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segunda-feira, 28 de abril de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (C)

Capítulo C

Meios de se Evitar o Purgatório - Privilégios do Santo Escapulário: Preservação dos Tormentos do Inferno e Libertação do Primeiro Sábado - Exemplos do Cumprimento destas Promessas

De acordo com o que dissemos, a Santíssima Virgem anexou dois grandes privilégios ao Santo Escapulário; por sua vez, os Soberanos Pontífices acrescentaram a eles as mais ricas indulgências. Não falaremos aqui sobre as duas indulgências, mas consideramos útil dar a conhecer esses dois preciosos privilégios, um sob o nome de Preservação, o outro sob o nome de Libertação.

O primeiro é a isenção dos tormentos do inferno: In hoc moriens aeternum non patietur incendium - Aquele que morrer usando este hábito não sofrerá o fogo do inferno. É evidente que aquele que morrer em pecado mortal, mesmo usando o escapulário, não estará isento da condenação; e não é esse o significado da promessa de Maria. Essa boa Mãe prometeu misericordiosamente dispor todas as coisas de tal modo que aquele que morrer usando esse santo hábito receberá uma graça eficaz digna de confessar e lamentar as suas faltas; ou, se for surpreendido por uma morte súbita, terá tempo e vontade para fazer um ato de perfeita contrição. Poderíamos encher um volume com os eventos milagrosos que comprovam o cumprimento dessa promessa. Basta relatar alguns deles.

O Venerável [Santo] Padre de la Colombiere nos conta que uma jovem, que era muito piedosa e usava o santo escapulário, teve a infelicidade de se desviar do caminho da virtude. Em consequência da má literatura e de companhias perigosas, ela caiu nas maiores desordens e estava prestes a perder a sua honra. Em vez de se voltar para Deus e recorrer à Santíssima Virgem, que é o refúgio dos pecadores, ela se abandonou ao desespero. O demônio logo sugeriu um remédio para os seus males - o terrível remédio do suicídio, que poria fim às suas misérias temporais para mergulhá-la em tormentos eternos. Ela correu para um rio e, ainda usando o escapulário, jogou-se na água. Mas - ó maravilha de Deus! - ela flutuou em vez de afundar e, assim, não conseguiu encontrar a morte que procurava. Um pescador, que a viu, apressou-se em ajudá-la, mas a infeliz criatura o impediu: arrancando o escapulário, ela o jogou longe de si e afundou imediatamente. O pescador não conseguiu salvá-la, mas encontrou o escapulário e reconheceu que essa vestimenta sagrada, enquanto havia sido usada, havia impedido a pecadora de cometer suicídio.

No hospital de Toulon, havia um oficial, um homem muito ímpio, que se recusava a ver um padre. A morte se aproximava e ele caiu em uma espécie de letargia. Os assistentes aproveitaram esse fato para colocar um escapulário em seu pescoço, sem que ele soubesse. Ao se recuperar logo depois, ele gritou com fúria: 'Por que vocês colocaram fogo em mim, um fogo que me queima? Tirem-no daqui, tirem-no daqui!' Então, invocaram a Santíssima Virgem e tentaram novamente colocar nele o escapulário. Ele percebeu isso, arrancou-o com raiva, jogou-o longe de si e, com uma horrível blasfêmia nos lábios, expirou.

O segundo privilégio, o Sabatino ou da Libertação, consiste em ser liberado do Purgatório pela Santíssima Virgem no primeiro sábado após a morte. Para desfrutar desse privilégio, certas condições devem ser cumpridas. Primeiro, observar a castidade de nosso estado. Segundo, recitar o Pequeno Ofício da Santíssima Virgem. Aqueles que recitam o Ofício Canônico satisfazem essa condição. Aqueles que não sabem ler devem, em vez de rezar o Ofício, observar os jejuns prescritos pela Igreja e abster-se de carne em todas as quartas-feiras, sextas-feiras e sábados. Terceiro, em caso de necessidade, a obrigação de recitar o Ofício, a abstinência e o jejum podem ser comutados em outras obras piedosas, por aqueles que têm o poder de conceder tais dispensas. Esse é o privilégio Sabatino ou da Libertação, com as condições necessárias para desfrutá-lo. Se nos lembrarmos do que foi dito sobre os rigores do Purgatório e sua duração, veremos que esse privilégio é muito precioso e suas condições muito fáceis des erem aplicadas. Sabemos que foram levantadas dúvidas quanto à autenticidade da Bula Sabatina, mas, além da tradição constante e da prática piedosa dos fiéis, o grande Papa Bento XIV, cuja eminente erudição e moderação de opiniões são bem conhecidas, pronunciou-se a seu favor.

Em Otranto, uma cidade do reino de Nápoles, uma senhora de alta posição teve grande prazer em assistir aos sermões de um padre carmelita que era um grande promotor da devoção a Maria. Ele assegurava a seus ouvintes que todos os cristãos que usassem piedosamente o escapulário e cumprissem as condições pré-estabelecidas veriam a Mãe Divina em sua partida deste mundo, e que essa grande consoladora dos aflitos viria no sábado após a morte para libertá-los do Purgatório e levá-los para a morada dos bem aventurados. Impressionada com essas preciosas vantagens, essa senhora imediatamente vestiu a túnica da Santíssima Virgem, firmemente decidida a observar fielmente as regras da Confraria. Sua piedade progrediu rapidamente. Ela rezava a Maria dia e noite, depositava nela toda a sua confiança e lhe prestava todas as homenagens possíveis. Entre outros favores que pediu, implorou que morresse em um sábado, para que pudesse ser libertada mais cedo do Purgatório. 

Suas preces foram ouvidas. Alguns anos depois, tendo adoecido, apesar da opinião contrária de seu médico, ela declarou que sua doença a levaria ao túmulo. 'Eu bendigo a Deus' - acrescentou - 'na esperança de estar logo unida a Ele no Céu'. Sua doença progrediu tão rapidamente que os médicos declararam unanimemente que ela estava à beira da morte e que não conseguiria viver até o fim do dia, que era quarta-feira. 'Vocês estão novamente enganados' - disse a senhora doente - 'viverei mais três dias e não morrerei até sábado'. O evento justificou suas palavras. Considerando os dias de sofrimento que lhe restavam como um tesouro inestimável, ela os aproveitou para purificar sua alma e aumentar seus méritos. Quando chegou o sábado, ela entregou a sua alma nas mãos do Criador.

Sua filha, que também era muito piedosa, estava inconsolável em seu luto. Enquanto orava em seu oratório pela alma de sua querida mãe e derramava lágrimas abundantes, um grande servo de Deus, que era habitualmente favorecido com comunicações sobrenaturais, foi até ela e disse: 'Pare de chorar, minha filha, ou melhor, deixe que sua dor se transforme em alegria. Venho assegurar-lhe, da parte de Deus, que hoje, sábado, graças aos privilégios concedidos aos membros da Confraria do Escapulário, sua mãe foi para o céu e está entre os eleitos. Fiquem consolados e abençoem a Virgem Augustíssima, a Mãe da Misericórdia'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCIX)

Capítulo XCIX

Meios de se Evitar o Purgatório - Devoção Especial à Santíssima Virgem - O Uso Cotidiano do Escapulário do Carmo

Um Servo de Deus resume estes meios e os reduz a dois, dizendo: 'Purifiquemos as nossas almas pela água e pelo fogo'; isto é, pela água das lágrimas e pelo fogo da caridade e das boas obras. De fato, podemos classificá-los todos nestes dois exercícios, e isto é conforme à Sagrada Escritura, onde vemos que as almas são limpas das suas manchas e purificadas como o ouro no crisol. Mas como devemos procurar acima de tudo ser práticos, sigamos o método que indicamos e que foi praticado, com tanto sucesso, pelos santos e por todos os cristãos fervorosos.

Em primeiro lugar, para obter uma grande pureza de alma e, por conseguinte, ter poucos motivos para temer o Purgatório, devemos nutrir uma grande devoção para com a Santíssima Virgem Maria. Esta boa Mãe ajudará de tal modo os seus queridos filhos a purificar as suas almas e a abreviar o seu Purgatório, que eles poderão viver com a maior confiança. Ela deseja mesmo que eles não se preocupem com este assunto e que não se deixem desanimar por um medo excessivo, como ela própria se dignou declarar ao seu servo Jerônimo Carvalho, de quem já falamos. 'Tem confiança, meu filho' - disse-lhe ela - 'Eu sou a Mãe de Misericórdia para os meus queridos filhos no Purgatório, assim como para os que ainda vivem na terra'. Nas Revelações de Santa Brígida, lemos algo semelhante: 'Eu sou' - disse-lhe a Santíssima Virgem - 'a Mãe de todos aqueles que estão no lugar de expiação; as minhas orações mitigam os castigos infligidos a eles por suas faltas' (Livro 4, cap. 1).

Aqueles que usam o santo escapulário têm um direito especial à proteção de Maria. A devoção do santo escapulário, ao contrário da do Rosário, não consiste na oração, mas na prática piedosa de usar uma espécie de hábito, que é como a veste da Rainha do Céu. O escapulário de Nossa Senhora do Carmo, de que aqui falamos, tem a sua origem no século XIII, e foi pregado pela primeira vez pelo Beato (São) Simão Stock, quinto Geral da Ordem do Carmo. Este célebre servo de Maria, nascido em Kent, na Inglaterra, no ano de 1165, quando ainda era jovem, retirou-se para uma floresta solitária para se dedicar à oração e à penitência. Escolheu como morada o oco de uma árvore, ao qual fixou um crucifixo e uma imagem da Santíssima Virgem, a quem honrava como sua Mãe e não cessava de invocar com o mais terno afeto. Durante doze anos, suplicou-lhe que lhe dissesse o que poderia fazer de mais agradável ao seu Divino Filho, quando a Rainha do Céu lhe disse que entrasse na Ordem do Carmo, que era particularmente dedicada ao seu serviço. Simão obedeceu e, sob a proteção de Maria, tornou-se um religioso exemplar e o ornamento da Ordem do Carmo, da qual foi eleito Superior Geral em 1245.

