domingo, 13 de novembro de 2016

A IGREJA DO FIM DOS TEMPOS

Páginas do Evangelho - Trigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum 


Eis um dia singular daqueles tempos ditosos em que Cristo andou pela terra dos homens: Jesus, os apóstolos e outras tantas pessoas caminhavam juntos, sob a vista esplêndida do Templo de Jerusalém que, erigido por Salomão como obra prima das grandes realizações humanas, era então o centro de peregrinação religiosa de todo o povo judeu. Mesmo abundantes na graça, alguns daqueles eram ainda homens de pouca fé: admiravam o templo físico portentoso da criatura, mas não percebiam o Templo de Deus vivo diante deles no caminho poeirento ao Monte das Oliveiras.

Jesus, ciente desse naturalismo extremo, vai confundi-los: 'Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído' (Lc 21,6). Menos de quarenta anos depois, a terrível profecia de Jesus seria concretizada por completo. Mas aquelas pessoas, mesmo sob evidências tão claras, pensaram em termos dos fins dos tempos e Jesus, então, vai respondê-los, associando o acontecimento da destruição do Templo tão próxima com a consumação dos séculos, em tempos bem mais remotos: 'Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu!’ e ainda: ‘O tempo está próximo’. Não sigais essa gente! Quando ouvirdes falar de guerras e revoluções, não fiqueis apavorados. É preciso que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim' (Lc 8-9).

E Jesus val lhes falar não apenas dos sinais das guerras e das revoluções, mas também dos terremotos, das pestes, da fome, dos escândalos, de eventos extraordinários no céu. Mas todos estes serão apenas sinais precursores. Antes da grande tribulação, a Igreja e os filhos da Igreja serão caluniados, perseguidos e mortos: estes são os grandes sinais dos tempos do fim. A era das perseguições também deve ser a era dos mártires, a era das testemunhas fieis, dos herdeiros da graça, dos soldados de Cristo revestidos da armadura espiritual de São Paulo: 'Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé' (2 Tm 4,7).

Mas a Divina Providência vai interceder em favor do 'pequeno resto' porque, os perseverantes na fé e fieis a Cristo, que foram odiados por causa do Seu nome, não perderão 'um só fio de cabelo da cabeça' (Lc 21, 18) pois Jesus assim o prometeu: 'É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!' (Lc 21, 19). A Igreja caluniada e perseguida, traída pelos seus próprios filhos, porque, muitas vezes, 'Sereis entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos' (Lc 21, 16), renascerá triunfante no embate final, pois nasceu de Cristo e, em Cristo, nasceu para a eternidade.

sábado, 12 de novembro de 2016

QUESTÕES SOBRE AS TENTAÇÕES E O PECADO (II)


Questão 21: O Demônio não sabe que Deus é impecável?

Sabe perfeitamente, tão bem como o mais sábio dos teólogos, não tendo a menor dúvida disso. Entretanto, quando o Demônio tentou a Deus feito homem, queria convencera si mesmo que talvez Deus não era tão bom como ele acreditava. Quem sabe Deus pudesse ser débil, quem sabe não haveria um calcanhar de Aquiles na divindade que ele desconhecia? Se tornasse possível a perda de alguma coisa na Perfeição, esta se desmoronaria. Induzir a Deus pecar parecia impossível, mas ele tinha que tentar.

Se conseguisse corromper a Deus, o demônio não seria mais um pecador porque o o bem e o mal não existiriam então. Bastaria um e somente um pecado venial da Santíssima Trindade para que a linha divisória entre o bem do mal se desfizesse para sempre e, assim, se pudesse afirmar que, na realidade, nunca havia existido. Isto porque é a santidade de Deus que garante esta divisão. Se Deus pecasse, ainda que uma única vez durante toda a eternidade, Deus já não seria Deus. Não haveria mais garantia alguma nesta distinção, nem garantia, nem fundamento. A própria inteligência do Demônio lhe dizia que tal proposição era impossível, mas seu desejo o levou a deformar seus próprios pensamentos; tinha que tentar o impossível.

Questão 22: É possível fazer a distinção entre as tentações que procedem de nós mesmos daquelas dos demônios? 

As tentações que procedem dos demônios não se distinguem em nada daquelas dos nossos próprios pensamentos, já que o demônio tenta nos induzir [as chamadas] espécies inteligíveis. Ou seja, o demônio introduz em nossa inteligência, memória e imaginação, objetos apropriados ao nosso entendimento que em nada se distinguem de nossos pensamentos. Uma espécie inteligível é justamente isso; algo que existe em nosso pensamento quando exercitamos a faculdade de pensar. Pode ser a imagem de uma árvore, resolver uma questão matemática, desenvolver um raciocínio lógico, elaborar uma frase; todas essas coisas são espécies inteligíveis.  Nós as produzimos no interior de nosso espírito racional, mas um anjo pode também produzi-las e nos comunicá-las silenciosamente.

