que foram odiados por causa do Seu nome, não perderão 'um só fio de cabelo da cabeça' (Lc 21, 18) pois Jesus assim o prometeu: 'É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!' (Lc 21, 19). A Igreja caluniada e perseguida, traída pelos seus próprios filhos, porque, muitas vezes, 'Sereis entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos' (Lc 21, 16), renascerá triunfante no embate final, pois nasceu de Cristo e, em Cristo, nasceu para a eternidade.

sábado, 12 de novembro de 2016

QUESTÕES SOBRE AS TENTAÇÕES E O PECADO (II)


Questão 21: O Demônio não sabe que Deus é impecável?

Sabe perfeitamente, tão bem como o mais sábio dos teólogos, não tendo a menor dúvida disso. Entretanto, quando o Demônio tentou a Deus feito homem, queria convencera si mesmo que talvez Deus não era tão bom como ele acreditava. Quem sabe Deus pudesse ser débil, quem sabe não haveria um calcanhar de Aquiles na divindade que ele desconhecia? Se tornasse possível a perda de alguma coisa na Perfeição, esta se desmoronaria. Induzir a Deus pecar parecia impossível, mas ele tinha que tentar.

Se conseguisse corromper a Deus, o demônio não seria mais um pecador porque o o bem e o mal não existiriam então. Bastaria um e somente um pecado venial da Santíssima Trindade para que a linha divisória entre o bem do mal se desfizesse para sempre e, assim, se pudesse afirmar que, na realidade, nunca havia existido. Isto porque é a santidade de Deus que garante esta divisão. Se Deus pecasse, ainda que uma única vez durante toda a eternidade, Deus já não seria Deus. Não haveria mais garantia alguma nesta distinção, nem garantia, nem fundamento. A própria inteligência do Demônio lhe dizia que tal proposição era impossível, mas seu desejo o levou a deformar seus próprios pensamentos; tinha que tentar o impossível.

Questão 22: É possível fazer a distinção entre as tentações que procedem de nós mesmos daquelas dos demônios? 

As tentações que procedem dos demônios não se distinguem em nada daquelas dos nossos próprios pensamentos, já que o demônio tenta nos induzir [as chamadas] espécies inteligíveis. Ou seja, o demônio introduz em nossa inteligência, memória e imaginação, objetos apropriados ao nosso entendimento que em nada se distinguem de nossos pensamentos. Uma espécie inteligível é justamente isso; algo que existe em nosso pensamento quando exercitamos a faculdade de pensar. Pode ser a imagem de uma árvore, resolver uma questão matemática, desenvolver um raciocínio lógico, elaborar uma frase; todas essas coisas são espécies inteligíveis.  Nós as produzimos no interior de nosso espírito racional, mas um anjo pode também produzi-las e nos comunicá-las silenciosamente.

Nós, os seres humanos, comunicamos nossas espécies inteligíveis sobretudo por meio da linguagem, ainda que o possamos fazer também, por exemplo, através da pintura ou da música. Fazemos isso, porém, sempre através de meios externos, ao passo que os anjos podem transmitir estas espécies inteligíveis sem necessidade de meio algum. Por isso, não há maneira de distinguir o que vem do nosso próprio interior, de um anjo ou demônio ou diretamente de Deus. No entanto, as pessoas que passam muitos anos vivendo de forma intensa a sua vida espiritual, em contínuo espírito de oração, nos alertam que existem tentações que surgem com uma intensidade bastante surpreendente sem que se tenha qualquer razão plausível e que, além disso, podem se manifestar com uma persistência estranhíssima.

Para dar um exemplo: é claro que a leitura de um livro contra a fé produz tentações contra a fé mas, se essa tentação aparece de pronto, muito intensa e persistindo por muitas semanas, isso pode ser sinal de que se trata de uma tentação demoníaca. Mas nem mesmo assim podemos estar seguros disso. Como regra geral, poderíamos dizer que as tentações sem causa aparente, muito intensas e persistentes, podem ser suspeitadas como tendo origem demoníaca. Mas, com estas características tão vagas, nunca podemos estar seguros cem por cento. Aos sacerdotes, nos buscam às vezes pessoas de profunda vida de oração e que, não possuindo quaisquer problemas psicológicos, subitamente se defrontam com pensamentos de blasfemar contra Deus, calcar crucifixos ou coisas parecidas.

Se tais perturbações são recorrentes, é razoável pensar que têm origem em distúrbios psíquicos. Uma vez, porém, que se tratem de manifestações repentinas em pessoas mentalmente sadias, há que se ter razões para se suspeitar de que sejam tentações diabólicas. O psiquiatra que tiver lido esta explicação, decerto poderá pensar que se tratam de processos de ação - reação. A estes psiquiatras, queremos dizer que conhecemos perfeitamente esses mecanismos do subconsciente, mas também queremos lhes lembrar que o demônio existe. E isto torna-se mais claro quando essa tentação obsessiva desaparece por completo num belo dia, sem voltar a aparecer. As tentações demoníacas nunca são recorrentes e, por mais veementes que sejam, quando desaparecem não deixam na pessoa afetada nem a mais leve sequela psicológica. 