Um dia - era o dia 16 de julho de 1251 - a Virgem Santíssima apareceu-lhe rodeada por uma multidão de espíritos celestes e, com o rosto radiante de alegria, apresentou-lhe um escapulário de cor castanha, dizendo: 'Recebe, meu querido filho, este escapulário da tua Ordem; é o distintivo da minha Confraria e o penhor de um privilégio que obtive para ti e para os teus irmãos do Carmo. Aqueles que morrerem devotamente vestidos com este hábito serão preservados do fogo eterno. É o sinal da salvação, uma salvaguarda no perigo, um penhor de paz e de proteção especial, até ao fim dos tempos'. O feliz ancião divulgava por toda a parte o favor que recebera, mostrando o escapulário, curando os doentes e fazendo outros milagres em prova da sua maravilhosa missão. Imediatamente, Eduardo I, rei de Inglaterra e Luís IX, rei de França e, depois do seu exemplo, quase todos os soberanos da Europa, bem como um grande número dos seus súditos, receberam o mesmo hábito. A partir desse momento começa a célebre Confraria do Escapulário, que pouco depois foi erigida canonicamente pela Santa Sé.

Não contente com a concessão deste primeiro privilégio, Maria fez outra promessa em favor dos membros da Confraria do Escapulário, assegurando-lhes uma rápida libertação dos sofrimentos do Purgatório. Cerca de cinquenta anos após a morte do Beato Simão, o ilustre Pontífice João XXII, quando estava a rezar de manhã cedo, viu a Mãe de Deus aparecer rodeada de luz e com o hábito do Monte Carmelo. Entre outras coisas, ela lhe disse: 'Se entre os Religiosos ou membros da Confraria do Carmo houver alguns que, por causa das suas faltas, estejam condenados ao Purgatório, eu descerei para o meio deles como uma terna Mãe no sábado depois da sua morte; livrá-los-ei e conduzi-los-ei ao monte santo da vida eterna'. São estas as palavras que o Pontífice coloca nos lábios de Maria na sua célebre Bula de 3 de março de 1322, vulgarmente chamada Bula Sabatina. Ele conclui com estas palavras: 'Aceito, pois, esta santa indulgência; ratifico-a e confirmo-a na terra, como Jesus Cristo graciosamente a concedeu no céu pelos méritos da Santíssima Virgem'. Este privilégio foi depois confirmado por um grande número de Bulas e Decretos dos Soberanos Pontífices.

Tal é a devoção do santo escapulário. É sancionada pela prática das almas piedosas em todo o mundo cristão, pelo testemunho de vinte e dois papas, pelos escritos de um número incalculável de autores piedosos, e por milagres multiplicados durante os últimos 600 anos; de modo que, como nos diz o ilustre Bento XIV: 'aquele que ousa por em causa a validade da devoção do escapulário ou negar os seus privilégios, seria um orgulhoso desdenhador da religião'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 22 de março de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCVIII)

 

Capítulo XCVIII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Estímulo à Devoção e Probabilidade do Purgatório - Meios de se Evitar o Purgatório - Conselho de Santa Catarina de Gênova

Se os santos religiosos passam pelo Purgatório, embora não fiquem retidos nele, não devemos temer que não só passemos por ele, mas também permaneçamos por mais ou menos tempo? Podemos viver numa segurança que seria, para dizer o mínimo, muito imprudente? A nossa fé e a nossa consciência dizem-nos que o nosso medo do Purgatório é bem fundamentado. Vou ainda mais longe, caro leitor, e digo que, com um pouco de reflexão, tu mesmo deves reconhecer que é muito provável, e quase certo, que irás para o Purgatório. Não é verdade que, ao deixar esta terra, a tua alma entrará numa dessas três moradas que a fé nos indica: Inferno, Céu ou Purgatório? Ireis para o Inferno? Não é provável, porque tendes horror ao pecado mortal, e por nada no mundo o cometeríeis, nem o teríeis na consciência depois de o terdes cometido. Ireis para o Céu? Respondeis imediatamente que vos julgais indignos de tal favor. Resta, então, o Purgatório; e deveis reconhecer que é muito provável, quase certo, que ireis para esse lugar de expiação.

Ao colocar esta grave verdade diante dos vossos olhos, não penseis, caro leitor, que queremos assustar-vos, ou tirar-vos toda a esperança de entrar no Céu sem o Purgatório. Pelo contrário, esta esperança deve permanecer sempre profundamente impressa nos nossos corações, pois é o espírito de Jesus Cristo, que não deseja de modo algum que os seus discípulos tenham necessidade de uma expiação futura. Ele até instituiu sacramentos e estabeleceu todos os tipos de meios para nos ajudar a fazer plena satisfação neste mundo. Mas esses meios são muitas vezes negligenciados; e é especialmente por um temor salutar que somos estimulados a fazer uso deles.

Ora, quais são os meios que devemos empregar para evitar, ou pelo menos abreviar, o nosso Purgatório e atenuar o seu rigor? São, evidentemente, os exercícios e as boas obras que mais nos ajudam a satisfazer as nossas faltas neste mundo e a encontrar misericórdia diante de Deus, a saber: a devoção à Santíssima Virgem Maria e a fidelidade no uso do seu escapulário; a caridade para com os vivos e os mortos; a mortificação e a obediência; a piedosa recepção dos sacramentos, especialmente quando se aproxima a morte; a confiança na Divina Misericórdia; e, finalmente, a santa aceitação da morte em união com a morte de Jesus na cruz.

Estes meios são suficientemente poderosos para nos preservar do Purgatório, mas é preciso fazer uso deles. Ora, para empregá-los seriamente e com perseverança, uma condição é necessária: formar uma firme resolução de satisfazer [o purgatório pessoal] neste mundo e não no outro. Essa resolução deve ser baseada na fé, que nos ensina quão fácil é a satisfação nesta vida, quão terrível é o Purgatório. Enquanto estiveres no caminho com o teu adversário, diz Jesus Cristo, faze um acordo com ele, para que, porventura, o teu adversário não te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e sejas lançado na prisão. Em verdade vos digo que não sairás dali até que pagueis o último ceitil (Mt 5,25).

Reconciliarmo-nos com o nosso adversário no caminho significa, na boca de Nosso Senhor, apaziguar a Justiça Divina, e satisfazermo-nos no caminho da vida, antes de chegarmos àquele fim imutável, àquela eternidade onde toda a penitência é impossível, e onde teremos de nos submeter a todos os rigores da Justiça. Não é este conselho do nosso Divino Salvador muito sábio?

Poderemos comparecer diante do tribunal de Deus, carregados de uma dívida enorme, que poderíamos tão facilmente ter saldado com algumas obras de penitência, e que depois teremos de pagar com anos de tormento? 'Aquele que se purifica de suas faltas na vida presente' - diz Santa Catarina de Gênova - 'satisfaz com um centavo uma dívida de mil ducados; e aquele que espera até a outra vida para saldar suas dívidas, consente em pagar mil ducados por aquilo que antes poderia ter pago com um centavo'. Devemos, portanto, começar com a firme e eficaz resolução de dar satisfação neste mundo; essa é a pedra fundamental. Uma vez lançado esse alicerce, devemos empregar todos os meios acima enumerados.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

quinta-feira, 6 de março de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCVII)

Capítulo XCVII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Santa Madalena de Pazzi e Irmã Benedicta - O Pensamento do Purgatório: Exemplos do Padre Paulo Hoffee, Padre Claúdio de la Colombière e Padre Luís Corbinelli

Santa Madalena de Pazzi, em uma aparição de uma alma falecida, recebeu a mais salutar instrução sobre as virtudes religiosas. Havia no seu convento uma irmã chamada Maria Benedicta, que se distinguia pela sua piedade, pela sua obediência e por todas as outras virtudes que são o ornamento das almas santas. Era tão humilde, diz o Padre Cepari, e tinha tal desprezo por si mesma que, sem a orientação dos seus Superiores, teria ido a extremos, com o único objetivo de adquirir a reputação de ser uma pessoa sem prudência e sem juízo. Dizia, portanto, que não podia deixar de sentir inveja de Santo Aleixo, que encontrou um meio de viver uma vida oculta, desprezível aos olhos do mundo. Era tão dócil e pronta na obediência, que corria como uma criancinha ao menor sinal da vontade dos seus Superiores, e estes eram obrigados a usar de grande circunspeção nas ordens que lhe davam, para que ela não fosse além dos seus desejos. De fato, ela tinha adquirido tal domínio sobre as suas paixões e apetites, que seria difícil imaginar uma mortificação mais perfeita.