Nós, os seres humanos, comunicamos nossas espécies inteligíveis sobretudo por meio da linguagem, ainda que o possamos fazer também, por exemplo, através da pintura ou da música. Fazemos isso, porém, sempre através de meios externos, ao passo que os anjos podem transmitir estas espécies inteligíveis sem necessidade de meio algum. Por isso, não há maneira de distinguir o que vem do nosso próprio interior, de um anjo ou demônio ou diretamente de Deus. No entanto, as pessoas que passam muitos anos vivendo de forma intensa a sua vida espiritual, em contínuo espírito de oração, nos alertam que existem tentações que surgem com uma intensidade bastante surpreendente sem que se tenha qualquer razão plausível e que, além disso, podem se manifestar com uma persistência estranhíssima.

Para dar um exemplo: é claro que a leitura de um livro contra a fé produz tentações contra a fé mas, se essa tentação aparece de pronto, muito intensa e persistindo por muitas semanas, isso pode ser sinal de que se trata de uma tentação demoníaca. Mas nem mesmo assim podemos estar seguros disso. Como regra geral, poderíamos dizer que as tentações sem causa aparente, muito intensas e persistentes, podem ser suspeitadas como tendo origem demoníaca. Mas, com estas características tão vagas, nunca podemos estar seguros cem por cento. Aos sacerdotes, nos buscam às vezes pessoas de profunda vida de oração e que, não possuindo quaisquer problemas psicológicos, subitamente se defrontam com pensamentos de blasfemar contra Deus, calcar crucifixos ou coisas parecidas.

Se tais perturbações são recorrentes, é razoável pensar que têm origem em distúrbios psíquicos. Uma vez, porém, que se tratem de manifestações repentinas em pessoas mentalmente sadias, há que se ter razões para se suspeitar de que sejam tentações diabólicas. O psiquiatra que tiver lido esta explicação, decerto poderá pensar que se tratam de processos de ação - reação. A estes psiquiatras, queremos dizer que conhecemos perfeitamente esses mecanismos do subconsciente, mas também queremos lhes lembrar que o demônio existe. E isto torna-se mais claro quando essa tentação obsessiva desaparece por completo num belo dia, sem voltar a aparecer. As tentações demoníacas nunca são recorrentes e, por mais veementes que sejam, quando desaparecem não deixam na pessoa afetada nem a mais leve sequela psicológica. 

Questão 23: O que fazer diante da tentação? 

Rejeitá-la prontamente. A tentação nada nos pode fazer se a rejeitarmos; se não dialogarmos com ela, ela torna-se inócua. Porque, desde o momento em que dialogamos com ela, desde o momento em que ponderamos os prós e contras do que ela nos oferece, desde o momento em que levamos em consideração o que ela nos propõe, desde esse mesmo instante, nossa fortaleza é quebrantada e nossa resistência se debilita. Uma vez iniciado o diálogo [com a tentação], necessitaremos de muito mais força de vontade para rechaçá-la. Outra coisa que observamos, nós, os confessores, é que alguns penitentes muito devotos ficam realmente muito agoniados às vezes diante de certos pensamentos que os afligem como tentações para cometer graves pecados.  Estas pessoas muito devotas e religiosas não sabem explicar como têm estes pensamentos e se sentem muito culpadas por isso, culpadas e impotentes.

Tendo entendido o que constitui uma espécie inteligível induzida por um demônio, pode-se compreender que a melhor maneira de enfrentar a tentação é ignorá-la, fazendo-se justamente o oposto do que ela nos propõe a fazer, e rezar. Desesperar-se não resolve nada. Se não nos desesperamos, quem se desespera é o demônio. O demônio pode nos induzir pensamentos, imagens ou lembranças, mas não pode se imiscuir em nossa vontade. Podemos ser tentados, mas, ao final, fazemos apenas o que queremos. Nem mesmo todos os poderes do inferno podem forçar alguém a cometer ainda que seja o menor dos pecados. 

Questão 24: O demônio pode usar alguma estratégia para nos tentar? 

