Capítulo CI
Meios de se Evitar o Purgatório - Caridade e Misericórdia - Palavras das Sagradas Escrituras - São Pedro Damião e o Exemplo de Caridade de João Patrizzi para com os Pobres
Acabamos de ver o primeiro meio de se evitar o Purgatório, uma terna devoção a Maria; o segundo consiste na caridade e em obras de misericórdia de todo tipo. Muitos pecados lhe foram perdoados, disse Nosso Senhor, falando de Madalena, porque ela amou muito (Lc 7,47). Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia (Mt 5,1). Não julgueis, e não sereis julgados. Não condeneis, e não sereis condenados. Perdoai e sereis perdoado (Lc 6,37). Se perdoardes aos homens as suas ofensas, vosso Pai Celestial vos perdoará também as vossas ofensas (Mt 6, 14). Dai a todo aquele que vos pedir; dai, e dar-se-vos-á; porque com a mesma medida com que medirdes, vós sereis medidos (Lc 6, 30.38). Fazei-vos amigos com a riqueza injusta, para que, no dia em que ela vos faltar [quando deixardes este mundo], eles vos recebam nos tabernáculos eternos (Lc 16,9). E o Espírito Santo diz pela boca do Profeta Real [Davi]: 'Feliz quem se lembra do necessitado e do pobre, porque no dia da desgraça o Senhor o salvará' (Sl 40,2).
Todas essas palavras indicam claramente que por nossa Caridade, Misericórdia e Benevolência, seja para com os pobres ou pecadores, para com nossos inimigos e aqueles que nos ferem, ou para com os falecidos que estão em grande necessidade de nossa assistência, encontraremos misericórdia no tribunal do Soberano Juiz. Os ricos deste mundo têm muito a temer. 'Ai de vós, que sois ricos - diz o Filho de Deus - 'porque já tendes a vossa consolação. Ai de vós que estais fartos, porque tereis fome. Ai de vocês que agora riem, porque hão de se lamentar e chorar (Lc 6,24-25). Certamente, essas palavras de Deus deveriam fazer com que os ricos eleitores deste mundo tremessem; mas, se quisessem, a própria riqueza poderia se tornar para eles um grande meio de salvação; eles poderiam redimir seus pecados e pagar suas terríveis dívidas por meio de abundantes esmolas.
Que o meu conselho, ó rei, te seja agradável, disse Daniel ao orgulhoso Nabucodonosor, e redime os teus pecados com esmolas e as tuas iniqüidades com obras de misericórdia para com os pobres (Dn 4,24). Pois a esmola livra de todo pecado e da morte, e não permite que a alma entre em trevas. A esmola será uma grande confiança diante do Deus Altíssimo para todos os que a derem, disse Tobias a seu filho (Tb 4,11-12). Nosso Salvador confirma tudo isso e vai ainda mais longe quando diz aos fariseus: 'Mas, quanto ao mais, dai esmolas, e eis que tudo vos será limpo' (Lc 11,41]. Quão grande, então, é a insensatez dos ricos, que têm em mãos um meio tão fácil de garantir seu bem-estar espiritual futuro e, ainda assim, negligenciam seu uso! Que loucura não fazer bom uso dessa fortuna da qual terão de prestar contas a Deus! Que tolice ir arder no Inferno ou no Purgatório e deixar uma fortuna para herdeiros avarentos e ingratos, que não concederão ao falecido nem uma oração, uma lágrima ou mesmo um pensamento passageiro! Mas, ao contrário, quão felizes são os cristãos que entendem que são apenas os distribuidores, diante de Deus, dos bens que receberam dele, que pensam apenas em dispor deles de acordo com os desígnios de Jesus Cristo, a quem devem prestar contas e, em suma, que fazem uso deles apenas para obter amigos, defensores e protetores na eternidade!
São Pedro Damião, em um de seus tratados, relata o seguinte fato. Um senhor romano, chamado João Patrizzi, morreu. Sua vida, embora cristã, tinha sido como a da maioria dos ricos, muito diferente da do seu Divino Mestre, pobre, sofredor, coroado de espinhos. Felizmente, porém, ele tinha sido muito caridoso com os pobres, a ponto de doar suas roupas para vesti-los. Alguns dias após sua morte, um santo sacerdote, estando em oração, foi arrebatado em êxtase e transportado para a Basílica de Santa Cecília, uma das mais famosas de Roma. Lá ele viu várias virgens celestiais, Santa Cecília, Santa Inês, Santa Ágata e outras, agrupadas em torno de um trono magnífico, no qual estava sentada a Rainha do Céu, cercada por anjos e espíritos abençoados.
Naquele momento, apareceu uma pobre mulher, vestida com uma roupa miserável, mas com uma capa de pele cara sobre os ombros. Ela se ajoelhou humildemente aos pés da Rainha Celestial e, unindo as mãos, com os olhos cheios de lágrimas, disse com um sorriso: 'Mãe de Misericórdia, em nome de tua inefável bondade, peço-te que tenhas piedade do infeliz João Patrizzi, que acaba de morrer e que sofre cruelmente no Purgatório'. Três vezes ela repetiu a mesma oração, cada vez com mais fervor, mas sem receber nenhuma resposta. 'A senhora sabe muito bem, ó rainha misericordiosa, que eu sou aquela mendiga que, na entrada de sua grande basílica, pedia esmolas em pleno inverno, sem nada para me cobrir além de meus trapos. Ó como eu tremia de frio! Então João, a quem eu pedia em nome de Nossa Senhora, tirou do seu ombro essa pele cara e a deu a mim, privando-se dela em meu favor. Será que um ato de caridade tão grande, realizado em seu nome, ó Maria, não merece alguma indulgência?'
Diante desse apelo comovente, a Rainha do Céu lançou um olhar de amor para a mulher suplicante. 'O homem por quem você reza' - respondeu ela' - 'está condenado por muito tempo ao mais terrível sofrimento, por causa de seus numerosos pecados. Mas como ele tinha duas virtudes especiais, a misericórdia para com os pobres e a devoção aos meus altares, condescenderei em lhe dar a minha ajuda'. Diante dessas palavras, a santa assembleia testemunhou sua alegria e gratidão para com a Mãe de Misericórdia. Patrizzi foi trazido: ele estava pálido, desfigurado e carregado de correntes, que lhe haviam causado feridas profundas. A Virgem Santa olhou para ele por um momento com terna compaixão, depois ordenou que suas correntes fossem retiradas e que lhe fossem colocadas vestes de glória, para que ele pudesse se juntar aos santos e espíritos abençoados que rodeavam o seu trono. Essa ordem foi executada imediatamente, e toda visão se desvaneceu. O santo sacerdote que teve essa visão não deixou, a partir daquele momento, de pregar a clemência de Nossa Senhora para com as pobres almas sofredoras, especialmente para com aqueles que haviam se dedicado a seu serviço e que tinham grande caridade para com os pobres.
Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.