Esta boa irmã morreu subitamente, depois de algumas horas de doença. Na manhã seguinte, um sábado, durante a missa celebrada, enquano as religiosas cantavam o Sanctus, Madalena foi arrebatada em êxtase. Durante o arrebatamento, Deus mostrou-lhe esta alma sob a forma corporal na glória do Céu. Estava adornada com uma estrela de ouro, que recebera como recompensa pela sua ardente caridade. Todos os seus dedos estavam cobertos de anéis caros, por causa da sua fidelidade a todas as regras e do cuidado que tivera em santificar as suas ações mais ordinárias. Na cabeça, trazia uma coroa riquíssima, porque sempre amou a obediência e o sofrimento por Jesus Cristo. De fato, ultrapassava em glória uma grande multidão de virgens e contemplava o seu Esposo Jesus com singular familiaridade, porque tinha amado tanto a humilhação, segundo estas palavras do nosso Salvador: 'Aquele que se humilhar será exaltado'. Tal foi a sublime lição que a santa recebeu em recompensa da sua caridade para com os defuntos.

O pensamento do Purgatório incita-nos a trabalhar com zelo e a não cometer as menores faltas, a fim de evitar as terríveis expiações da outra vida. O Padre Paulo Hoffee, que morreu santamente em Ingolstadt no ano de 1608, fez uso deste pensamento em seu próprio benefício e no dos outros. Nunca perdeu de vista o Purgatório, nem deixou de aliviar as pobres almas que frequentemente lhe apareciam a pedir os seus sufrágios. Como Superior dos seus irmãos religiosos, exortava-os muitas vezes a santificarem-se a si próprios, para depois poderem santificar os outros, e a nunca negligenciarem a mais pequena prescrição das suas regras; depois acrescentava com grande simplicidade: 'Caso contrário, receio que venhais, como muitos outros o fizeram, pedir as minhas orações para que vos libertem do Purgatório'. Nos seus últimos momentos, ele estava totalmente ocupado em conversas amorosas com Nosso Senhor, sua Santíssima Mãe e os santos. Foi sensivelmente consolado pela visita de uma alma muito santa, que o tinha precedido no Céu apenas dois ou três dias antes e que agora o convidava a ir deleitar-se no amor eterno de Deus (Menologia da Companhia de Jesus, 17 de dezembro).

Quando dizemos que o pensamento do Purgatório nos faz usar todos os meios para o evitar, é evidente que temos razões para recear ir para lá. Mas em que se baseia esse temor? Se refletirmos um pouco sobre a santidade que é necessária para entrar no Céu e sobre a fragilidade da natureza humana, que é a fonte de tantas faltas, facilmente compreenderemos que este receio é demasiado fundamentado. Além disso, os exemplos que lemos acima não nos mostram claramente que, muitas vezes, mesmo as almas mais santas têm, por vezes, que sofrer expiação na outra vida?

O Venerável [depois Santo] Padre Cláudio de la Colombière morreu em odor de santidade, em Paray, a 15 de fevereiro de 1682, como havia sido predito pela Beata [depois Santa] Margariada Maria. Assim que ele expirou, deram notícia disso à Irmã Margarida. A santa religiosa, sem se mostrar perturbada e sem se desdobrar em vãs lamentações, disse simplesmente à pessoa que a avisara: 'Vai rezar a Deus por ele e faz com que se reze por toda a parte pelo repouso da sua alma'. O Padre tinha morrido às cinco horas da manhã. Nessa mesma noite, ela escreveu um bilhete à mesma pessoa, nestes termos: 'Deixa de te afligir; invoca-o. Não temais nada, ele é mais poderoso do que nunca para nos ajudar'. Estas palavras dão-nos a entender que ela tinha sido sobrenaturalmente esclarecida acerca da morte deste santo homem e do estado da sua alma na outra vida.

A paz e a tranquilidade da Irmã Margarida diante da morte de um diretor que lhe tinha sido útil foi outra espécie de milagre. A bem-aventurada irmã não amava senão em Deus e por Deus; Deus ocupava o lugar de tudo no seu coração e consumia pelo fogo do seu amor todos os outros apegos. A superiora ficou surpreendida com a sua perfeita tranquilidade por ocasião da morte do santo missionário e, mais ainda, por Margarida não ter pedido para fazer nenhuma penitência extraordinária para o repouso da sua alma, como era seu costume por ocasião da morte de qualquer pessoa conhecida por quem se interessasse particularmente. A Madre Superiora perguntou à serva de Deus a razão disso e ela respondeu-lhe muito simplesmente: 'Ele não tem necessidade disso; está em condições de rezar por nós, uma vez que foi exaltado no Céu pelo Sagrado Coração de Nosso Senhor Divino. Apenas para expiar uma ligeira negligência na prática do Amor Divino' - acrescentou - 'a sua alma foi privada da visão de Deus desde que deixou o corpo até ao momento em que os seus restos mortais foram entregues ao túmulo'.

Acrescentemos mais um exemplo, o do Padre Corbinelli. Esta santa pessoa não foi isenta do Purgatório. É verdade que não ficou retido lá, mas teve que passar pelas chamas antes de ser admitido na presença de Deus. Luís Corbinelli, da Companhia de Jesus, morreu em odor de santidade na casa professa de Roma, no ano de 1591, quase ao mesmo tempo que São Luís Gonzaga. A morte trágica de Henrique II, rei de França, provocou-lhe um desgosto pelo mundo e decidiu consagrar-se inteiramente ao serviço de Deus. No ano de 1559, o casamento da princesa Isabel foi celebrado com grande pompa na cidade de Paris. Entre outros divertimentos, foi organizado um torneio, no qual figurou a flor da nobreza e da cavalaria francesas. O próprio Rei apareceu no meio da sua brilhante corte. Entre os espectadores, reunidos até de terras estrangeiras, estava o jovem Luís Corbinelli, que tinha vindo da sua cidade natal - Florença - para assistir ao festival. Corbinelli contemplava com admiração a glória do monarca francês, agora no zênite da sua grandeza e prosperidade quando, de repente, o viu cair, atingido por um golpe fatal desferido por um oponente imprudente. A lança mal empunhada por Montgomery transpassou o Rei, que expirou ali mesmo banhado em sangue.

Num piscar de olhos, toda a sua glória desapareceu e a magnificência real foi coberta por uma mortalha. Este acontecimento causou uma impressão profunda em Corbinelli; vendo assim exposta a futilidade da grandeza humana, renunciou ao mundo e abraçou a vida religiosa na Companhia de Jesus. A sua vida foi a de um santo, e a sua morte encheu de alegria todos os que dela foram testemunhas. Aconteceu alguns dias antes da morte de São Luís, que estava doente no Colégio Romano. O jovem santo anunciou ao Cardeal Bellarmine que a alma do Padre Corbinelli tinha entrado na glória; e quando o Cardeal lhe perguntou se não tinha passado pelo Purgatório, respondeu: 'Passou, mas não ficou lá'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCVI)

Capítulo XCVI

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Conselhos Úteis das Santas Almas e a Bem Aventurada Maria dos Anjos - São Pedro Claver, o Apóstolo dos Escravos Negros, e as Almas do Purgatório
 
Além dos santos pensamentos que a devoção às almas santas sugere, estas às vezes contribuem diretamente para o bem-estar espiritual de seus benfeitores. Na vida da bem-aventurada Maria dos Anjos, do Ordem do Monte Carmelo, diz-se que é quase inacreditável a frequência com que as aparições das almas do Purgatório vinham implorar a sua assistência e depois agradecer pela sua libertação. Muito frequentemente, elas conversavam com a bem-aventurada irmã, dando-lhe conselhos úteis para ela mesma ou para suas irmãs, e revelando coisas relacionadas ao outro mundo. 'Na quarta-feira dentro da Oitava da Assunção' - ela escreveu - 'enquanto rezava as orações da noite, uma das nossas boas irmãs me apareceu. Ela estava vestida de branco, rodeada de glória e esplendor, e era tão bonita que não sei de nada aqui embaixo com que se possa compará-la. Temendo alguma ilusão do demônio, me armei com o Sinal da Cruz; mas ela sorriu e desapareceu logo em seguida. Pedi ao Nosso Senhor que não permitisse que eu fosse enganada pelo demônio. Na noite seguinte, a irmã apareceu novamente, e chamando-me pelo meu nome, disse: Venho da parte de Deus para te avisar que estou gozando da bem-aventurança eterna. Diga à nossa Madre Prioresa que não é o desígnio de Deus revelar-lhe o destino que a espera; diga-lhe que confie em São José e nas almas do Purgatório. Tendo dito isso, desapareceu'.

São Pedro Claver, Apóstolo dos Escravos Negros de Cartago, foi auxiliado pelas almas do Purgatório em seu trabalho apostólico. Ele não abandonou as almas de seus queridos irmãos negros após a morte deles; penitências, orações, missas, indulgências, na medida em que dependia dele, ele aplicava a elas, diz o Padre Fleurian, seu biógrafo. Assim, acontecia frequentemente que aquelas pobres almas aflitas, certas de seu poder junto a Deus, vinham pedir a assistência de suas orações. A fastiosidade e incredulidade de nosso século, diz o mesmo autor, não nos impede de relatar alguns poucos fatos adicionais. Eles podem, talvez, parecer dignos da zombaria dos livres-pensadores, mas não basta saber que Deus é o Senhor desses acontecimentos, e que são, além disso, tão bem autenticados que merecem um lugar em uma história escrita para leitores cristãos?

Um negro doente, a quem ele havia acolhido em seu quarto e colocado em sua própria cama, ouvindo um barulho de gemidos altos durante a noite, temeu e correu até o Padre Claver, que estava ajoelhado em oração. 'Padre!' - exclamou ele - 'que barulho terrível é esse, que me aterroriza e me impede de dormir?' 'Volte, meu filho' - respondeu o santo homem - 'e vá dormir sem medo'. Então, depois de ajudá-lo a se deitar, ele abriu a porta do quarto, disse algumas palavras, e imediatamente os gemidos cessaram.