O demônio é um ser inteligente, não é uma força ou uma energia. Portanto, há que se entender que a tentação induz ser um diálogo. Um diálogo entre a pessoa que a resiste e o tentador. Somente se a pessoa resiste em considerar a tentação é que esta passa a se simplesmente uma insistência por parte do demônio, sem resposta de nossa parte. Mas o demônio pode ficar ao nosso lado durante muito tempo e analisar-nos, conhecer-nos e tentar-nos justamente através dos nossos pontos mais fracos. O demônio pode ser extraordinariamente pragmático. Ou seja: sabe quais são as suas possibilidades de sucesso e pode nos tentar exatamente naquilo que sabe que tem alguma possibilidade [de sucesso].

Assim, se percebe que uma pessoa não vai cair em pecado grave, pode tentar que cometa um pecado menor. Se prevê que nem isso vai conseguir, pode tentá-la a cometer pelo menos uma imperfeição, ainda que esta não seja nem pecado. E, neste domínio das imperfeições, tentará aquilo que seja possível. Por exemplo, sabe que tentar um asceta com a gula pode ser pura perda de tempo, mas sabe que pode ter possibilidade de sucesso ao tentá-lo a se exceder no jejum. E se percebe que nisso obtém êxito, irá tentá-lo a exceder-se justamente no modo que mais favoreça a sua soberba ou no modo que lhe seja mais nocivo à saúde, etc.

Outro exemplo: se tem ciência que não tem sentido fazer uma monja abandonar suas orações, pode tentá-la a prolongar o tempo das orações em prejuízo de outros trabalhos que ela teria obrigação de fazer. Em outras ocasiões, o demônio pode perceber que, mais que tentar uma pessoa a pecar, pode ser mais realista fazer com que ela passe a julgar que não precisaria mais seguir os conselhos de seu confessor, avaliado como sendo um homem menos espiritualizado que ela mesma. O demônio não tenta ao acaso, mas analisa e centra seus esforços naquilo que tem possibilidades de sucesso. E normalmente ele obtém algum êxito justamente onde o homem virtuoso acredita que ele possa ter menos chances.

Foram dados exemplos de tentações movidas a homens de oração e ascéticos porque o homem entregue ao vício é um homem sem proteção, sem a proteção das virtudes. Sem estas armaduras, todo o seu espírito apresenta vários flancos desguarnecidos, expostos à ação das tentações. Se Deus não protegesse essas almas, qualquer uma delas seria como palha ao fogo de suas próprias paixões, avivado pela ação dos demônios. Por isso, pedimos, ao rezar o Pai-Nosso, livrar-nos do mal. Isso demonstra que, mesmo dispondo da liberdade para resistir, convém que roguemos ao Criador para que nos proteja. Por isso, o Senhor nos dispôs o Anjo de Guarda para que as inspirações malignas sejam compensadas pelas boas inspirações. Por outro lado, se alguém que é tentado começa a rezar, a tentação desaparece, pois a tentação é incompatível com a oração. A oração estabelece inicialmente uma barreira contra a tentação, pois nossa vontade e nossa inteligência estão concentradas em Deus. Ao insistirmos um pouco mais [na oração], o demônio não pode resistir mais e foge.

(Excertos da obra 'Summa Daemoniaca', do Pe. Jose Antonio Fortea, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

SOBRE A MISERICÓRDIA E A JUSTIÇA DE DEUS

Misericordia enim et ira ab illo cito proximant, et in peccatores respicit ira illius — 'A sua misericórdia e a usa ira chegam rapidamente e, em sua ira, olha para os pecadores' (Eclo 5,7)

De dois modos o demônio engana os homens e arrasta muitos consigo ao inferno. Depois do pecado, arrasta-os ao desespero, por meio da justiça divina; e, antes do pecado, excita-os a cometê-lo pela esperança da divina misericórdia. Se quisermos desfazer a arte do inimigo, façamos o contrário: depois do pecado, confiemos na misericórdia divina, mas, antes do pecado, temamos a sua justiça inexorável. Como poderia confiar na misericórdia de Deus quem abusa da mesma misericórdia para o ofender?

I. Diz Santo Agostinho que o demônio engana os homens de dois modos: pelo desespero e pela esperança. Quando o pecador caiu, arrasta-o ao desespero, representando-lhe o rigor da divina justiça; mas antes do pecado, excita-o a cometê-lo pela confiança na divina misericórdia. Com efeito, será difícil encontrar um pecador tão desesperado que se queira condenar por si próprio. Os pecadores querem pecar, mas sem perderem a esperança de se salvar. Pecam e dizem: 'Deus é misericordioso; cometerei este pecado e depois irei confessar-me dele'. Mas, ó Deus, é assim que falaram tantos que agora estão condenados!