Questão 23: O que fazer diante da tentação? 

Rejeitá-la prontamente. A tentação nada nos pode fazer se a rejeitarmos; se não dialogarmos com ela, ela torna-se inócua. Porque, desde o momento em que dialogamos com ela, desde o momento em que ponderamos os prós e contras do que ela nos oferece, desde o momento em que levamos em consideração o que ela nos propõe, desde esse mesmo instante, nossa fortaleza é quebrantada e nossa resistência se debilita. Uma vez iniciado o diálogo [com a tentação], necessitaremos de muito mais força de vontade para rechaçá-la. Outra coisa que observamos, nós, os confessores, é que alguns penitentes muito devotos ficam realmente muito agoniados às vezes diante de certos pensamentos que os afligem como tentações para cometer graves pecados.  Estas pessoas muito devotas e religiosas não sabem explicar como têm estes pensamentos e se sentem muito culpadas por isso, culpadas e impotentes.

Tendo entendido o que constitui uma espécie inteligível induzida por um demônio, pode-se compreender que a melhor maneira de enfrentar a tentação é ignorá-la, fazendo-se justamente o oposto do que ela nos propõe a fazer, e rezar. Desesperar-se não resolve nada. Se não nos desesperamos, quem se desespera é o demônio. O demônio pode nos induzir pensamentos, imagens ou lembranças, mas não pode se imiscuir em nossa vontade. Podemos ser tentados, mas, ao final, fazemos apenas o que queremos. Nem mesmo todos os poderes do inferno podem forçar alguém a cometer ainda que seja o menor dos pecados. 

Questão 24: O demônio pode usar alguma estratégia para nos tentar? 

O demônio é um ser inteligente, não é uma força ou uma energia. Portanto, há que se entender que a tentação induz ser um diálogo. Um diálogo entre a pessoa que a resiste e o tentador. Somente se a pessoa resiste em considerar a tentação é que esta passa a se simplesmente uma insistência por parte do demônio, sem resposta de nossa parte. Mas o demônio pode ficar ao nosso lado durante muito tempo e analisar-nos, conhecer-nos e tentar-nos justamente através dos nossos pontos mais fracos. O demônio pode ser extraordinariamente pragmático. Ou seja: sabe quais são as suas possibilidades de sucesso e pode nos tentar exatamente naquilo que sabe que tem alguma possibilidade [de sucesso].

Assim, se percebe que uma pessoa não vai cair em pecado grave, pode tentar que cometa um pecado menor. Se prevê que nem isso vai conseguir, pode tentá-la a cometer pelo menos uma imperfeição, ainda que esta não seja nem pecado. E, neste domínio das imperfeições, tentará aquilo que seja possível. Por exemplo, sabe que tentar um asceta com a gula pode ser pura perda de tempo, mas sabe que pode ter possibilidade de sucesso ao tentá-lo a se exceder no jejum. E se percebe que nisso obtém êxito, irá tentá-lo a exceder-se justamente no modo que mais favoreça a sua soberba ou no modo que lhe seja mais nocivo à saúde, etc.

Outro exemplo: se tem ciência que não tem sentido fazer uma monja abandonar suas orações, pode tentá-la a prolongar o tempo das orações em prejuízo de outros trabalhos que ela teria obrigação de fazer. Em outras ocasiões, o demônio pode perceber que, mais que tentar uma pessoa a pecar, pode ser mais realista fazer com que ela passe a julgar que não precisaria mais seguir os conselhos de seu confessor, avaliado como sendo um homem menos espiritualizado que ela mesma. O demônio não tenta ao acaso, mas analisa e centra seus esforços naquilo que tem possibilidades de sucesso. E normalmente ele obtém algum êxito justamente onde o homem virtuoso acredita que ele possa ter menos chances.

Foram dados exemplos de tentações movidas a homens de oração e ascéticos porque o homem entregue ao vício é um homem sem proteção, sem a proteção das virtudes. Sem estas armaduras, todo o seu espírito apresenta vários flancos desguarnecidos, expostos à ação das tentações. Se Deus não protegesse essas almas, qualquer uma delas seria como palha ao fogo de suas próprias paixões, avivado pela ação dos demônios. Por isso, pedimos, ao rezar o Pai-Nosso, livrar-nos do mal. Isso demonstra que, mesmo dispondo da liberdade para resistir, convém que roguemos ao Criador para que nos proteja. Por isso, o Senhor nos dispôs o Anjo de Guarda para que as inspirações malignas sejam compensadas pelas boas inspirações. Por outro lado, se alguém que é tentado começa a rezar, a tentação desaparece, pois a tentação é incompatível com a oração. A oração estabelece inicialmente uma barreira contra a tentação, pois nossa vontade e nossa inteligência estão concentradas em Deus. Ao insistirmos um pouco mais [na oração], o demônio não pode resistir mais e foge.

(Excertos da obra 'Summa Daemoniaca', do Pe. Jose Antonio Fortea, tradução do autor do blog)