Vários outros escravos negros estavam ocupados na tarefa de reparar uma casa a alguma distância da cidade, quando um deles saiu para cortar lenha em uma montanha próxima. Ao se aproximar da floresta, ouviu seu nome ser chamado do alto de uma árvore. Ele levantou os olhos na direção de onde vinha a voz, e não vendo ninguém, estava prestes a fugir e se juntar aos seus companheiros, mas foi parado em um caminho estreito por um espectro terrível, que lhe desferiu uma chuva de golpes com um chicote com pedaços de ferro quente, dizendo: 'Por que você não trouxe o seu rosário? Leve-o consigo sempre e reze-o pelas almas no Purgatório'. O fantasma então ordenou que ele pedisse à dona da casa três moedas de ouro que lhe eram devidas e que ele as entregasse ao Padre Claver, para que missas fossem celebradas por sua intenção, após o que desapareceu.

Enquanto isso, o barulho dos golpes e os gritos do homem trouxeram seus companheiros até o local, onde o encontraram mais morto do que vivo, coberto pelas feridas que recebera e incapaz de pronunciar uma palavra. Eles o levaram até a casa, onde a dona confirmou que realmente devia a quantia de dinheiro a um negro que havia falecido algum tempo antes. O Padre Claver, ao ser informado do ocorrido, celebrou as missas solicitadas e deu então um rosário ao homem negro, que passou a usá-lo todos os dias e nunca mais deixou de rezá-lo.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 1 de fevereiro de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCV)

Capítulo XCV

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Purgatório na Terra em Substituição ao Purgatório Após a Morte - Servos de Deus: Irmão Gaspar Lourenço e Padre Michel de la Fontaine 

Além das vantagens que já consideramos, a caridade para com as almas do Purgatório é extremamente salutar para aqueles que a praticam, pois estimula o fervor no serviço a Deus e inspira os pensamentos mais santos. Pensar nas almas do Purgatório é refletir sobre os sofrimentos da outra vida; é lembrar que todo pecado exige expiação, seja nesta vida ou na próxima. Ora, quem não entende que é melhor fazer satisfação aqui, já que os castigos futuros são tão terríveis? Uma voz parece emergir do Purgatório, repetindo estas palavras da Imitação de Cristo: 'É melhor purgar agora os nossos pecados e cortar os nossos vícios do que deixá-los para purgação depois'.

Lembramos também desta outra sentença, presente no mesmo capítulo: 'Lá, uma hora de punição será mais grave do que cem anos da mais amarga penitência aqui'. Penetrados por este temor salutar, suportamos voluntariamente os sofrimentos da vida presente e dizemos a Deus com Santo Agostinho e São Luís Bertrand: Domine, hic ure, hic seca, hic non parcas, ut in aeternum parcas – 'Senhor, aplica aqui o ferro e o fogo; não me poupes nesta vida, para que me poupes na próxima'. Com esses pensamentos, o cristão encara as tribulações da vida presente, especialmente os sofrimentos de uma doença dolorosa, como um Purgatório na terra que o dispensará do Purgatório após a morte.

No dia 6 de janeiro de 1676, faleceu em Lisboa, aos sessenta e nove anos, o servo de Deus Gaspar Lourenço, Irmão Coadjutor da Companhia de Jesus e porteiro da casa professada dessa ordem. Ele era cheio de caridade para com os pobres e para com as almas do Purgatório. Não sabia poupar esforços no serviço dos desafortunados e era maravilhosamente engenhoso em ensinar-lhes a bendizer a Deus pela miséria que lhes garantia o Céu. Ele próprio estava tão penetrado da felicidade de sofrer por Nosso Senhor que crucificava sua carne quase sem medida, e acrescentava outras austeridades nas vigílias dos dias de Comunhão.

Aos setenta e oito anos, não aceitava dispensa dos jejuns e abstinências da Igreja e não deixava passar um dia sem ao menos duas disciplinas corporais. Mesmo em sua última enfermidade, o Irmão Enfermeiro observou que a proximidade da morte não o fazia tirar a camisa de cilício, tamanha era sua vontade de morrer na cruz. Os sofrimentos de sua agonia, que foram cruéis, poderiam ter substituído as mais rigorosas penitências. Quando lhe perguntaram se sofria muito, ele respondeu com ar alegre: 'Estou passando pelo meu Purgatório antes de partir para o Céu'.

O Irmão Lourenço nasceu no dia da Epifania e Nosso Senhor revelou-lhe que esse mesmo dia seria também o de sua morte. Ele indicou a hora na noite anterior; e, quando o Irmão Enfermeiro o visitou ao amanhecer, disse com um sorriso de dúvida: 'Não é hoje, irmão, que esperas desfrutar da visão de Deus?' 'Sim' - respondeu ele - 'assim que eu receber o Corpo do meu Salvador pela última vez'. De fato, ele recebeu a Sagrada Comunhão e expirou sem luta e sem agonia. Há, portanto, todas as razões para acreditar que ele falava com um conhecimento sobrenatural da verdade ao dizer: 'Estou passando pelo meu Purgatório antes de partir para o Céu'.

Outro servo de Deus recebeu da própria Santíssima Virgem a garantia de que seus sofrimentos terrenos substituiriam o Purgatório. Refiro-me ao Padre Michel de la Fontaine, que adormeceu suavemente no Senhor no dia 11 de fevereiro de 1606, em Valência, na Espanha. Ele foi um dos primeiros missionários a trabalhar pela salvação do povo peruano. Sua maior preocupação ao instruir os novos convertidos era inspirá-los a um horror soberano ao pecado e levá-los a uma grande devoção à Mãe de Deus, falando das virtudes daquela admirável Virgem e ensinando-os a rezar o rosário em sua honra.

Maria, por sua vez, não recusava os favores que lhe eram pedidos. Um dia, quando exausto de cansaço, estava prostrado no chão, sem forças para se levantar, ele foi visitado por aquela que a Igreja, com razão, chama de Consoladora dos Aflitos. Ela reanimou sua coragem, dizendo-lhe: 'Confiança, meu filho; suas fadigas substituirão o Purgatório para você; suporte seus sofrimentos pacientemente, e, ao deixar esta vida, sua alma será recebida na morada dos bem-aventurados'.

Essa visão foi, para o Padre Michel de la Fontaine, durante a vida, mas especialmente na hora de sua morte, uma fonte abundante de consolação. Em gratidão por esse favor, ele praticava, a cada semana, alguma penitência especial. No momento em que expirou, um religioso de eminente virtude viu sua alma partir para o Céu acompanhada pela Santíssima Virgem, pelo Príncipe dos Apóstolos, São João Evangelista e São Inácio, o fundador da Companhia de Jesus.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCIV)


Capítulo XCIV

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - São Tomás de Aquino, sua Irmã e a Aparição do Irmão Romano - O Arcipreste Ponzoni e Dom Alfonso Sánchez - Santa Margarida Maria e a Incredulidade de Madre Greffier 

O Doutor Angélico - Santo Tomás de Aquino - era também muito devoto das almas sofredoras, que lhe apareceram várias vezes, como ele próprio testemunhou. Ele oferecia suas orações e sacrifícios a Deus especialmente pelas almas dos falecidos que ele conhecera ou com quem tinha parentesco. Quando era professor de Teologia na Universidade de Paris, perdeu uma irmã que faleceu em Cápua, no convento de Santa Maria, do qual era abadessa. Assim que soube de sua morte, recomendou fervorosamente sua alma a Deus. Dias depois, ela lhe apareceu, suplicando que tivesse piedade dela e intensificasse as suas súplicas, pois sofria cruelmente nas chamas da outra vida. Tomás apressou-se em oferecer todas as satisfações possíveis por ela e solicitou também as orações de vários amigos. Assim, obteve a libertação de sua irmã, que veio pessoalmente anunciar-lhe a boa nova.

Algum tempo depois, tendo sido enviado a Roma por seus superiores, a alma de sua irmã manifestou-se a ele em toda a glória de uma alegria triunfante. Ela disse que suas orações foram ouvidas, que estava livre do sofrimento e prestes a gozar do repouso eterno no seio de Deus. Familiarizado com essas comunicações sobrenaturais, o santo não hesitou em interrogar a aparição, perguntando sobre o destino de seus dois irmãos, Arnoldo e Landolfo, que haviam falecido anteriormente. 'Arnoldo está no Céu' -respondeu a alma - 'e goza de um alto grau de glória por ter defendido a Igreja e o Sumo Pontífice contra as agressões do imperador Frederico. Quanto a Landolfo, ele ainda está no Purgatório, onde sofre muito e precisa de assistência. Quanto a você, meu querido irmão' - acrescentou - 'um lugar magnífico o aguarda no Paraíso, em recompensa por tudo o que você fez pela Igreja. Apresse-se em concluir as obras que iniciou, pois em breve você se unirá a nós'. A história conta que, de fato, ele viveu apenas por um curto período após esse evento.