Avisa-nos o Senhor: 'Não digas: são grandes as misericórdias de Deus; por muitos pecados que eu cometa, obterei o perdão por um só ato de contrição' (Eclo 5, 6). Não digas assim, avisa-nos Deus; e por quê? Porque a sua misericórdia e a sua justiça vão sempre juntas; e a sua indignação se inflama contra os pecadores impenitentes, que amontoam pecados sobre pecados e abusam da misericórdia para mais pecares: A sua misericórdia e a sua ira chegam rapidamente, e a sua indignação vira-se contra os pecadores. A misericórdia de Deus é infinita, mas os atos dessa misericórdia são finitos. Deus é misericordioso, mas também é justo. 'Eu sou justo e misericordioso', disse um dia o Senhor a Santa Brígida; 'mas os pecadores julgam-me somente misericordioso'.

Não queiramos, escreve São Basílio, considerar só uma das faces de Deus. E o Bem-aventurado João Ávila acrescenta que tolerar os que abusam da misericórdia de Deus, para mais o ofenderem, não seria mais ato de misericórdia, mas falta de justiça. A misericórdia é prometida ao que teme a Deus, não ao que dela abusa: Et misericordia eius timentibus eum (Lc 1, 50). A justiça ameaça os pecadores obstinados e assim como Deus, observa Santo Agostinho, não falta às suas promessas, tão pouco faltará a suas ameaças.

II. Meu irmão, escuta o belo conselho que te dá Santo Agostinho: Post peccatum spera misericordiam  Depois do pecado, confia na misericórdia de Deus; mas antes do pecado, receia a sua terrível justiça — Ante peccatum pertimesce iustitiam. Sim, porque é indigno da misericórdia de Deus quem dela abusa para o ofender. Aquele que ofende a justiça, diz Afonso Tostato, pode recorrer à misericórdia; mas a quem poderá recorrer o que ofende a própria misericórdia? Seria zombar de Deus querer continuar a ofendê-lo e desejar depois o paraíso. Avisa-nos, porém, São Paulo, que Deus não consente que zombemos dele: Deus non irridetur (Gl 6, 7).

Ah, meu Jesus, eu sou um daqueles que Vos ofenderam, porque Vós éreis tão bom. Esperai, Senhor, não me abandoneis ainda já que, pela vossa graça, espero nunca mais dar-Vos motivo para que me abandoneis. Pesa-me, ó bondade infinita, de Vos ter ofendido e abusado tanto da vossa paciência. Graças Vos dou por me terdes esperado até agora. No futuro, não mais Vos quero trair como no passado.

Vós me suportastes tanto tempo, afim de me verdes um dia cativo amorosamente da vossa bondade. Esse dia já chegou, como espero. Amo-Vos, ó bondade infinita. † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas; estimo a vossa graça mais que todos os reinos do mundo; antes perder mil vezes a vida que perder a vossa afeição. Meu Deus, pelo amor de Jesus Cristo, dai-me, com o vosso amor, a santa perseverança até à morte. Não consintais que eu torne a trair-Vos, e deixe jamais de Vos amar. Ó Maria, sois a minha esperança; obtende-me a perseverança e nada mais vos peço. 

'Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Terceiro' de Santo Afonso Maria de Ligório)

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

DA EXPLICAÇÃO DO MAGNIFICAT (VII)


Manifestou o poder do seu braço; desconcertou o coração dos soberbos

Tendo a bem-aventurada Virgem louvado e glorificado, no versículo precedente, os efeitos da Divina Misericórdia, que se originam da Encarnação do Salvador, e se estendem de geração em geração sobre aqueles que temem a Deus, glorifica e exalta no presente versículo os prodígios do Divino Poder, que refulgem de maneira admirável no mesmo mistério.

O grande Deus, diz ela, manifestou o poder de seu braço. Qual é este braço? Santo Agostinho, São Fulgêncio e São Boaventura dizem que é o Verbo Encarnado, pois, assim como é pelo braço que o homem faz as suas ações, é também pelo seu Filho que Deus faz todas as coisas. Assim como o braço do homem, diz São Alberto Magno, origina-se do corpo, e a mão do corpo e do braço, o Filho de Deus origina-se do Pai, e o Espírito Santo procede do Pai e do Filho.

Mas que significam as palavras: manifestou o poder de seu braço? Significam que Deus operou poderosamente e produziu efeitos admiráveis de seu poder, por seu Filho único e seu Verbo Encarnado, que é o seu braço. É por Ele que seu Pai criou todas as coisas; por Ele que remiu o mundo inteiro; por Ele que venceu o demônio; por Ele que triunfou do inferno; por Ele que nos ofereceu o céu; por Ele que fez uma infinidade de outros milagres. Nada faço de Mim mesmo, diz o Filho de Deus, mas é o meu Pai que, permanecendo em Mim, faz tudo quanto Eu faço. Quantas maravilhas opera a Divina Providência nesse mistério da Encarnação! Que milagre ver o Verbo Encarnado sair das sagradas entranhas de uma Virgem, sem afetar-lhe a integridade! Quantos milagres na instituição do Santíssimo Sacramento do Altar! Que milagre, enfim, do Divino Poder, ter elevado uma neta de Adão à dignidade infinita de Mãe de Deus, e havê-la estabelecido Rainha de todos os anjos e de todo o universo!

Eis ainda duas coisas extremamente consideráveis. A primeira é nada haver em que o Divino Poder mais apareça do que na remissão e destruição do pecado, segundo as palavras da Santa Igreja: Ó Deus, que manifestais a Vossa onipotência em perdoar-nos os pecados e em fazer-nos misericórdia, mais que em qualquer outra coisa. A razão é que a injúria feita a Deus pelo pecado é tão grande que só o poder infinito de uma imensa bondade a pode perdoar; e que o pecado é um monstro tão horrendo que só o braço do Onipotente o pode esmagar.

A segunda coisa na qual refulge maravilhosamente esse adorável poder é a virtude e a força que dá aos santos mártires e a todas pessoas que sofrem penas extraordinárias, a fim de suportá-las generosa e cristãmente pelo amor dAquele que sofreu os tormentos e a morte da cruz. Eis um pequeno resumo dos inúmeros milagres que o braço onipotente do Verbo encarnado operou e opera para glória de seu Divino Pai, para honra de sua Mãe Sacratíssima, para salvação e santificação dos homens e para os animar a servi-lO e amá-lO de todo o coração, assim como Ele os ama de todo o seu coração.

Mas quais são os soberbos de que fala a Virgem Maria, ao dizer: Dispersou aqueles que se orgulhavam nos pensamentos de seu coração? Os Santos Padres dão diversas explicações. Dizem alguns que esses soberbos são os anjos rebeldes que Deus expulsou do céu e precipitou no inferno por causa de seu orgulho. Santo Agostinho escreve que, por esses soberbos, podem entender-se os judeus que desprezaram o humilde advento de nosso Salvador, motivo pelo qual foram condenados.

Mas, segundo o pensamento de vários autores, isso significa que não só Deus dissipa e aniquila os pensamentos malignos e perniciosos desígnios que os maus maquinam contra Ele e contra os seus amigos; mas age também de tal modo que todas as suas pretensões redundam em confusão própria, para glória de sua Divina Majestade e para acréscimo da santidade e felicidade eterna daqueles que O servem.

E o que é mais ainda é que os derrota com as suas próprias armas. Pois Ele faz com que as flechas despedidas por sua malícia contra Ele e os seus filhos, voltem-se contra eles próprios. Faz com que os desígnios deles sirvam para realização dos seus; faz com que as invenções malignas de sua impiedade redundem em perdição própria e proveito dos seus servos. Transforma os obstáculos que eles opõem às obras de sua glória em meios poderosíssimos de que se serve para dar-­lhes maior firmeza, maior perfeição e maior brilho. 

Não se voltou a malícia de Satanás contra o primeiro homem, contra ele mesmo para sua confusão, e para proveito não só daquele homem mas de toda a sua posteridade? Pois Deus tirou tantos e tão grandes bens do mal em que a tentação do demônio fez cair o primeiro homem, que a Igreja canta na noite de Páscoa: Ó feliz culpa, ó feliz culpa que conheceu tão grande Redentor. Não serviu a maldita inveja e a má vontade dos irmãos de José, como um meio da Divina Providência para elevá-lo até à participação no trono real do Egito, e para dar-lhe o glorioso título de deus do faraó?

De que serviu ao sucessor desse mesmo faraó a dureza e crueldade que exerceu contra o povo de Deus, senão para abismá-lo, com todo o seu exército, no fundo do Mar Vermelho, e para melhor manifestar a proteção de Deus sobre os seus? Enfim, pode dizer-se com verdade de todos quantos perseguem e afligem os servos de Deus o que Santo Agostinho disse do ímpio Herodes, quando mandou matar tantos inocentes a fim de matar Aquele que viera para salvar todo o mundo: 'Eis uma coisa maravilhosa, o ódio e crueldade desse ímpio inimigo de Deus e dos homens foram de muito maior proveito a essas bem-aventuradas crianças que toda a amizade que pudesse ter por elas e todos os favores que lhes pudesse ter feito'.