Em outra ocasião, o mesmo santo, estando em oração na Igreja de São Domingos, em Nápoles, viu aproximar-se o Irmão Romano, que o sucedera em Paris na cadeira de teologia. O santo pensou inicialmente que ele tinha acabado de chegar de Paris, pois ignorava a sua morte. Assim, levantou-se, foi ao seu encontro, saudou-o e perguntou sobre sua saúde e o motivo da viagem. ''Não pertenço mais a este mundo' - disse o religioso com um sorriso - 'e, pela misericórdia de Deus, já desfruto da bem-aventurança eterna. Venho por ordem de Deus encorajá-lo em seus trabalhos'. 'Estou em estado de graça?' - perguntou imediatamente Tomás. 'Sim, querido irmão, e suas obras são muito agradáveis a Deus'. 'E você, teve que sofrer no Purgatório?' 'Sim, por quatorze dias, devido a pequenas infidelidades que não expiei suficientemente na Terra'. Então Tomás, cuja mente estava constantemente ocupada com questões teológicas, aproveitou a oportunidade para tentar penetrar o mistério da visão beatífica; mas recebeu como resposta este versículo do Salmo 47: Sicut audivimus, sic vidimus in civitate Dei nostri – Como aprendemos pela fé, vimos com nossos olhos a cidade do nosso Deus'. Dizendo essas palavras, a aparição desapareceu, deixando o Doutor Angélico inflamado pelo desejo do Bem Eterno.

Mais recentemente, no século XVI, um favor semelhante, mas talvez mais maravilhoso, foi concedido a um zelador das almas do Purgatório, amigo íntimo de São Carlos Borromeu. O Venerável Gratien Ponzoni, arcipreste [decano] de Arona, dedicou sua vida às almas sofredoras. Durante a peste que vitimou tantas pessoas na diocese de Milão, Ponzoni, além de ministrar os sacramentos aos doentes, não hesitou em assumir o papel de coveiro, enterrando os mortos, pois o medo havia paralisado a coragem de todos. Com zelo e caridade verdadeiramente apostólicos, ajudou muitas vítimas em seus últimos momentos e enterrou-as no cemitério próximo à sua igreja de Santa Maria.

Certo dia, após o Ofício de Vésperas, ao passar pelo cemitério com Dom Alfonso Sánchez, governador de Arona, Ponzoni parou, impressionado por uma visão extraordinária. Temendo uma ilusão, perguntou ao governador: 'Senhor, você vê o mesmo espetáculo que eu?' 'Sim' - respondeu o governador - 'vejo uma procissão de mortos avançando de seus túmulos para a igreja; e confesso que, até você falar, não acreditava em meus olhos'. Convencido da realidade da aparição, o arcipreste concluiu: 'Provavelmente são vítimas recentes da peste, que querem manifestar sua necessidade de orações'” Ele imediatamente ordenou que os sinos tocassem e convidou os paroquianos para um serviço solene pelos mortos no dia seguinte.

Essas aparições, atestadas por testemunhas confiáveis e santos como Tomás de Aquino, demonstram a importância de orações pelas almas do Purgatório. Ainda hoje, devemos ser prudentes, mas também abertos à fé, evitando incredulidade excessiva, especialmente quando se trata da glória de Deus e do bem do próximo.

Vemos aqui duas pessoas cujo bom senso as protegeu contra qualquer perigo de ilusão e que, ambas impressionadas ao mesmo tempo ao verem a mesma aparição, hesitaram em acreditar nela até estarem convencidas de que seus olhos estavam testemunhando o mesmo fenômeno. Não há o menor espaço para alucinação, e qualquer pessoa sensata deve admitir a realidade de um acontecimento sobrenatural, atestado por tais testemunhas. Também não podemos questionar essas aparições baseadas no testemunho de um Santo Tomás de Aquino, como relatado acima. Devemos evitar rejeitar com demasiada facilidade outros fatos da mesma natureza, desde que sejam atestados por pessoas de santidade reconhecida e verdadeiramente dignas de crédito. Certamente, é necessário sermos prudentes, mas nossa prudência deve ser cristã, igualmente distante da credulidade e daquele espírito orgulhoso e pretensioso com o qual, como já observamos, Jesus repreendeu seus Apóstolos: Noli esse incredulus, sed fidelis – 'Não sejas incrédulo, mas crente' (Jo 20,27).

Monsenhor Languet, Bispo de Soissons, faz a mesma observação em referência a uma circunstância que ele relata na vida da Beata Margarida Maria Alacoque. Madame Billet, esposa do médico da casa – isto é, do convento de Paray, onde residia a bem-aventurada irmã – acabara de falecer. A alma da falecida apareceu à serva de Deus, pedindo suas orações e encarregando-a de alertar o marido sobre dois assuntos secretos relacionados à sua salvação. A santa irmã relatou o ocorrido à sua superiora, Madre Greffier. A superiora ridicularizou a visão e também a quem a relatou; impôs silêncio a Margarida, proibindo-a de dizer ou fazer qualquer coisa relacionada ao que lhe fora solicitado.

A humilde religiosa obedeceu com simplicidade e, com a mesma simplicidade, relatou à Madre Greffier a segunda solicitação que recebeu da falecida alguns dias depois; mas a superiora tratou isso com o mesmo desprezo. No entanto, na noite seguinte, foi despertada por um barulho tão terrível em seu quarto que pensou que morreria de susto. Chamou as irmãs e, quando vieram ajudá-la, ela estava a ponto de desmaiar. Quando se recuperou um pouco, culpou-se por sua incredulidade e não demorou a informar o médico sobre o que havia sido revelado à irmã Margarida. O médico reconheceu o aviso como vindo de Deus e aproveitou-o. Quanto à Madre Greffier, aprendeu pela experiência que, embora a desconfiança seja geralmente a política mais sábia, às vezes é errado levá-la longe demais, especialmente quando estão em jogo a glória de Deus e o bem do próximo.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 21 de dezembro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCIII)

 

Capítulo XCIII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Santa Catarina de Sena e a Salvação da Alma de Palmerine - Santa Madalena de Pazzi e sua Mãe

Deus está mais inclinado a recompensar do que a punir e, se inflige um castigo àqueles que esquecem as almas tão caras ao seu Coração, mostra-se verdadeiramente grato àqueles que o auxiliam junto às almas sofredoras. Em recompensa, dir-lhes-á um dia: 'Vinde, benditos de meu Pai, possuí o reino que vos está preparado. Tivestes misericórdia dos vossos irmãos necessitados e sofredores; em verdade vos digo que, sempre que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes' (Mt 25,40). Muitas vezes, nesta vida, Jesus recompensa as almas compassivas e caridosas com a concessão de muitos favores. 

Santa Catarina de Sena, pela sua caridade, converteu uma pecadora chamada Palmerine, que morreu e foi para o Purgatório. A santa não descansou enquanto não libertou esta alma. Em recompensa, Nosso Senhor permitiu mostrar-se à sua serva, como uma conquista gloriosa da sua caridade. O Beato Raymond conta assim os pormenores: Em meados do século XIV, quando Santa Catarina edificava a sua cidade natal com toda a espécie de obras de misericórdia, uma mulher de nome Palmerine, depois de ter sido objeto da sua mais terna caridade, concebeu uma secreta aversão pelos seus benfeitores, que chegou a degenerar em ódio implacável. Não podendo mais ver nem ouvir a santa, a ingrata Palmerine, amargurada contra a serva de Deus, não cessava de manchar a sua reputação com as mais atrozes calúnias. Catarina fez tudo o que estava ao seu alcance para a conciliar, mas em vão. Então, vendo que a sua bondade, a sua humildade e os seus benefícios não serviam senão para excitar a fúria desta infeliz mulher, implorou fervorosamente a Deus que se dignasse mover aquele coração tão obstinado.

Deus ouviu a sua oração, atingindo Palmerine com uma doença mortal; mas, ainda assim, este castigo não foi suficiente para a fazer entrar em si. Em troca de toda a ternura que a santa lhe dedicava, a infeliz mulher carregou-a de insultos e expulsou-a da sua presença. Entretanto, o seu fim aproximava-se e um sacerdote foi chamado para administrar os últimos sacramentos. A doente não estava em condições de os receber, devido ao ódio que alimentava e ao qual se recusava a renunciar. Ao ouvir isto, e vendo que a infeliz criatura já tinha um pé no Inferno, Catarina derramou uma torrente de lágrimas e ficou inconsolável. Durante três dias e três noites, não cessou de suplicar a Deus em seu favor, juntando o jejum à oração. 'Senhor' - dizia ela - 'permitirás que esta alma se perca por minha causa? Conjuro-vos que me concedais, a qualquer preço, a sua conversão e a sua salvação. Castigai-me pelo seu pecado, de que eu sou a causa: não é a ela, mas a mim, que o castigo deve atingir. Senhor, não me recuseis a graça que vos peço: não vos deixarei enquanto não a tiver obtido. Em nome da vossa bondade, da vossa misericórdia, suplico-vos, misericordiosíssimo Salvador, que não permitais que a alma desta minha irmã deixe o seu corpo enquanto não for restituída à vossa graça'.

A sua oração, acrescenta o seu biógrafo, foi tão poderosa que impediu a morte da doente. A sua agonia durou três dias e três noites, para grande espanto das enfermeiras. Durante este tempo, Catarina continuou a interceder e acabou por obter a vitória. Deus não resistiu e fez um milagre de misericórdia. Um raio de luz celeste penetrou no coração da moribunda, mostrou-lhe a sua culpa e incitou-a ao arrependimento. A santa, a quem Deus revelou isto, apressou-se a ir ter com a doente. Logo que a mulher a viu, deu-lhe todos os sinais de consideração e agradecimento, acusou-se em voz alta da sua falta, recebeu com piedade os últimos sacramentos e morreu na graça de Deus.