É assim que o braço onipotente do Verbo Encarnado derruba os empreendimentos dos soberbos pelo próprio pensamento de seus corações; e é à Virgem que cabe o papel de esmagar a cabeça da serpente, isto é, esmagar o orgulho e a soberba. Por isto, dela se pode dizer com toda a razão: 'Vós sois a glória de Jerusalém, vós sois a alegria de Israel, vós sois a honra do povo cristão, porque combatestes generosamente e gloriosamente vencestes os inimigos de sua salvação'.

A primeira palavra é a voz dos anjos: Vós sois a glória de Jerusalém cujas ruínas foram reparadas por meio de Maria. A segunda é a voz dos homens: Vós sois a alegria de Israel cuja tristeza se transformou em alegria por seu intermédio. A terceira é a voz das mulheres: Vós sois a honra do povo cristão cuja infâmia foi apagada pelo fruto bendito de suas entranhas. A quarta é a voz das almas santas prisioneiras nos limbos, que foram libertadas do cativeiro pelo seu Filho bem-amado, o Redentor do mundo: Combatestes e gloriosamente vencestes. Chegando o tempo em que aprouve ao Pai das misericórdias cumprir o seu eterno desígnio de salvar o gênero humano, a sua Divina Sabedoria quis empregar, para tal fim, meios aparentemente sem aptidão alguma e em nada conformes à elevação dessa grande obra. 

Quais são? Ei-los: envia seu Filho único a este mundo em um estado passível e mortal, e em tal abjeção e baixeza a que E!e mesmo diz: Sou um verme da terra e não homem; e traz por titulo de honra em suas Escrituras: o último de todos os homens. Esse Pai adorável quer que seu Filho, nascido desde toda a eternidade em seu seio, e que é Deus como Ele, tome nascimento de uma Mãe, santíssima na verdade, mas tão abjeta e pequenina aos próprios olhos e aos olhos do mundo, que se considera como a última de todas as criaturas.

Além disso, esse Pai Divino, querendo dar a seu Filho coadjutores e cooperadores para trabalharem com Ele na grande obra da redenção do universo, dá-lhe doze pobres pescadores sem ciência, sem eloquência e sem qualidades que os exaltem diante dos homens. Envia esses doze pescadores por toda a terra para destruir uma religião inteiramente conforme às inclinações humanas e enraizada desde muitos anos nos corações de todos os homens, e para estabelecer outra completamente nova, oposta à primeira e contrária a todos os sentimentos da natureza.

Os doze pobres pescadores vão por todo o mundo para pregar e estabelecer a nova religião, e para destruir a primeira. Mas como são recebidos? Todo o mundo se ergue contra eles, grandes e pequenos, ricos e pobres, homens e mulheres, sábios e ignorantes, filósofos, sacerdotes dos falsos deuses, reis e príncipes; todos empregam a sua habilidade para opor-se à pregação do Evangelho que os doze pescadores se esforçam por publicar. São capturados, lançados nas prisões, acorrentados de pés e mãos, tratados como celerados e feiticeiros, açoitados, esfolados vivos, queimados, lapidados, crucificados, em uma palavra, submetidos aos mais atrozes suplícios.

E que acontece? Por fim alcançam a vitória, triunfam gloriosamente dos grandes, dos poderosos, dos sábios e de todos os monarcas da terra. Aniquilam a religião, ou antes, a irreligião e a abominável idolatria que o inferno estabelecera por toda a terra, e estabelecem por todo o mundo a fé e a religião cristãs. Enfim, permanecem senhores do universo e Deus lhes dá o principado da terra: constitui-os príncipes sobre toda terra. 

O Senhor derruba os tronos dos reis e as cátedras dos filósofos; dá o primeiro império do mundo a um pobre pescador, elevando-o a tão alto grau de poder e glória, que os reis e os príncipes consideram uma grande honra beijar o pó de seu sepulcro e os pés de seus sucessores. Que é tudo isso, senão a realização da profecia da bem-aventurada Virgem: depôs do trono os poderosos, e elevou os humildes?  Observai que essas palavras, assim como as outras contidas nesse cântico, abrangem o passado, o presente e o futuro, porque são pronunciadas por espírito profético. E com efeito, a realização dessa profecia apareceu manifestamente nos séculos passados e aparecerá cada vez mais nos séculos futuros, até o fim do mundo.