Apesar da sinceridade da sua conversão, era de recear que uma pecadora que escapara por pouco ao Inferno tivesse de passar por um Purgatório severo. A caridosa Catarina continuou a fazer tudo o que estava ao seu alcance para apressar o momento em que Palmerine seria admitido à glória do Paraíso. Tanta caridade não podia deixar de ter a sua recompensa. Nosso Senhor - escreve o Beato Raymond - mostrou à sua esposa aquela alma salva pelas suas orações. Era tão brilhante que ela me disse não encontrar palavras capazes de exprimir a sua beleza. Não estava ainda admitida à glória da visão beatífica, mas tinha aquele brilho que a criação e a graça do batismo lhe conferem. Nosso Senhor disse-lhe então: 'Olha, minha filha, esta alma perdida que encontraste!' E acrescentou: 'Não te parece muito bela e preciosa? Quem não suportaria todo o tipo de sofrimento para salvar uma criatura tão perfeita e introduzi-la na vida eterna? Se Eu, que sou a Beleza Suprema, de quem emana toda a beleza, me deixei cativar pela beleza das almas, a ponto de descer à terra e derramar o meu Sangue para as redimir, com quanto maior razão não deveríeis trabalhar uns pelos outros, para que não se percam criaturas tão admiráveis. Se vos mostrei esta alma, foi para que sejais ainda mais zelosos em tudo o que diz respeito à salvação das almas'.

Santa Madalena de Pazzi, tão cheia de devoção pelos mortos, esgotou todos os recursos da caridade cristã em favor de sua mãe, depois que esta partiu desta vida. Quinze dias depois da sua morte, Jesus, querendo consolar a sua esposa, mostrou-lhe a alma da sua querida mãe. Madalena viu-a no Paraíso, vestida com um esplendor deslumbrante e rodeada de santos, que pareciam ter grande interesse por ela. Ouviu a alma bendita dar-lhe três ordens, que ficaram para sempre impressas na sua memória: 'Cuida, minha filha' - disse ela - 'de descer o mais baixo possível na humildade, de observar a obediência religiosa e de cumprir com prudência tudo o que ela prescreve'. Dizendo isso, Madalena viu sua abençoada mãe desaparecer de vista e permaneceu inundada com a mais doce consolação.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 30 de novembro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCII)

Capítulo XCII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Castigo para com os que Esquecem as Almas Sofredoras - Venerável Archangela Panigarola e a Alma do seu Pai

Se as almas são tão gratas para com os seus benfeitores, Nosso Senhor Jesus Cristo, que as ama, que recebe como feito a si mesmo todo o bem que lhes proporcionamos, dar-lhes-á uma recompensa abundante, muitas vezes ainda nesta vida, e sempre na outra. Ele considera os que fazem misericórdia e castiga os que se esquecem de a fazer para com as almas sofredoras.

Vejamos primeiro um exemplo de castigo. A Venerável Archangela Panigarola, religiosa dominicana e prioresa do Mosteiro de Santa Marta de Milão, tinha um zelo extraordinário pelo alívio das almas do Purgatório. Rezava e obtinha orações por todos os seus amigos falecidos, e até por aqueles que lhe eram desconhecidos, mas de cuja morte tinha sido avisada. Seu pai, Gothard, a quem ela amava ternamente, era um desses cristãos do mundo que raramente pensavam em rezar pelos mortos. Ele próprio morreu e, muito desconsolada, Archangela compreendeu que o seu querido pai precisava mais das suas orações do que das suas lágrimas. Por isso, tomou a resolução de o recomendar a Deus por sufrágios especiais. Mas, por estranho que pareça, esta resolução quase nunca foi posta em prática; esta rapariga, tão piedosa e devota do seu pai, fez muito pouco pela sua alma. Deus permitiu que, apesar das suas santas resoluções, ela o esquecesse continuamente e se interessasse por outros. 

Por fim, um acontecimento inesperado explicou este esquecimento inusitado e despertou a sua devoção em favor do pai. No dia da festa de todos os santos, permaneceu isolada na sua cela, ocupada exclusivamente em exercícios de piedade e penitência para alívio das santas almas. De repente, o seu anjo apareceu-lhe, tomou-a pela mão e conduziu-a em espírito ao Purgatório. Entre as primeiras almas que viu, reconheceu a de seu pai, mergulhada numa lagoa de água gelada. Mal Gothard viu sua filha e, aproximando-se dela, censurou-a dolorosamente por tê-lo abandonado em seus sofrimentos, enquanto ela mostrava tanta caridade para com os outros, a quem constantemente socorria, e frequentemente livrava aqueles que, no entanto, lhe eram estranhos.

Archangela ficou durante algum tempo confusa diante estas censuras, que sabia merecer; em breve, porém, derramando uma torrente de lágrimas, respondeu: 'Farei, meu querido pai, tudo o que me pedes. Queira Deus dar ouvidos às minhas súplicas e livrar-te rapidamente'. Enquanto isso, ela não podia se recuperar de seu espanto, nem entender como ela poderia ter esquecido tanto o seu amado pai. Depois de a levar de volta, o seu anjo disse-lhe que esse esquecimento tinha acontecido por uma disposição da Justiça Divina. 'Deus' - disse ele - 'permitiu assim como castigo pelo pouco zelo que, durante a vida, o teu pai manifestou por Deus, pela sua própria alma e pela do seu próximo. Vistes como ele foi atormentado e entorpecido num lago de gelo; este foi o castigo da sua tepidez no serviço de Deus e da sua indiferença em relação à salvação das almas'.

'Vosso pai não era um homem imoral, é verdade, mas mostrava pouca inclinação para a aquisição da virtude e para a prática das obras de piedade e caridade a que a Igreja exorta os fiéis. É por isso que Deus permitiu que ele fosse esquecido, mesmo por vós, que lhe teríeis dado demasiado alívio. Este é o castigo que a Justiça Divina costuma infligir àqueles que faltam com o fervor e a caridade. Ele permite que os outros se comportem em relação a eles como agiram para com Deus e para com seus irmãos. Aliás, esta é a regra de Justiça que nosso Salvador estabeleceu no Evangelho: com a medida com que tiverdes medido, também vós sereis medidos' (Mt 7,2).

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sábado, 9 de novembro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCI)

Capítulo XCI

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Conhecimento e as Orações das Almas pelos seus Benfeitores - Doutrina Confirmada por Santos e Santas da Igreja
 
Acabamos de falar da gratidão das santas almas. Por vezes, esta se manifesta, como vimos, de forma bem visível mas, mais frequentemente, exercem-na de forma invisível, por meio das suas orações. As almas rezam por nós não só quando, depois da sua libertação, estão com Deus no Céu, mas também no seu lugar de exílio e no meio dos seus sofrimentos. Embora não possam rezar por si mesmas, obtêm, no entanto, com as suas súplicas, uma grande graça para nós. Tal é a doutrina expressa por dois eminentes teólogos, Bellarmino e Suarez. 'Estas almas são santas' - diz Suarez - 'e queridas por Deus. A caridade impele-as a amar-nos, e elas sabem, pelo menos de um modo geral, a que perigos estamos expostos e que necessidade temos da assistência divina. Por que, então, não rezariam pelos seus benfeitores?'

Por que? A resposta seria: porque não os conhecem. Naquela sombria morada, em meio aos seus tormentos, como poderiam saber quem são aqueles que os assistem com os seus sufrágios? A esta objeção pode-se responder que as almas sentem pelo menos o alívio que recebem e a assistência que lhes é prestada; isto basta, mesmo que ignorem a fonte de origem, para invocar as bênçãos do Céu sobre os seus benfeitores, sejam eles quem forem, e que são conhecidos por Deus.

Mas, na realidade, eles não sabem de quem recebem auxílio nos seus sofrimentos? A sua ignorância a esse respeito não está provada, e temos fortes razões para crer que tal ignorância não existe. Será que o seu anjo guardião, que ali habita com eles para lhes dar toda a consolação ao seu alcance, os privaria desse conhecimento consolador? Esse conhecimento não está conforme à doutrina da comunhão dos santos? A relação que existe entre nós e a Igreja Penitente não seria tanto mais perfeita quanto é recíproca e se as almas conhecessem muito bem os seus benfeitores?

Esta doutrina é confirmada por um grande número de revelações particulares e pela prática de várias pessoas santas. Já dissemos que Santa Brígida, num dos seus êxtases, ouviu várias almas gritarem em voz alta: 'Senhor Deus todo-poderoso, recompensai cem vezes mais aqueles que nos assistem com as suas orações e que Vos oferecem as suas boas obras, para que possamos gozar da luz da Vossa Divindade!'.

Lemos na Vida de Santa Catarina de Bolonha que ela tinha uma terníssima devoção para com as santas almas do Purgatório; que rezava por elas com muita frequência e com o maior fervor; que ela se recomendava a elas com a maior confiança nas suas necessidades espirituais, e aconselhava os outros a fazerem o mesmo, dizendo: 'Quando quero obter qualquer favor do nosso Pai do Céu, recorro às almas que estão detidas no Purgatório; peço-lhes que apresentem o meu pedido à Divina Majestade em seu próprio nome, e sinto que sou ouvida pela sua intercessão'. Um santo sacerdote dos nossos dias, cuja causa de beatificação foi iniciada em Roma, o Venerável Vianney*, o Cura d'Ars, dizia a um eclesiástico que o consultava: 'Se soubéssemos quão grande é o poder das boas almas do Purgatório junto do Coração de Deus, e se soubéssemos todas as graças que podemos obter por sua intercessão, elas não seriam tão esquecidas. Devemos, portanto, rezar muito por elas, para que elas rezem muito por nós'.

* o texto original data de 1893; São João Maria Vianney foi canonizado em 31 de maio de 1925.

Estas últimas palavras de [São João] Vianney mostram a verdadeira maneira de recorrer às almas do Purgatório; devemos assisti-las, para obter em troca as suas orações e os efeitos da sua gratidão - devemos rezar muito por elas, para que rezem muito por nós. Não se trata aqui de as invocar como invocamos os santos do Céu. Não é esse o espírito da Igreja que, antes de tudo, reza pelos defuntos e os assiste com os seus sufrágios. Mas não é contrário ao espírito da Igreja, nem à piedade cristã, procurar alívio para as almas, com a intenção de obter em troca, por meio do auxílio das suas orações, os favores que desejamos. Assim, é um ato louvável e piedoso oferecer uma missa pelos defuntos quando temos necessidade de alguma graça particular. Se, quando as almas santas estão ainda nos seus sofrimentos, as suas orações são tão poderosas, podemos facilmente conceber que serão ainda muito mais eficazes quando, estando inteiramente purificadas, essas almas estiverem diante do trono de Deus.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog

sábado, 19 de outubro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XC)

 

Capítulo XC

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Caso do Arcebispo Sandoval em Louvain - O Advogado que Renunciou ao Mundo - A Aparição do Irmão Latti ao Dr. Verdiano

Citemos aqui outro exemplo, tanto mais digno de menção quanto um grande papa, Clemente VIII, viu nele o próprio dedo de Deus e recomendou sua publicação para a edificação da Igreja. 'Vários autores' - diz o Padre Rossignoli - 'relataram a maravilhosa assistência que Cristóvão Sandoval, Arcebispo de Sevilha, recebeu das almas do Purgatório'. Ainda criança, ele tinha o costume de distribuir parte do seu dinheiro de bolso em esmolas para o benefício das santas almas. A sua piedade aumentava com a idade; por amor das pobres almas sofredoras, dava tudo o que podia dispor, chegando mesmo a privar-se de várias pequenas coisas úteis ou necessárias. Quando prosseguia os seus estudos na Universidade de Louvain, aconteceu que algumas cartas que esperava de Espanha se atrasaram, pelo que se viu reduzido a tais dificuldades pecuniárias que mal tinha dinheiro para comprar comida. Nesse momento, um pobre pediu-lhe uma esmola por amor das almas do Purgatório e, o que nunca lhe tinha acontecido, viu-se obrigado a recusar.

Afligido por esta circunstância, entrou em uma igreja. 'Se' - disse ele - 'não posso dar uma esmola pelas minhas pobres almas, posso pelo menos dar-lhes a ajuda pelas minhas orações'. Mal tinha acabado a sua oração quando, ao sair da igreja, foi abordado por um belo jovem, vestido como um viajante, que o saudou com respeitosa afabilidade. Cristóvão experimentou um sentimento de temor religioso, como se estivesse na presença de um espírito em forma humana. Mas foi logo tranquilizado pelo seu amável interlocutor, que lhe falou com a maior convicção do Marquês de Denia, seu pai, dos seus parentes e amigos, tal como o faria um espanhol recém-chegado da Península. Terminou pedindo-lhe que o acompanhasse a um hotel, onde poderiam jantar juntos e estar mais à vontade. Sandoval, que não comia nada desde o dia anterior, aceitou de bom grado a oferta. Sentaram-se então à mesa e continuaram a conversar agradavelmente. Depois da refeição, o forasteiro deu a Sandoval uma quantia em dinheiro, pedindo-lhe que a aceitasse e que a utilizasse para o fim que quisesse, acrescentando que o Marquês, seu pai, o indenizaria assim que regressasse à Espanha. Depois, com o pretexto de tratar de algum negócio, retirou-se e Cristóvão nunca mais o viu. Apesar de todas as suas indagações sobre o estrangeiro, nunca conseguiu obter qualquer informação a seu respeito. Ninguém, nem em Louvain nem na Espanha, tinha visto ou conhecido um jovem que correspondesse à sua descrição. Quanto à soma de dinheiro, era exatamente a quantia de que o piedoso Cristóvão necessitava para fazer face às despesas até à chegada das suas cartas, e esse dinheiro nunca mais foi reclamado à sua família.

Estava, por isso, convencido de que o Céu tinha feito um milagre em seu favor e tinha enviado em seu auxílio uma daquelas almas que ele próprio tinha aliviado com as suas orações e esmolas. Esta opinião foi confirmada pelo Papa Clemente VIII, a quem contou o fato quando foi a Roma receber as Bulas de elevação ao Episcopado. Este Pontífice, impressionado com as circunstâncias extraordinárias do caso, aconselhou-o a dar a conhecer o fato a todos para a edificação dos fiéis; considerou-o como um favor do Céu, que provava quão preciosa é, aos olhos de Deus, a caridade para com os defuntos.

Tal é a gratidão das almas santas que deixaram este mundo, que elas a testemunham até mesmo pelos favores que lhes foram concedidos enquanto ainda estavam nesta vida. Conta-se nos Anais dos Frades Pregadores que, entre os que foram receber o hábito das mãos de São Domingos em 1221, havia um advogado que abandonara a sua profissão em circunstâncias extraordinárias. Estava unido por laços de amizade a um jovem de grande piedade, a quem assistiu caridosamente durante a doença de que morreu. Isto foi suficiente para levar o falecido a obter para ele o maior de todos os benefícios, o da conversão e vocação à vida religiosa. Cerca de trinta dias depois da sua morte, apareceu ao advogado e implorou a sua ajuda, porque estava no Purgatório. 'Os teus sofrimentos são muitos?' - perguntou ao seu amigo. 'Ai de mim!' - respondeu este último - 'se toda a terra, com suas florestas e montanhas, estivesse em chamas, não formaria uma fornalha como aquela em que estou mergulhado'. Tomado de medo, a sua fé reanimou-se e, pensando apenas na sua própria alma, perguntou: 'Em que estado me encontro aos olhos de Deus?' 'Num mau estado' - respondeu a alma - 'e numa profissão perigosa'. 'Então, o que é que eu devo fazer? Que conselho me dás?' 'Abandona o mundo perverso em que estás envolvido e ocupa-te apenas com os assuntos da tua alma'. O advogado, seguindo este conselho, deu todos os seus bens aos pobres e tomou o hábito de São Domingos.

Vejamos como um santo religioso da Companhia de Jesus manifestou a sua gratidão, mesmo depois da morte, ao médico que o assistiu na sua última doença. Francisco Lacci, Irmão Coadjutor, morreu no Colégio de Nápoles em 1598. Era um homem de Deus, cheio de caridade, paciência e terna devoção para com a Santíssima Virgem. Algum tempo depois de sua morte, o Dr. Verdiano entrou na igreja do Colégio para assistir à missa, antes de iniciar as suas visitas. Era o dia em que se celebravam as exéquias do rei Filipe II, falecido quatro meses antes. Quando, ao sair da igreja, se preparava para levar a água benta, aproximou-se um religioso e perguntou-lhe por que razão estava preparado o catafalco e em intenção de quem era a missa a ser celebrada. 'É a missa para o rei Filipe II' - respondeu ele.

Mas, ao mesmo tempo, Verdiano ficou espantado com o fato de um religioso fazer tal pergunta a um desconhecido, e não distinguindo as feições do seu interlocutor na obscuridade do lugar onde se encontrava, perguntou-lhe quem era. 'Sou' - respondeu ele - 'o Irmão Lacci, a quem o senhor assistiu na minha última doença'. O médico olhou-o atentamente, reconhecendo então as feições do religioso. Tomado de espanto, disse: 'Mas tu morreste dessa doença! Então estás a sofrer no Purgatório e vens pedir os nossos sufrágios?' 'Bendito seja Deus, já não tenho dores nem sofrimentos. Não preciso dos vossos sufrágios. Estou nas alegrias do Paraíso'. 'E o rei Filipe, também já está no Paraíso?' 'Sim, ele está lá, mas colocado tão abaixo de mim quanto foi elevado acima de mim na Terra. Quanto ao senhor, Dr. Verdiano, onde pensa fazer a sua primeira visita médica hoje?' Tendo Verdiano respondido que ia atender uma certa pessoa, que estava perigosamente doente, Lacci avisou-o para se precaver de um grande perigo que o ameaçava à porta da casa que ele ia visitar. De fato, o médico encontrou ali uma grande pedra disposta em posição tão perigosa, que tendia a se deslocar a qualquer momento, de modo a feri-lo mortalmente. Esta circunstância material parece ter sido concebida pela Providência para provar a Verdiano que ele não tinha sido vítima de uma ilusão.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXXIX)

Capítulo LXXXIX

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - A Mulher Napolitana e o Bilhete Misterioso

Para provar que as almas do Purgatório demonstram a sua gratidão até por favores temporais, o Padre Rossignoli relata um fato ocorrido em Nápoles, que tem alguma semelhança com o que acabamos de ler. Se não é dado a todos oferecer a Deus as abundantes esmolas de Judas Machabeus, que enviou doze mil dracmas a Jerusalém para sacrifícios e orações em favor dos mortos, são muito poucos os que não podem ao menos fazer a oferta da pobre viúva do Evangelho, que foi elogiada pelo próprio Salvador. Ela havia dado apenas dois cêntimos, mas, disse Jesus: 'todos deitaram do que tinham em abundância; esta, porém, pôs, de sua indigência, tudo o que tinha para o seu sustento' (Mc 12, 44).  