(Da Explicação do Magnificat, de São João Eudes)

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

BREVIÁRIO DIGITAL - ANNE DE BRETAGNE (V)

LIVRO DE ORAÇÕES DE ANNE DE BRETAGNE* (1477 - 1514) - PARTE V

* esposa de dois reis sucessivos da França, Charles VII e Luís XII

AUTORIA DAS ILUMINURAS: JEAN POYER 


I.19 - Santa Ana instruindo a Virgem: recostada em um assento, Santa Ana instrui a sua filha, a jovem Virgem Maria e aponta para uma certa passagem do texto do livro aberto nas mãos da Virgem. Mais atrás, outras duas filhas de Santa Ana aguardam serem instruídas também pela mãe. A imagem de Santa Ana, santa homônima e de especial devoção da rainha, é a primeira de uma sequência de 14 imagens seguintes da obra, que são dedicadas a santos da Igreja, cada uma associada a uma oração relativa ao santo. A imagem expressa claramente a intenção pedagógica da obra como um manual de catecismo dedicado à instrução religiosa do próprio filho da rainha (Charles-Orland - 1492/1495).



I.20 - São Nicolau entregando o dote a três pobres donzelas: a imagem representa a cena em que São Nicolau, que havia herdado uma grande riqueza dos pais, lança pela janela da casa simples, três sacos de ouro para servirem como dotes de casamento das três filhas donzelas de um homem sem recursos. Sem os dotes, as pobres mulheres teriam sido forçadas a prostituir-se e, com este gesto, São Nicolau as salvou piedosamente de um destino tão pecaminoso.



I.21 - São Sebastião ferido com flechas: a imagem representa a iconografia tradicional do martírio deste santo, amarrado a um tronco e servindo de alvo a flechas disparadas por diferentes arqueiros. Abandonado pelos algozes que o julgavam morto, foi socorrido e curado mas, reafirmando a sua fé cristã, foi novamente condenado e, desta vez, flagelado e espancado até a morte, sendo seu corpo, então, atirado num dos canais de esgotos de Roma.


I.22 - Martírio de Santa Úrsula e suas companheiras: a imagem representa a dominação pelos bárbaros hunos da esquadra em que viajava Santa Úrsula, que então navegava pelo rio Reno, próxima à cidade de Colônia na Alemanha. Outras 9 virgens que viajavam com Santa Úrsula foram degoladas ali mesmo, ao se recusarem a ser parceiras sexuais dos bárbaros. A imagem mostra a frota dominada e, em primeiro plano, o martírio de três destas donzelas. Mais tarde, Santa Úrsula teria o mesmo fim ao renegar o assédio de Átila, o rei dos hunos. Anne de Bretagne tinha uma especial predileção por Santa Úrsula, pois a tradição considerava a santa como uma das primeiras rainhas da Grã Bretanha, terra natal da própria Anne.

domingo, 6 de novembro de 2016

AS BEM-AVENTURANÇAS

Páginas do Evangelho - Solenidade de Todos os Santos


Neste domingo da Solenidade de Todos os Santos, nós somos por inteiro a Santa Igreja de Deus, o Corpo Místico de Cristo: almas peregrinas do Céu da Igreja Militante, almas sob a justiça divina da Igreja Padecente, almas santificadas da Igreja Triunfante, testemunhas da Visão Beatífica e cidadãos eternos da Jerusalém Celeste, nem mais peregrinos e nem mais sujeitos à Santa Justiça, mas tornados eleitos do Pai e herdeiros da Glória de Deus.

Com efeito, Filhos de Deus já o somos desde agora, como peregrinos do Céu mergulhados nas penumbras da fé e nas vertigens das realidades humanas... 'mas nem sequer se manifestou o que seremos! Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é (1Jo 3, 2). Filhos de Deus, gerados para a eternidade da glória de Deus, seremos os vestidos de roupas brancas, enquanto perseverantes na fé e revestidos da luz de Cristo: 'Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro' (Ap 7, 14). 

Na solenidade de Todos os Santos, os que seremos santos amanhã se confortam dessa certeza nos que já são santos na Glória Celeste, vivendo a felicidade perfeita, e indescritível sob o ponto de vista das palavras e pensamentos humanos. Jesus nos fala dessa realidade transcendente na comunhão dos santos e na unidade da família de Deus: 'Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus' (Mt 5, 12). Em contraponto à fidelidade e à fé dos que almejaram ser santos, Deus os recompensará com limites insondáveis de graça, as chamadas bem-aventuranças de Deus.

Bem-aventurados os pobres de espírito, os simples de coração. Bem-aventurados os aflitos que anseiam por consolação. Bem-aventurados os mansos que se espelham no Coração de Jesus. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça. Bem-aventurados os misericordiosos, filhos prediletos da caridade. Bem-aventurados os puros de coração, transformados em novas manjedouras do Sagrado Coração de Jesus. Bem-aventurados os que promovem a paz e os que são perseguidos por causa da justiça. E bem-aventurados os que foram injuriados e perseguidos em nome da Cruz, do Calvário, dos Evangelhos e de Jesus Cristo porque serão os santos dos santos de Deus!

sábado, 5 de novembro de 2016

SOBRE A NOITE ESCURA DA MORTIFICAÇÃO

Para atingir o estado sublime de união com Deus, é indispensável à alma atravessar a noite escura da mortificação dos apetites e da renúncia a todos os prazeres deste mundo. As afeições às criaturas são diante de Deus como profundas trevas, de tal modo que a alma, quando aí fica mergulhada, torna-se incapaz de ser iluminada e revestida da pura e singela claridade divina. A luz é incompatível com as trevas, como no-lo afirma São João ao dizer que as trevas não puderam compreender a luz (Jo 1, 5).

A alma enamorada das grandezas e dignidades ou muito ciosa da liberdade de seus apetites está diante de Deus como escrava e prisioneira e como tal — e não como filha — é tratada por Ele, porque não quis seguir os preceitos de sua doutrina sagrada que nos ensina: 'Quem quer ser o maior deve fazer-se o menor, e o que quiser ser o menor seja o maior' (Mt 20, 26-27). A alma não poderá, portanto, chegar à verdadeira liberdade de espírito que se alcança na união divina; porque sendo a escravidão incompatível com a liberdade, não pode esta permanecer num coração de escravo, sujeito a seus próprios caprichos; mas somente no que é livre, isto é, num coração de filho. Neste sentido Sara diz a Abraão, seu esposo, que expulse de casa a escrava e seu filho: 'Expulsa esta escrava e seu filho, porque o filho da escrava não será herdeiro com meu filho Isaac' (Gn 21, 10).

Todas as delícias e doçuras que a vontade saboreia nas coisas terrenas, comparadas aos gozos e às delícias da união divina, são suma aflição, tormento e amargura. Assim todo aquele que prende o coração aos prazeres terrenos é digno diante do Senhor de suma pena, tormento e amargura, e jamais poderá gozar os suaves abraços da união de Deus. Toda a glória e todas as riquezas das criaturas, comparadas à infinita riqueza que é Deus, são suma pobreza e miséria. Logo a alma afeiçoada à posse das coisas terrenas é profundamente pobre e miserável aos olhos do Senhor, e por isto jamais alcançará o bem-aventurado estado da glória e riqueza, isto é, a transformação em Deus; porque há infinita distância entre o pobre e indigente, e o sumamente rico e glorioso.

A sabedoria divina, ao se queixar das almas que caem na vileza, miséria e pobreza, em consequência da afeição que dedicam ao que é elevado, grande e belo segundo a apreciação do mundo, fala assim nos Provérbios: 'A vós, ó homens, é que eu estou continuamente clamando, aos filhos dos homens é que se dirige a minha voz. Aprendei, ó pequeninos, a astúcia e vós, insensatos, prestai-me atenção. Ouvi, porque tenho de vos falar acerca de grandes coisas. Comigo estão as riquezas e a glória, a magnífica opulência, e a justiça. Porque é melhor o meu fruto que o ouro e que a pedra preciosa, e as minhas produções melhores que a prata escolhida. Eu ando nos caminhos da justiça, no meio das veredas do juízo, para enriquecer aos que me amam e para encher os seus tesouros' (Pv 8, 4-6.18-21). 

A divina sabedoria se dirige aqui a todos os que põem o coração e a afeição nas criaturas. Chama-os de 'pequeninos' porque se tornam semelhantes ao objeto de seu amor, que é pequeno. Convida-os a ter prudência e a observar que ela trata de grandes coisas e não de pequenas como eles. Com ela e nela se encontram a glória e as verdadeiras riquezas desejadas, e não onde eles supõem. A magnificência e justiça lhe são inerentes; e exorta os homens a refletir sobre a superioridade de seus bens em relação aos do mundo. Ensina-lhes que o fruto nela encontrado é preferível ao ouro e às pedras preciosas; afinal, mostra que sua obra na alma está acima da prata mais pura que eles amam. Nestas palavras se compreende todo gênero de apego existente nesta vida.

(Excertos da obra 'Subida do Monte Castelo', de São João da Cruz)