Este exemplo comovente foi imitado por uma humilde mulher napolitana, que tinha a maior dificuldade em prover as necessidades da sua família. Os recursos da casa dependiam dos ganhos diários do marido, que todas as noites trazia para casa o fruto do seu trabalho. Infelizmente, um dia esse pobre pai foi preso por dívidas, de modo que a responsabilidade de sustentar a família recaiu sobre a infeliz mãe, que não possuía nada além de sua confiança em Deus. Com fé, ela implorou à Providência Divina que viesse em seu auxílio e, especialmente, para que livrasse o seu marido que definhava na prisão apenas por causa de sua pobreza.

Dirigiu-se então a um cavalheiro rico e benevolente e, contando-lhe a triste história dos seus infortúnios, suplicou-lhe com lágrimas que a ajudasse. Deus permitiu que ela recebesse dele apenas uma esmola insignificante, no valor de uma moeda equivalente a apenas dez cêntimos. Profundamente aflita, entrou numa igreja para implorar ao Deus dos indigentes que a socorresse na sua aflição, pois nada tinha a esperar na terra. Estava absorta em orações e lágrimas quando, por inspiração, sem dúvida, do seu bom anjo da guarda, lhe ocorreu interceder pelas almas santas em seu favor, pois tinha ouvido falar muito dos seus sofrimentos e da sua gratidão para com aqueles que as ajudam. Cheia de confiança, dirigiu-se à sacristia, ofereceu aquela simples moeda e perguntou a um sacerdote se seria possível celebrar uma missa pelos defuntos. O bom padre, que lá se encontrava, apressou-se a subir ao altar para rezar a missa nessa intenção, enquanto a pobre mulher, prostrada em recolhimento, assistia o Santo Sacrifício, oferecendo as suas orações pelos defuntos.

Regressou à casa muito consolada, como se tivesse recebido a certeza de que Deus tinha ouvido a sua oração. Quando percorria as ruas populosas de Nápoles, foi abordada por um ancião, que lhe perguntou de onde vinha e para onde ia. A infeliz mulher explicou-lhe a sua aflição e o uso que tinha feito da pequena esmola que recebera. O velho pareceu profundamente sensibilizado com a sua miséria, disse-lhe algumas palavras de encorajamento e deu-lhe um bilhete fechado num envelope, mandando que o entregasse a um certo senhor em particular, deixando-a em seguida.

A mulher apressou-se a procurar o tal senhor e a entregar a ele o bilhete recebido. Este, ao abrir o envelope, foi tomado de espanto e intensa comoção, pois reconheceu imediatamnete a letra do seu pai, falecido há algum tempo. 'Onde arranjaste esta carta?' - exclamou ele, completamente atordoado. 'Senhor' - respondeu a boa mulher - 'foi um ancião que me abordou na rua. Falei-lhe da minha aflição e ele mandou-me entregar-lhe este bilhete em seu nome. O seu semblante assemelha-se muito ao retrato que o senhor tem sobre a porta'. Cada vez mais impressionado por estas circunstâncias, o cavalheiro pegou de novo o bilhete e o leu em voz alta: 'Meu filho, o teu pai acaba de sair do Purgatório, graças a uma missa que a portadora deste recado mandou celebrar esta manhã. Ela está em situação muito aflita e eu a recomendo aos seus cuidados'. 

Leu e releu aquelas linhas, traçadas por aquela mão que lhe era tão cara, por um pai que agora estava entre os eleitos. Lágrimas de alegria corriam-lhe pelas faces quando se voltou para a mulher. 'Pobre mulher' - disse ele - 'com a tua esmola insignificante, asseguraste a felicidade eterna daquele que me deu a vida. Por minha vez, assegurarei a tua felicidade temporal. Tomo a meu cargo suprir a partir de agora todas as tuas necessidades e as de toda a tua família'. Que alegria para aquele senhor! Que alegria para aquela pobre mulher! É difícil dizer de que lado encontrava-se a maior felicidade. O que é mais importante e mais fácil é ver a instrução que se pode tirar desse fato: ele nos ensina que o menor ato de caridade para com os membros da Igreja Sofredora é precioso aos olhos de Deus e atrai sobre nós milagres de misericórdia.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXXVIII)

 

Capítulo LXXXVIII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - O Relato do Abade Postel sobre a Pobre Serva de Paris

O Abade Postel, tradutor da obra de F. Rossignoli, relata o seguinte fato, ocorrido em Paris, por volta do ano 1827, e que está inserido como nº 27 na sua obra Merveilles du Purgatoire. Uma pobre criada, educada como boa cristã na sua aldeia natal, tinha adotado o piedoso costume de mandar rezar todos os meses uma missa pelas almas defuntas. Os seus patrões mudaram-se para a capital levando-a consigo e, aí também, nunca se descuidou disso, tendo ainda como regra assistir ao Divino Sacrifício e unir as suas orações às do sacerdote, especialmente pela alma que estava mais perto de completar a sua expiação. Esta era a sua intenção habitual.

Deus não tardou prová-la com uma longa doença, que não só lhe causou cruéis sofrimentos, mas também a fez perder o seu lugar de trabalho e dispender os seus últimos recursos. No dia em que pôde deixar o hospital, só lhe restavam um franco e alguns centavos. Depois de ter dirigido aos Céus uma oração fervorosa, cheia de confiança, foi à procura de um serviço. Disseram-lhe que provavelmente encontraria emprego numa certa família no outro extremo da cidade, para onde se dirigiu e, como era obrigada a passar diante da Igreja de Saint Eustache, ali entrou. A presença de um padre no altar recordou-lhe que, neste mês, ela havia esquecido da sua habitual missa pelos defuntos, e que este era o dia em que, desde há muitos anos, estava habituada a fazer tal boa obra. Mas o que é que ela haveria de fazer? Se se desfizesse do seu último franco, não lhe restaria mais nada, nem mesmo algo para matar a fome. Era uma luta entre a devoção e a prudência humana. A devoção levou a melhor. 'Afinal de contas' - disse para si mesma - 'o bom Deus sabe que é para Ele, e Ele não me abandonará!' Entrando na sacristia, fez o seu ofertório para a missa, à qual assistiu com o seu fervor habitual.

Poucos minutos depois, continuou o seu caminho, cheia de ansiedade, como facilmente se pode depreender. Não dispondo de quaisquer meios, o que é que havia de fazer se não conseguisse arranjar emprego? Estava ainda ocupada com estes pensamentos, quando um jovem pálido, de figura esguia e aspecto distinto, se aproximou dela e lhe perguntou: 'Você está à procura de emprego?' - 'Sim, senhor'. 'Pois bem, vá até a rua tal, número tal, à casa de Madame... Penso que a agradarás e serás admitida lá'. Depois de dizer estas palavras, desapareceu no meio da multidão que passava, sem esperar pelos agradecimentos da pobre rapariga.

Ela encontrou a rua, reconheceu o número e subiu aos apartamentos. Uma criada saiu carregando um embrulho debaixo do braço e proferindo palavras de queixa e raiva. 'A senhora da casa está? - perguntou a recém-chegada. 'Pode estar ou pode não estar' - respondeu a outra - 'o que é que isso me interessa? A senhora abrirá a porta se lhe convier e eu não mais me preocuparei com isso. Adeus!' E desceu os degraus. A nossa pobre rapariga tocou a campainha com mão trêmula e uma voz suave convidou-a a entrar. Encontrou-se na presença de uma velha senhora de aspecto venerável, que a encorajou a manifestar a sua necessidade.

'Senhora' - disse a criada = 'soube esta manhã que a senhoea eta´precisando de uma criada e vim oferecer os meus serviços. Asseguraram-me que a senhora me receberia com bondade'. - 'Oh, minha querida filha, o que me dizes é muito extraordinário. Esta manhã não precisava de ninguém; só ao cabo de meia hora é que despachei uma doméstica insolente, e não há ninguém no mundo, exceto ela e eu, que o possa saber. Quem vos mandou, então?' - 'Foi um cavalheiro, senhora; um jovem cavalheiro que encontrei na rua, que me mandou vir aqui para este fim, e eu louvei a Deus por isso, porque é-me absolutamente necessário que eu encontre um serviço hoje porque não tenho uma moeda nos bolsos'.

A velha senhora não estava compreendendo quem era a pessoa, e estava perdida em conjecturas, quando a criada, erguendo os olhos para os móveis da pequena sala, viu um retrato. 'Veja, senhora' - disse ela imediatamente - 'não se confunda mais; este é o retrato do jovem cavalheiro que falou comigo. É por causa dele que eu vim'.

A estas palavras, a senhora soltou um grande grito e pareceu perder a consciência. Fez a rapariga repetir a história da sua devoção às almas do Purgatório, da missa da manhã e do seu encontro com o desconhecido; depois, lançando-se sobre o pescoço da rapariga, abraçou-a no meio de uma torrente de lágrimas e lhe disse: 'A partir de agora não serás minha serva; serás a minha filha. É o meu filho, o meu único filho, que viste - o meu filho, morto há dois anos, que deve a ti a sua libertação, e que Deus mandou enviar-te até aqui. Não tenho como duvidar disso. Que sejas, pois, abençoada, e rezemos continuamente por todos aqueles que ainda padecem no limiar da eternidade abençoada'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog