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terça-feira, 28 de outubro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLIII/Final)

 

149. A vaidade consiste em um apetite desmedido por elogios e no desejo de que nossos méritos brilhem com glória, e essa glória pode ser considerada vaidosa e perversa de três maneiras diferentes.

Primeiro, quando buscamos ser elogiados por uma virtude ou qualquer outro dom do corpo ou da alma que não possuímos, ou então por alguma posse frágil e transitória que não é digna de elogios, como saúde, beleza e outros dons do corpo, riquezas, pompa e outros bens que são chamados de dons da fortuna. Segundo, quando, ao buscar elogios, valorizamos a estima e a aprovação de alguém cujo julgamento não é confiável. Em terceiro lugar, quando não usamos esse elogio para a honra de Deus ou para o bem do próximo, e isso é sempre pecar contra os ditames da Sagrada Escritura: 'Não nos tornemos desejosos de vaidade' [Fl 2,3] e pode ser um pecado mortal quando buscamos ser elogiados por algum mal que fizemos ou temos a intenção de fazer, ou por algum outro mal que nunca fizemos e não pensamos em fazer, ou ainda aceitar elogios por um bem que não fizemos e que queremos que os outros acreditem que fizemos; também pode ser um pecado mortal se fizermos o bem apenas por respeito humano, com a intenção de sermos vistos e elogiados.

Em resumo, este é sempre um pecado muito perigoso, não tanto por sua gravidade, mas por suas graves consequências e porque impede a alma de receber a ajuda da graça e a dispõe a vários pecados mortais: 'Diz-se que a vaidade é um pecado perigoso, não tanto por causa de sua gravidade, mas porque é uma disposição para pecados graves, na medida em que gradualmente dispõe o homem à perda de todo o bem interior' [D.Th. 2a 2æ,qu. cxxxii, art. 3].

Aquele que sofre de vaidade corre o risco de perder também a sua fé, de acordo com as palavras de Cristo: 'Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a glória que é só de Deus?' [Jo 5,44]. Santo Agostinho, refletindo sobre isto e sobre o quão pouco se conhece este grande mal, afirma que ninguém é mais sábio do que aquele que sabe que este amor pelo louvor é um vício: 'Vê melhor aquele que vê que o amor pelo louvor é um vício' [Lib. 5, De Civ. Dei., cap. xiii ]; ver também São Tomás [2a 2æ, qu. xxi, art. 4; et qu cccv, art. 1; et qu. cxxxi, per tot.; et qu. clxxviii, art. 2].

150. A vaidade é um vício pelo qual o homem, desejando ser supremamente honrado acima de todos os outros, começa a elogiar e exaltar a si mesmo, exagerando e ampliando as coisas de modo a fazer com que seu próprio mérito pareça maior do que é. Também é chamada de ostentação, autoelogio ou atrevimento; e Santo Agostinho a chama de 'a pior de todas as pragas' [Lib. 1 De Ord. cap. xi] e Santo Ambrósio a chama de rede lançada pelo diabo para capturar os mais fortes e espirituais: 'O diabo lança armadilhas que prendem os mais fortes' [Lib. in Luc.]. Este é um vício que não tem medida porque, ao nos vangloriarmos do que não temos, mentimos à nossa própria consciência e a Deus; e como Deus disse de Moab pelo profeta: 'Conheço-lhe a presunção – oráculo do Senhor – a jactância e a vaidade' [Jr 48,30].

Pode ser um pecado mortal quando nos gabamos de algum pecado que cometemos; quando nos elogiamos, desprezando os outros; ou ainda quando nos elogiamos e exaltamos por meio de um excesso de orgulho que nos inunda o coração. O Doutor Angélico observa que este é um caso comum e não raro, e que o hábito é facilmente formado [2a 2æ, qu. lxii, art. 1. Ver também 2a 2æ, qu. cx, art. 2; qu. cxii, art. 1; et qu. cxxxii, art. 5 ad 1; et qu. clxii, art. 4 ad 2].

151. A hipocrisia é um vício pelo qual fingimos demonstrar externamente uma virtude e uma santidade que não possuímos; e é realmente hipócrita aquele que, estando cheio de maldade por dentro, finge ser bom na sua aparência exterior.

Não há vício contra o qual Jesus Cristo tenha protestado tanto em seu Evangelho quanto contra este [Mt 6, Mt 7, Mt 15, Mt 21], condenando-o com oito gritos de 'Ai de vós', que são oito maldições. E São Gregório observa que os hipócritas, cegos pelo orgulho e endurecidos em seus pecados, geralmente morrem impenitentes, sem nunca terem sido iluminados, por uma razão que talvez tenha sido tirada de São Pedro Crisólogo, porque, embora possamos ver que os remédios para a correção de outros vícios fazem bem, a doença da hipocrisia é tão pestilenta que afeta os próprios remédios, de modo que eles só servem para fomentar e aumentar o mal. 'Irmãos' - diz o santo - 'essa pestilência deve ser evitada, pois transforma remédios em doenças, medicamentos em enfermidades, santidade em vício, piedade em pecado'.

A hipocrisia é sempre um pecado mortal quando fingimos ser espirituais e santos e tentamos parecer assim, quando não o somos no coração, preocupando-nos mais com a opinião dos homens do que com a opinião de Deus; e é ainda pior quando afetamos santidade para promover nosso próprio avanço e adquirir crédito para alcançar e praticar o mal; ou então para obter alguma honra ou outro bem temporal.

Dessa forma, também pecamos gravemente por hipocrisia quando nos mostramos muito escrupulosos com obras ou com certas observâncias minuciosas, sem temer, ao mesmo tempo, transgredir os deveres essenciais da religião e do nosso próprio estado de vida, 'tendo abandonado as coisas mais importantes da lei', como aqueles escribas e fariseus que Cristo repreendeu, dizendo que 'filtram um mosquito e engolem um camelo' [Mt 23, 24]. Também quando, em todas as funções relacionadas com o serviço de Deus, fingimos ter uma intenção pura quando não a temos: 'E procuramos agradar não a Deus, mas aos homens; não a conversão, mas o favor do povo' [D. Th. 2a 2æ, qu. lxi, art. 2].

Os Padres da Igreja geralmente chamam a hipocrisia de perversidade, iniquidade, impiedade; e é fácil não apenas cair nesse pecado, mas também acostumar-se tanto a ele que nos leva ao ateísmo. Muitas vezes começamos servindo a Deus com um certo grau de fervor sagrado, mas quando este diminui, deixamos de servir a Deus e apenas fingimos servi-lo para manter as aparências: 'Ai de vós, hipócritas!' [São Tomás, 2a 2æ, qu. xi, per tot.].

152. A desobediência é um pecado pelo qual violamos a ordem de nossos superiores, tratando-os com desprezo, e pode ser um pecado mortal mesmo em pequenas coisas; porque, como diz São Bernardo, não devemos considerar a natureza da coisa ordenada nem a simples transgressão do preceito, mas o orgulho da vontade que não se submete quando deveria: 'Não é a simples transgressão do desejo, mas a contenda orgulhosa da vontade que cria a desobediência criminosa' [Lib. de Præcept et Dispens., cap xi] e a gravidade do pecado pode ser julgada sob três aspectos diferentes.

Primeiro, a posição do superior, porque quanto mais elevada for a posição de quem ordena, mais grave é a desobediência. É um pecado maior desobedecer a Deus do que desobedecer ao homem, um pecado maior desobedecer ao papa do que a um bispo, ou a um pai e a uma mãe do que a outros parentes; e é também um pecado maior desobedecer com desprezo pela pessoa que ordena do que apenas com desprezo pelo mandamento.

Em segundo lugar, em relação à natureza das coisas ordenadas, porque quando estas são de maior importância, especialmente nas leis de Deus, a desobediência é maior; portanto, é um pecado mais grave desobedecer aos preceitos que impõem o amor a Deus do que aqueles que nos ordenam amar o próximo.

Em terceiro lugar, no que diz respeito à forma da ordem, pela qual o superior expressa sua intenção de que deseja ser obedecido em tal ou tal assunto, mas é principalmente o orgulho que agrava a desobediência, pois a vontade se recusa a se submeter como deveria à lei divina [São Tomás, 2a 2æ, qu. lxix, art. 1; et qu. cv per tot.].

153. A discórdia é uma discrepância da vontade que a impede de se conformar à vontade de Deus em assuntos em que deveria se conformar para a glória de Deus e o bem do próximo; e é um pecado grave, porque São Paulo os inclui entre os pecados que excluem aqueles que os cometem do reino dos Céus [Gl 5,20]. E Deus declara seu ódio e repulsa por todos aqueles que disseminam discórdia entre seus pares [Pv 6,9]. As dissensões geralmente surgem do orgulho, que nos leva a nos superestimar e a colocar nosso próprio bem-estar e opiniões contra os dos outros, e disso surgem as brigas, litígios, obstinação, calúnias, facções, ódio, contendas e muitos outros males sem número e sem fim [São Tomás 22, qu. xxxvii, art. 1 et 2; et qu. xxxviii, art. 2; et qu. cxxxii, art. 5].

Recolha-se, pois, interiormente, examine-se e, tendo constatado que, sob um ou outro destes títulos, o orgulho realmente o domina, julgue quão necessário é lutar contra ele com humildade, porque, se o orgulho for vencido, uma série de outros pecados também serão vencidos. E, para se dar coragem, lembre-se disto: perante o tribunal de Deus, os orgulhosos serão condenados, e somente os humildes podem esperar encontrar misericórdia. Dizer que somos humildes é o mesmo que dizer que estamos entre os eleitos e seremos salvos; e dizer que somos orgulhosos é o mesmo que dizer que somos réprobos e perdidos, como afirma São Gregório: 'O orgulho é um sinal certo dos réprobos, assim como a humildade é o sinal dos eleitos' [Hom. 7 in Evang.; et lib. 3, Mor. cap xviii].

E, assim, concluímos esse trabalho. Louvado seja Jesus Cristo!

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

SOBRE O AMOR CRISTÃO


No ano de 1219, durante a Quinta Cruzada, São Francisco de Assis reuniu-se, em meio ao conflito, com o Sultão do Egito Al-Malik Al-Kamel na cidade de Damieta, quando este apresentou ao santo a seguinte questão:

'Se Vosso Senhor ensina no Evangelho que vós não podeis retribuir o mal com o mal, e que não podeis recusar o manto a quem vos quiser tirar a túnica, como, vós cristãos, podeis invadir as nossas terras?

Respondeu-lhe então São Francisco:

'Parece-me que não haveis lido todo o Evangelho. De fato, em outro texto, se diz: Se o teu olho é para ti ocasião de escândalo, arranca-o e lança-o para longe. E com isto, o Senhor quer nos ensinar que, mesmo que um homem seja amigo ou parente, ou até tão caro quanto a pupila dos olhos, devemos estar dispostos a separá-lo, a removê-lo, a arrancá-lo de nós, se ele nos tentar afastar da fé e do amor de Nosso Senhor. E precisamente por este motivo, os cristãos agem conforme a justiça quando invadem as vossas terras e vos combatem, porque vós blasfemais o nome de Cristo e trabalhais para afastar o maior número possível de homens da sua Religião. Mas se em vez disso, vós quisésseis conhecer, confessar e adorar o Criador e Redentor do mundo, então eles vos amariam como a si mesmos'.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (V)

   

PARTE I - SOBRE A MORTE

V. Sobre o Julgamento

Além de tudo o que até agora consideramos como contribuindo para tornar a morte terrível para nós, está o pensamento de que devemos comparecer perante o tribunal de Deus e prestar contas de tudo o que fizemos e deixamos de fazer. Quão terrível é esse julgamento, aprendemos com estas palavras de São Paulo: 'É coisa terrível cair nas mãos do Deus vivo' (Hb 10, 31). Pois, se é muito alarmante cair nas mãos de um homem irado, quanto mais terrível não será cair nas mãos de um Deus onipotente! 

Todos os santos tremiam antecipando a sentença que Deus lhes aplicaria, pois sabiam muito bem como são severos os seus julgamentos. O salmista real diz: 'Não entres em juízo com o teu servo, ó Senhor, pois diante de ti nenhum homem vivo será justificado' (Sl 142,2). E o santo Jó exclama: 'O que farei se Deus se levantar para me julgar? Quando me interrogar, o que responderei? ' (Jó, 31,14).

Mais uma vez, São Paulo diz: 'Não tenho consciência de nada contra mim, mas não estou por isso justificado; mas aquele que me julga é o Senhor' (1Cor 4,4). Lemos também nas vidas dos Padres que o santo abade Agatão ficou dominado pelo medo quando o seu fim se aproximava. Os seus irmãos disseram-lhe: 'Por que temes, reverendo pai, tu que levaste uma vida tão piedosa?' Mas ele respondeu-lhes: 'Os julgamentos de Deus são muito diferentes dos julgamentos dos homens'. O santo abade Elias costumava dizer: 'Há três coisas que temo. Primeiro, temo o momento em que minha alma terá que deixar meu corpo; segundo, o momento em que terei que comparecer perante o tribunal de Deus; terceiro, o momento em que a sentença será proferida sobre mim'. 

Ninguém pode deixar de concordar com as palavras desse homem santo, pois, de fato, além do julgamento geral, não há nada tão temível quanto essas três coisas. Todos os homens bons e santos as temeram, todos as temem. Aqueles que não as temem provam que sabem muito pouco sobre elas ou que quase não meditaram sobre elas. Para o benefício de alguém que possa ser tão pouco esclarecido, darei uma breve instrução sobre o assunto.

Considere, em primeiro lugar, que sensação estranha e nova será para a sua alma quando ela se encontrar separada do corpo, em um mundo desconhecido. Até então, ela não conhecia nenhuma existência separada do corpo; agora, de repente, está separada dele. Até então, ela estava no tempo; agora, passou para a eternidade. Agora, pela primeira vez, seus olhos se abrem e ela vê claramente o que é a eternidade, o que é o pecado, o que é a virtude, quão infinito é o ser da Divindade e quão maravilhosa é sua própria natureza.

Tudo isso lhe parecerá tão maravilhoso que ela ficará quase petrificada de espanto. Após o primeiro instante de admiração, ela será conduzida perante o tribunal de Deus, para que preste contas de todas as suas ações; e o terror que então se apoderará da alma infeliz ultrapassa nossa capacidade de compreensão. Não é de se admirar que o infeliz pecador recue diante de comparecer a um tribunal onde será condenado por todos os seus erros e severamente punido por eles! Não preferiria ele ser jogado em um calabouço escuro e alimentado com pão e água, a ter que comparecer diante desse tribunal e ser exposto à vergonha pública?

Se é tão odioso para um criminoso ser levado perante um magistrado terreno, bem pode a pobre alma tremer de medo quando for apresentada à presença de Deus, o Juiz rigoroso e onisciente, e for obrigada a prestar contas com a maior precisão de todos os pensamentos, palavras, ações e omissões de sua vida passada. O santo Jó reconhece isso quando diz: 'Quem me concederá isso, que Tu me protejas no inferno e me escondas até que a Tua ira passe' (Jó 14,13). Observe que mesmo o paciente Jó prefere ficar deitado em um poço escuro e ficar escondido em uma caverna sombria e lúgubre do que aparecer diante da face de um Deus irado.

Há seis coisas que causam terror na alma, quando ela é chamada ao julgamento particular.

(i) A alma teme porque sabe que seu Juiz é onisciente; que nada pode ser ocultado dele, nem Ele pode ser enganado de forma alguma.

(ii) Porque seu Juiz é onipotente; nada pode resistir a Ele, e ninguém pode escapar dele.

(iii) Porque seu Juiz não é apenas o mais justo, mas o mais rigoroso dos juízes, para quem o pecado é tão odioso que Ele não permitirá que a menor transgressão passe impune.

(iv) Porque a alma sabe que Deus não é apenas seu juiz, mas também seu acusador; ela provocou a sua ira, ofendeu-o, e Ele defenderá a sua honra e vingará cada insulto oferecido a ela.

(v) Porque a alma está ciente de que a sentença, uma vez proferida, é irrevogável; não há recurso para ela em um tribunal superior, é inútil que ela reclame da sentença. Ela não pode ser revertida e, seja ela adversa ou favorável, ela precisa aceitá-la.

(vi) A razão mais poderosa de todas pelas quais a alma teme comparecer perante o tribunal é porque ela não sabe qual será a sentença do Juiz. Ela tem muito mais motivos para temer do que para ter esperança. E todo pensamento de ajuda agora acabou. Uma vez perdida para sempre, é para sempre; uma vez condenada para sempre, é para sempre!

Esses seis pontos enchem a alma de uma angústia e um terror tão indescritíveis que, se ela fosse mortal em vez de imortal, estaria disposta a morrer da morte mais cruel e violenta como forma de escapar.

Considera, além disso, de que forma aparecerás diante do teu Juiz e como ficarás confuso por causa dos teus pecados. Se um homem, em punição por suas más ações, fosse condenado a ser despido até ficar nu na presença de toda uma multidão, quão envergonhado ele se sentiria! Mas se alguma ferida repugnante e nojenta em seu corpo fosse assim revelada à vista, ele ficaria ainda mais envergonhado. Assim será contigo, quando estiveres diante do teu Juiz na presença de muitas hostes de Anjos. Não apenas todas as tuas más ações, pensamentos, palavras e obras serão revelados, mas todas as tuas propensões malignas serão manifestadas a ti, e tu serás exposto a uma vergonha terrível por causa delas.

Não podes negar que essas inclinações malignas se apegam a ti, pois não és dado à ira, à impaciência, à vingança, ao ódio, à inveja, ao orgulho, à vaidade, à sensualidade, à preguiça, à ganância, ao amor próprio, à avareza, à mundanidade e a toda malícia? Essas e outras tendências ruins se apegam à tua alma e a desfiguram de forma tão terrível que, após a morte, ficarás alarmado ao ver a tua própria alma e sinceramente envergonhado de todas as manchas presentes nela.

Em seguida, considera de que maneira o teu santo Juiz te receberá, quando apareceres diante dele não apenas carregado com uma multidão incontável de pecados, mas em um estado de impureza indescritível. Tu ficarás diante dele na maior confusão, sem saber para onde olhar. Sob teus pés está o inferno; acima de ti está o rosto irado do teu Juiz. Ao teu lado, tu vês os demônios que estão lá para te acusar. Em teu interior, tu contemplas todos os teus pecados e más ações. É impossível te esconderes; e, no entanto, essa exposição é intolerável.

Este seria um momento oportuno para explicar como o inimigo maligno irá acusá-lo, como ele trará todos os seus pecados à luz e invocará sobre eles a vingança de Deus; e também como o Deus justo exigirá o relato mais preciso de todas as suas ações. Mas isso tem sido tema tão frequente dos pregadores que, por uma questão de brevidade, não vou me alongar sobre essa parte do meu assunto, mas concluirei com a seguinte historieta.

Dois amigos íntimos combinaram que aquele que morresse primeiro apareceria ao sobrevivente, desde que Deus lhe permitisse fazê-lo. Quando finalmente um deles foi levado pela morte, fiel à sua promessa, ele apareceu ao seu amigo, mas com um aspecto triste e abatido, dizendo: 'Ninguém sabe! Ninguém sabe! Ninguém sabe!' 'O que é que ninguém sabe?', perguntou seu amigo. E o espírito respondeu: 'Ninguém sabe quão rigorosos são os julgamentos de Deus e quão severos são os seus castigos!'

Sendo assim, o que devemos fazer para não cair nas mãos de um Juiz tão irado? Não posso dar-te melhor conselho do que este: arrepende-te dos teus pecados, faz uma confissão sincera, corrige os teus caminhos e começa a pensar seriamente na tua salvação eterna. Enquanto ainda estás de boa saúde, pensa às vezes na morte e prepara-te para ela. Não adie isso até que a velhice chegue ou uma doença mortal o alcance. Não há arte maior nem mais importante na terra do que a arte de ter uma boa morte. Toda a sua eternidade depende disso: uma eternidade de felicidade incomparável ou de tormento indescritível.

Apenas uma prova lhe é concedida; se você não passar por essa única prova, tudo estará perdido, e uma eternidade de miséria estará diante de você. E se você não aprendeu essa arte tão importante durante sua vida, quando estava bem e forte, como poderá praticá-la para seu ganho eterno quando estiver em seu leito de morte? Será totalmente impossível para você fazer isso, a menos que Deus faça um milagre de misericórdia em seu favor. Você não pode contar com isso; Deus não prometeu isso, nem você mereceu um favor tão grande. Portanto, deixe-me implorar que siga meu conselho amigável e se prepare frequentemente para a morte enquanto estiver com plena saúde e força; pois este é o único meio pelo qual você pode esperar tornar-se proficiente na arte de morrer bem e passar com sucesso pela única provação que o espera, e pela qual o seu destino eterno será determinado.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

A CIÊNCIA DE DEUS (VII)


Há bastante tempo, um jovem e petulante estudante universitário embarcou em um trem na França, sentando-se ao lado de um senhor de idade que lhe pareceu ser um camponês abastado. O estudante observou que, sob a aparência de silêncio, o homem mexia suavemente os lábios enquanto fazia correr as contas de um terço por entre os dedos.

Não lhe bastando a companhia e o fato, o jovem fez questão de interromper a prece do outro:
- Desculpe-me a intromissão, mas o senhor acredita mesmo em coisas tão tolas e ultrapassadas?
- Sim, acredito sim. E você, não? - respondeu o homem.

O estudante riu e comentou então:
- Eu não acredito nessas bobagens. Quer um conselho? Jogue este terço fora e aprenda a verdade que a ciência tem a dizer sobre isso.
- Ciência? Eu não entendo essa ciência. Talvez você possa me explicar - retrucou o velho homem, olhando fixamente o jovem nos olhos.

O estudante universitário percebeu que o homem ficara profundamente comovido. Para não ferir ainda mais os sentimentos do outro, disse cheio de empáfia: 
- Por favor, me dê o seu endereço e eu lhe enviarei alguns artigos e documentos que vão esclarecer muito esse assunto para o senhor.
- Está bem. Aqui está o meu cartão.

O cartão identificava o portador: Louis Pasteur - Diretor do Instituto de Pesquisa Científica de Paris.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLII)

 

145. O santo papa São Gregório percebeu o orgulho em todos os tipos de pessoas e descreveu suas características. Alguns, diz ele, orgulham-se de seus bens, outros de sua eloquência, alguns orgulham-se de coisas mundanas e outros de coisas da Igreja e dos dons de Deus de tal forma que, cegos pela vaidade, somos incapazes de discernir isso; quer nos exaltemos acima dos outros por causa da glória mundana ou dos dons espirituais, o orgulho nunca saiu do nosso coração porque está domiciliado ali e, para se disfarçar, assume uma aparência falsa.

É bom saber também que o orgulho não tenta superiores e inferiores da mesma maneira. Ele tenta os grandes, fazendo-os entender que alcançaram sua posição por seu próprio mérito e que nenhum de seus inferiores poderia ser comparado a eles; ele tenta seus subordinados, desviando sua atenção de suas próprias falhas e fazendo-os observar e julgar as ações de seus superiores; eles falam, no entanto, de seus superiores com uma certa liberdade, e como esse orgulho é chamado de independência legítima neles, assim também no superior é chamado de zelo e decoro.

Às vezes, nosso orgulho nos obriga a falar alto, outras vezes a preservar um silêncio amargo. O orgulho é dissoluto em suas alegrias, sombrio e delirante em sua melancolia; parece honroso na aparência, mas não tem honra; é cheio de valor ao ofender, mas covarde ao ser ofendido; é lento para obedecer, importuno em suas exigências para determinar seu dever, mas negligente em cumpri-lo; embora seja rápido para se intrometer e interferir em tudo o que não lhe diz respeito, não há possibilidade de incliná-lo em qualquer direção, a menos que ele próprio se incline para isso por seu próprio gosto. Por outro lado, é astuto, e finge ser indiferente em relação a qualquer cargo ou dignidade que cobiça, para que possa ser forçado a aceitá-los, amando ter aquelas coisas que mais deseja como se impostas violentamente sobre si, por medo de ser considerado com desprezo se seu desejo por elas fosse revelado. Tudo isso é ensinamento de São Gregório.

146. Depois de considerar o orgulho em si mesmo, resta-nos observar seus efeitos, e especialmente oito dos vícios mais comuns e familiares que ele produz, que são a presunção, a ambição, a inveja, a vaidade, a ostentação, a hipocrisia, a desobediência e a discórdia. Vamos examiná-los com São Tomás.

A presunção é um vício pelo qual nos consideramos capazes de realizar coisas além de nossas forças, esquecendo a necessidade da ajuda divina. O pecador é culpado de presunção quando acredita que pode se converter a Deus quando quiser e escolher, como se a conversão fosse obra apenas de seu livre arbítrio; vivendo mal, ainda confia em ter uma boa morte; quando peca e continua pecando, confiando em obter o perdão final; quando acredita que pode, por si mesmo e sem a ajuda da graça, resistir à tentação, evitar o pecado e observar os mandamentos de Deus, ou então que pode realizar algum ato sobrenatural de fé, esperança, caridade ou contrição, ou realizar algum ato meritório para o seu bem-estar eterno e salvar-se perseverando no bem.

Tudo isso está além de nossas próprias forças, e pensar que podemos fazer essas coisas sem a ajuda especial de Deus, e sem estar dispostos a pedir essa ajuda a Deus, é um pecado de presunção - um pecado grave de orgulho pelo qual acreditamos que possuímos uma virtude quando não a temos: 'Ó presunção perversa' - diz a Sagrada Escritura - 'de onde vieste?' [Eclo 37,3]. E São Gregório, explicando qual era o pecado que Jó chamava de 'grande iniquidade' [Jó 31,28], afirmou que era a presunção, que é um insulto ao autor de toda a graça, 'pela qual o homem atribui a si mesmo todo o mérito de uma boa obra' [Lib. xxii, Mor., cap. x].

147. A ambição é um vício que nos leva a buscar nossa própria honra com avidez desmedida [São Tomás, 2a 2æ, qu. cxxxi, art. 2]. Ora, como essa honra é um sinal de respeito e estima, concedido à virtude meritória e àquele que é de grau superior, e como é certo que não temos mérito algum por nós mesmos, porque tudo o que recebemos vem de Deus, não é a nós mesmos, mas somente a Deus que tal honra é inteiramente devida.

Além disso, como essa honra foi ordenada por Deus como um meio para nos tornar capazes de ajudar o próximo, é certo que toda essa honra deve ser usada por nós para cumprir esse fim. Portanto, duas coisas são necessárias para nos permitir fugir da ambição. A primeira é que não devemos nos apropriar do mérito da honra, e a segunda é que devemos confessar que essa mesma honra é devida inteiramente a Deus e só nos é querida na medida em que pode servir ao nosso próximo. Se, portanto, nos faltar uma dessas duas coisas, cometemos o pecado da ambição. É ambicioso, portanto, aquele que busca ter algum cargo ou posição, seja no mundo ou na Igreja, quando não tem a virtude e o conhecimento necessários para mantê-lo, e que trama e conspira para ser colocado à frente de outros que são mais dignos do que ele.

É ambicioso aquele que deseja ser estimado, honrado e reverenciado mais do que sua posição merece, e como se fosse de posição superior à que realmente ocupa, para ser honrado como um pregador eloquente ou um escritor inteligente, ou em qualquer profissão à qual pertença, embora na realidade só possa ser classificado entre os indiferentes e medíocres.

É ambicioso aquele que, sem um único pensamento pela glória de Deus ou por servir ao próximo, deseja ou busca algum cargo mundano ou eclesiástico, simplesmente com vistas ao seu próprio bem-estar temporal e ao avanço de sua família, ou deseja ganhar a honra de algum cargo elevado ou bispado, 'pelo amor ao poder' - como diz Santo Agostinho - 'e pelo orgulho da posição' [Lib. xix, De Civ. Dei., cap. xiv].

Jesus Cristo demonstra um ódio especial por esse vício em vários trechos do seu evangelho [Mt 18, 20. 23; Lc 9,12] e os Padres argumentam, a partir disso, que o homem ambicioso está em estado de pecado mortal; e é fácil para as pessoas mais espirituais cometerem esse pecado, como diz Santo Ambrósio: 'A ambição muitas vezes torna criminosos aqueles que nenhum vício poderia deleitar, que nenhuma luxúria poderia mover, que nenhuma avareza poderia enganar' [Lib. 4 in Luc.]. O pior da ambição é que poucas pessoas têm escrúpulos a respeito dela, e a razão é que, por esse vício, a consciência se deprava, porque se une a essa paixão e raramente recupera a sua integridade [São Tomás, 2a 2æ, qu. cxxxi, art. 1 et 2; qu. clxxxv, art. 2].

148. A inveja é uma tristeza que surge da contemplação do bem-estar do nosso próximo, quando imaginamos que o bem que lhe acontece deve ser em nosso detrimento, prejudicial à nossa própria glória e interesse; mas dos seus bens, só invejamos aqueles que nos trazem estima aos olhos do mundo -riquezas, dignidade, a amizade e os favores dos grandes, ciência, elogios, fama e tudo o que nos parece contribuir para o nosso crédito e nos trazer honra.

E é assim que a inveja nasce dentro de nós, quando vemos alguém mais rico, mais culto do que nós, outro mais sábio e mais virtuoso do que nós, outro que tem mais talento e habilidade, e a quem, portanto, gostaríamos de ver privado desses dons, para que também fosse privado dos elogios, da honra e de quaisquer outras vantagens que imaginamos ser mais devidas a nós do que a ele. Ora, o pecado consiste nisto: que, quando deveríamos, por caridade, regozijar-nos com a prosperidade do nosso próximo, ficamos apenas tristes com ela, desejando, em nosso orgulho, que ela fosse nossa, para que pudéssemos ser superiores ao nosso próximo em mérito; e este pecado é o pecado especial do diabo, como diz o Sábio: 'a inveja do diabo' [Sb 2,24]. O Espírito Santo nos ordena com toda justiça, por meio de São Paulo, que nos guardemos contra ele: 'Não nos invejemos uns aos outros' [Gl 5,26], pois é fácil pecar mortalmente de uma forma ou de outra. Mas, no entanto, quão comum é esse vício nas famílias, nas comunidades, em todos os estados de vida, entre altos e baixos, ricos e pobres, entre os seculares e até mesmo entre os próprios religiosos!

Todo esse mal provém de uma falsa consciência, que nos leva a acreditar que a inveja não é um grande pecado e, portanto, embora seja um mal grave, não é temida, nem evitada, nem nos esforçamos para nos corrigir dela. Esta reflexão é de São Cipriano: 'A inveja parece uma ofensa pequena, de modo que, enquanto nos parece leve, não é temida; enquanto não é temida, é desprezada; enquanto é desprezada, não é facilmente evitada e, assim, torna-se uma fonte secreta de ruína' [São Tomás, 2a 2æ, qu. xxxiv, art. 6; et qu. xvi, art. 1 et 2 etc.; et qu. clviii, art. 11 et 14].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (IV)

   

PARTE I - SOBRE A MORTE

IV. Sobre o Medo do Inferno

A morte ainda se torna mais amarga para nós pelo medo do inferno e pela visão clara da eternidade diante de nós. Pois quando estamos gravemente doentes e a morte nos encara, o terror que nos invade diante da perspectiva da eternidade é tão avassalador que ficamos cheios de medo. Pois vemos claramente que, em poucos dias, talvez poucas horas, devemos entrar na eternidade, e não sabemos o que nos espera lá. O medo de nos perdermos para sempre é tão grande que nos faz estremecer.

Além disso, o alarme que nos tortura é aumentado pela lembrança dos pecados pelos quais muitas vezes merecemos o inferno; pois nenhum homem pode ter certeza se fez penitência corretamente e se realmente obteve o perdão. Isso é explicado por uma passagem dos escritos do já mencionado Papa São Gregório, que descreve esse medo com as seguintes palavras: 'O homem justo que se preocupa verdadeiramente com sua salvação eterna pensará de tempos em tempos em seu futuro Juiz. Ele meditará, antes que a morte o alcance, sobre o relato que terá de fazer de sua vida. Se não houver grandes pecados pelos quais sua consciência o repreenda, ele ainda terá motivos para se alarmar por causa dos pecados diários aos quais talvez dê pouca atenção. Pois quantas vezes não pecamos em pensamento? É relativamente fácil evitar más ações, mas é muito mais difícil manter o coração livre de pensamentos desordenados. No entanto, lemos na Sagrada Escritura: Ai de vós, que concebeis o que é inútil e praticais o mal em vossos pensamentos (Mq 2,1) ou ainda: 'Em vosso coração praticais iniquidades' (Sl 62,3).

'Por isso, os justos estão sempre com medo dos terríveis julgamentos de Deus, pois estão conscientes de que todos esses pecados secretos serão levados a julgamento, como diz São Paulo: 'Naquele dia, Deus julgará os segredos dos homens' (Rm 2,16). E embora durante toda a sua vida um homem bom ande com medo do julgamento, esse medo aumentará notavelmente à medida que ele se aproxima do fim de seus dias. Diz-se de Nosso Senhor que, quando se aproximava a hora desua morte, Ele começou a ficar triste e com medo e, estando em agonia, orou por mais tempo. Não foi isso para nos ensinar como seria conosco no nosso fim, e que angústia e aflição nos dominariam?

Tais são as palavras do Papa São Gregório, calculadas para inspirar não só os pecadores, mas também os justos com medo, pois, como diz o santo, mesmo aqueles que não têm consciência de ter cometido pecados graves, estão cheios de apreensão em relação à sentença que lhes será imposta. Se os justos não estão isentos de alarme, o que podemos fazer nós, pobres pecadores, que sabemos ser culpados de muitas e múltiplas transgressões e que todos os dias acrescentamos pecado ao pecado? O que será de nós? O que podemos fazer? Não há nenhum meio que possamos empregar para obter a misericórdia de Deus? Não conheço melhor conselho do que aquele que o próprio Cristo nos dá nas palavras: 'Vigiai, pois, orando em todo o tempo, para que sejais considerados dignos de escapar de todas estas coisas que hão de acontecer, e de estar diante do Filho do homem' (Lc 21,36).

Visto que Cristo nos indica a oração como o melhor e mais fácil meio, que cada um siga fielmente esta exortação e invoque diligentemente o Deus Todo-Poderoso e sua Santíssima Mãe, e todos os santos, implorando-lhes dia após dia que o protejam e confiando-lhes o seu fim último.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

A CIÊNCIA DE DEUS (VI)


A Bíblia não é um livro de ciências da natureza e os escritores sagrados não pretendiam ensinar, nos textos bíblicos, a natureza primordial das coisas do universo visível. Elementos simbólicos e figurados constituem abordagens inerentes à literatura bíblica e é, neste contexto, que devem ser analisados e interpretados os três primeiros capítulos de Gênesis, que sintetizam verdades fundamentais sobre Deus, a criação e a humanidade.

Santo Agostinho, por exemplo, não interpretou os 'Seis Dias' da criação como uma sequência real de tempo. Em vez disso, ele sustentou que o universo foi criado em um instante, com base em um processo gradual e natural de desenvolvimento por meio do desdobramento de potencialidades que Deus originalmente implantou na sua criação, e que existiam, em estado latente, na própria textura dos elementos originais do universo físico.

O significado teológico dos 'Seis Dias' do primeiro relato da criação em Gênesis expressa essencialmente que a sabedoria de Deus deu ao mundo criado ordem e propósito. Deus é a fonte do existir de todas as coisas; que ele criou livremente e com sabedoria divina. Nos três primeiros 'dias', as várias partes do mundo foram estabelecidas; nos três 'dias' seguintes, os vários seres vivos foram criados em sequência, culminando na humanidade; e finalmente chegou-se ao sétimo 'dia', tempo de descanso e adoração. Essa sequência simboliza que o universo físico foi feito para a vida, com ênfase especial de domínio no ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus com naturezas corpórea e espiritual, pelo que fomos criados para a comunhão e glória de Deus, em quem encontraremos consolo, descanso e a paz eterna.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLI)


141. São Gregório e São Tomás ensinam que se pode pecar de quatro maneiras diferentes por meio de atos de orgulho. A primeira é quando consideramos que possuímos algum bem, seja corporal ou espiritual, por nós mesmos, e nos gloriamos dele como se realmente nos pertencesse, sem pensar em Deus, que é o doador de todos os bens. Foi com esse orgulho que Arfaxad, rei dos medos, pecou quando se gloriou no poder de seu enorme exército; e o rei Nabucodonosor pecou da mesma forma quando se vangloriou da construção da Babilônia: 'Não é esta a grande Babilônia que eu construí com a força do meu poder?' [Dn 4,27]. Da mesma forma, o homem rico, mencionado em São Lucas, pecou quando se deleitou com suas riquezas e as considerou como sua própria substância, dizendo: 'Vou reunir todas as coisas e direi à minha alma: alma, você tem muitos bens guardados para muitos anos' [Lc 12,18-19].

E, portanto, podemos dizer que é por meio desse orgulho que todos pecam: aqueles que se lisonjeiam e se gastam em ostentação, glorificando-se por seus grandes talentos, ou por suas riquezas, ou por sua prudência, ou por sua eloquência, ou pela beleza de seu corpo, ou pelo custo de suas vestes, como se Deus não tivesse nada a ver com isso, e que, estimando-se imoderadamente, desejam também ser estimados pelos outros. Este é o verdadeiro orgulho, porque se Deus nos deu todas essas coisas boas para nosso uso, Ele reservou a glória delas para si mesmo: 'A Deus somente seja dada a glória e a honra' [1Tm 1,17] e quem usurpa essa glória é culpado de orgulho.

E, portanto, devemos observar com São Tomás que, para cometer um pecado de orgulho, não é necessário declarar positivamente que esses dons não vêm de Deus, pois isso seria um pecado de infidelidade, mas basta que nos gloriemos deles como se nos pertencessem, 'o que se relaciona com o orgulho' [2a 2æ, qu. clxii].

142. A segunda maneira pela qual podemos pecar em nossas ações por orgulho é quando, sabendo e admitindo que recebemos tal ou tal dom de Deus, atribuímos isso interiormente ao nosso próprio mérito e desejamos que os outros façam o mesmo, e em nosso comportamento exterior nos comportamos como se realmente merecêssemos receber esses dons. Foi assim que Lúcifer pecou por orgulho; pois, apaixonado por sua própria beleza e nobreza, e embora reconhecesse que Deus era o autor de tudo isso, ele teve a presunção de pensar que ele mesmo o merecia e era digno de sentar-se ao lado de Deus no mais alto dos céus: 'subirei ao céu' [Is 14,13].

E, por isso, São Bernardo o repreende, dizendo: 'Ó alma orgulhosa, que obra fizeste para merecer o teu descanso?' O que fizeste, ó ousado, para merecer tal honra? E é assim que pecaram por orgulho aqueles réprobos a quem se faz alusão -  em Lc 17,9 - que, como o fariseu, deram graças a Deus pelo bem que fizeram e pelo mal que deixaram de fazer: 'Ó Deus, eu te dou graças...', mas, ao mesmo tempo, tiveram a presunção de se considerarem de mérito singular, 'confiando em si mesmos'.

Assim, todos aqueles que pecam presumindo que mereceram qualquer bem de Deus são condenados por orgulho, porque, ao atestarem seu próprio mérito, tornam Deus devedor dessa graça, que não seria mais graça se a tivéssemos merecido. Podemos muito bem nos permitir, com Jó, dizer que, por nossos pecados, merecemos a ira de Deus e todo tipo de mal: 'Oh, que meus pecados, pelos quais mereci a ira, fossem pesados na balança' [Jó 6,2], mas não podemos dizer que merecemos a graça ou qualquer bem, como diz São Paulo: 'Se é por graça, não é agora por obras; caso contrário, a graça não é mais graça' (Rm 11,6].

E cada um de nós deve dizer com o mesmo humilde São Paulo: 'Pela graça de Deus sou o que sou' [1Cor 15,10]. Se sou rico, nobre, são ou possuo quaisquer outros dons, tudo isso vem de Deus, que me fez assim, não por meus próprios méritos, mas unicamente por sua própria misericórdia e bondade. Quer eu me abstenha do mal ou faça o bem, devo tudo isso não ao meu próprio mérito, mas à graça de Deus, que me assiste com a sua misericórdia: 'Pela graça de Deus sou o que sou'. E qualquer um que atribua o que é ou o que tem aos seus próprios méritos é culpado de orgulho e apropria-se do que deveria dar à misericórdia e à graça de Deus. Por isso, a Santa Igreja sabiamente termina suas orações com estas palavras: 'Por Jesus Cristo, nosso Senhor'... E com isso protestamos à Divina Majestade que pedimos as dádivas mencionadas nessas orações pelos méritos de Jesus Cristo e que, se nossas orações forem ouvidas, será somente pelos méritos de Jesus Cristo.

Este é um ponto que merece toda a atenção, para que não caiamos por inadvertência no mais terrível orgulho. E Santo Agostinho nos exorta a lembrar que não só todo o bem que temos vem de Deus, mas também que o temos somente por sua misericórdia e não por nossos próprios méritos. 'Quando o homem vê que todo o bem que tem vem da misericórdia de Deus e não de seus próprios méritos, ele deixa de ser orgulhoso' [Sl 84].

143. A terceira maneira pela qual podemos pecar por orgulho é quando atribuímos a nós mesmos algum bem - de qualquer tipo - que, na verdade, não possuímos, seja estimando-nos por esse bem imaginário que existe apenas em nossos pensamentos e desejando que os outros também nos estimem por isso, seja realmente possuindo-o, seja apenas desejando ter esse bem que não temos para poder nos vangloriar e nos gloriar nele, tudo isso é orgulho detestável.

Foi assim que o bispo de Laodicéia pecou, estimando-se rico em méritos quando era apenas desprezível; e, por isso, Deus lhe disse que o vomitaria da sua boca: 'Começarei a vomitar-te da minha boca, porque dizes: sou rico e não tenho necessidade de nada, e não sabes que és miserável e pobre' [Ap 3,16.17]. E é com esse tipo de orgulho que todos pecam, quer se considerem a si mesmos, quer procurem ser considerados pelos outros, em palavras ou ações, como mais ricos, mais sábios, mais importantes ou mais virtuosos do que realmente são.

Pode ser um ato de virtude desejar essas coisas para algum fim honroso, por exemplo, desejar mais conhecimento para poder servir à Santa Igreja, desejar riquezas para poder dar mais esmolas; mas desejar essas coisas para não parecer inferior aos outros ou para adquirir mais estima é apenas orgulho, e como são poucos os que não estão infectados com esse orgulho! Um por uma coisa, outro por outra, quase todos os homens procuram ser estimados acima do que realmente são - e isso sem o menor escrúpulo.

Às vezes, pode ser que o pecado não seja tão grave, seja porque não se trata de um desejo deliberado, seja porque a natureza da ofensa é muito leve; mas, por outro lado, é em si mesmo sempre um pecado muito grave, porque, por meio desse orgulho, o homem não permanece mais sujeito à regra que lhe foi dada por Deus: contentar-se com o seu próprio estado. São Tomás diz: 'Isso é evidentemente da natureza do pecado mortal' [2a 2æ, qu. clxii, art. 5 et 6] e sua doutrina sobre esse ponto é que, quanto maior for o dom do qual nos gloriamos, embora não o possuamos, maior é o nosso orgulho. Portanto, é pior fingir ser santo do que fingir ser nobre ou rico, porque a santidade é um dom maior do que a posição social ou a riqueza. 

E o hábito de desculpar os pecados que cometemos também pertence a esse tipo de orgulho, porque quando nos desculpamos e dizemos que não somos culpados, afirmamos nossa inocência e nos atribuímos uma inocência que não possuímos. E quantas vezes pecamos assim por orgulho, sem nem mesmo saber! São Tomás também atribui ao orgulho o esforço de esconder os nossos pecados e, assim, desculpar e atenuar a maldade deles em nossas confissões [Ibid. art. 4].

144. A quarta maneira pela qual pecamos por orgulho é quando usamos qualquer dom que possamos ter para parecer distintos ou nos considerarmos melhores do que os outros, e para sermos mais estimados e honrados do que eles. Tudo o que temos de bom, seja no corpo ou na alma, na natureza, na fortuna ou na graça, é um dom de Deus, e usar esses dons para tentar ser mais visível do que os outros é orgulho.

É com esse orgulho que o fariseu no Templo considerava sua própria bondade e se colocava acima dos outros, especialmente do publicano: 'Eu não sou como os demais homens, desonestos, injustos, adúlteros, tal como este publicano' [Lc 18,11]. Ele se estimava acima de todos e era, na realidade, o mais orgulhoso de todos. Foi também com esse orgulho que os discípulos pecaram quando se glorificaram em seu dom singular de poder expulsar demônios: 'E eles voltaram com alegria, dizendo: Senhor, até os demônios nos estão submetidos' [Lc 10,17], e nosso abençoado Senhor lhes respondeu com toda a justiça: 'Eu vi Satanás cair do céu como um raio' - como se Ele quisesse dizer - 'Cuidem-se para não se exaltarem como o orgulhoso Lúcifer, para que não caiam como ele caiu'.

São Gregório, de fato, faz esta reflexão de que não há orgulho que se assemelhe tanto ao orgulho diabólico quanto este: 'Isso se aproxima muito de uma semelhança diabólica' [Lib. 23. Mor. cap. iv]. Quem quer que deseje exaltar-se acima dos outros imita Lúcifer, que desejava ser o primeiro entre os anjos e o mais próximo do trono de Deus. Este foi o pecado de Lúcifer quando se deteve em seu desejo de ser exaltado: 'E disseste em teu coração: Eu subirei sobre as nuvens mais altas!' [Is 14,14]. E aqueles que estão sempre tramando para seu próprio avanço e estão insatisfeitos com sua própria condição pecam assim como Lúcifer pecou: 'Subirei!' e devemos nos proteger contra esse pecado diabólico, como diz São Paulo: 'Para que, ensoberbecidos, não caiamos no julgamento do diabo' [1Tm 3,6].
 
E, além disso, devemos também observar o que o mesmo santo pontífice nos diz, que muitas vezes caímos neste pior tipo de orgulho: 'Neste quarto tipo de orgulho, a mente humana cai com muita frequência' e não há dúvida de que é realmente um pecado grave, pois com isso ofendemos tanto a Deus como ao nosso próximo. E quantos homens e mulheres existem, tanto religiosos como seculares, de todos os estados e condições, que cometem este pecado de orgulho com tanta frequência que se torna um hábito predominante neles.

Na prática, percebemos que todos os homens desejam se distinguir em sua arte particular, por mais inferior que seja, e todos buscam primeiro ser estimados tanto quanto os outros e, depois, se distinguir mais do que os outros - Eu subirei! - cada um em sua própria esfera e também fora dela. O homem rico se considera maior do que o homem culto por causa de suas riquezas; o homem culto se considera maior do que o homem rico por causa de seu conhecimento; o homem casto se considera melhor do que aquele que dá esmolas, e aquele que dá esmolas se considera superior ao homem casto. Quanto orgulho! E, no entanto, poucas pessoas estão dispostas a reconhecer que são realmente orgulhosas.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sábado, 27 de setembro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (III)

  

PARTE I - SOBRE A MORTE

III. Sobre a Aparição dos Espíritos das Trevas

Além do que já foi mencionado, a terrível aparência dos espíritos malignos torna a morte ainda mais assustadora para nós. É opinião de muitos dos Padres que todos, ao expirar, veem o inimigo maligno, pelo menos no momento de dar o último suspiro, se não antes. Quão assustadora é essa visão e com que terror ela deve inspirar os moribundos, excede o poder das palavras para descrever. 

Conta-se que certo dia, quando o irmão Giles estava rezando em sua cela, o diabo apareceu para ele com uma aparência tão assustadora que o irmão perdeu a capacidade de falar e pensou que sua última hora havia chegado. Como seus lábios não conseguiam emitir nenhum som, ele elevou seu coração em humilde súplica a Deus, e a aparição desapareceu. Depois, ao relatar o que lhe havia acontecido aos seus irmãos monges, ele tremia da cabeça aos pés ao descrever a aparência hedionda do adversário da humanidade. Então, indo até São Francisco, ele lhe fez esta pergunta: 'Padre, você já viu alguma coisa neste mundo cuja visão fosse tão horrível cuja contemplação fosse o bastante para matá-lo'? E o santo respondeu: 'Eu realmente vi tal coisa; não é outra coisa senão o diabo, cuja aparência é tão repugnante que ninguém poderia olhar para ele, mesmo que por um breve momento, e sobreviver, a menos que Deus lhe concedesse essa capacidade especial'.

São Cirilo também, escrevendo a Santo Agostinho, diz que um dos três homens que foram ressuscitados dos mortos lhe disse: 'Quando a hora da minha partida se aproximava, uma multidão de demônios, incontáveis em número, veio e ficou ao meu redor. Suas formas eram mais horríveis do que qualquer coisa que a imaginação possa conceber. Era preferível ser queimado no fogo do que ser obrigado a olhar para eles. Esses demônios se colocaram ao meu redor e me repreenderam por todos os erros que eu havia cometido, pensando em me levar ao desespero. E, de fato, eu teria cedido diante deles, se Deus, em sua misericórdia, não tivesse vindo em meu socorro'.

Aqui temos o testemunho de alguém que realmente aprendeu por experiência própria como é assustadora a aparência do inimigo maligno e que declara que nada pode ser mais horrível do que a forma que o demônio assume. 

PETIÇÃO

Ó meu Deus! Quão avassaladores são os terrores que se apoderam do infeliz indivíduo que se encontra à beira da morte quando o dragão infernal aparece, cheio de raiva, ameaçando engoli-lo em suas mandíbulas de fogo. Nesta hora de suprema angústia, eu vos peço, ó meu Deus, envia-me o meu Anjo da Guarda para que ele afaste o inimigo maligno pois, caso contrário, cairei infalivelmente no desespero e perderei toda a esperança da minha salvação. Ó Virgem Maria bendita, que esmagaste a cabeça da serpente, fica comigo na hora da minha morte e não permitas que a presença do cruel adversário cause a minha perdição eterna.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XL)

Doutrina Moral

Sobre o Vício do Orgulho - Exame Prático 

136. São Tomás [2a 2æ, qu. clxii, art. 1] define o orgulho como uma afeição desordenada contra a razão correta, pela qual o homem se estima a si mesmo e deseja ser estimado pelos outros acima do que realmente é; e como essa afeição se opõe ao raciocínio correto, é certamente um pecado que participa da gravidade de um pecado mortal, porque está em oposição direta à virtude da humildade. São Paulo coloca os orgulhosos na mesma categoria daqueles que 'Deus entregou aos sentimentos depravados e considerou dignos de morte' [Rm 1,28.32], embora às vezes seja apenas um pecado venial, quando a razão não está suficientemente esclarecida ou não há pleno consentimento da vontade [D. Th., loc. cit., art 5].

137. O orgulho está entre os pecados mortais porque é dele que derivam tantos outros pecados, e é por isso que São Paulo, vendo as inúmeras maldades do mundo, chamou a atenção de seu discípulo Timóteo, dizendo: 'Vê quantos são arrogantes, orgulhosos, blasfemos, desobedientes aos pais' [2Tm 3,2], sem amor pelo próximo ou por Deus. De onde você acha que todos esses vícios têm origem? Esta é a fonte: o amor desordenado que todos têm por si mesmos: 'Os homens são amantes de si mesmos', eis a explicação que São Paulo dá para isso e, como observa Santo Agostinho, 'Todos esses males fluem da fonte que ele menciona primeiro: o amor próprio' [Tr. 123 em Jo. lib. iv, De Civ. Dei, c. xiii] e, como diz o mesmo santo, 'esse excesso de amor próprio é apenas orgulho'.

Portanto, podemos concluir disso que quem vence o orgulho vence toda uma série de pecados; de acordo com a explicação dada por São Gregório [Lib. 31, Mor. c. xvii] deste texto de Jó: 'De longe fareja a batalha, a voz troante dos chefes e o alarido dos guerreiros' [Jó 39,25].

138. O orgulho ocupa o primeiro lugar entre os pecados capitais e São Tomás não apenas o coloca entre os pecados capitais, mas acima deles, como transcendendo todos eles, o rei dos vícios que inclui em seu cortejo todos os outros vícios, por isso é chamado na Sagrada Escritura: 'a raiz de todo o mal' [1Tm 6,10] e 'o princípio de todo o pecado' [Eclo 10, 15], porque, assim como a raiz da árvore está escondida sob a terra e envia toda a sua força para os galhos, o orgulho permanece escondido no coração e influencia secretamente todos os pecados por meio de sua ação. Portanto, sempre que cometemos um pecado mortal, estamos na realidade nos opondo e dirigindo nossa própria vontade contra a vontade de Deus.

Jó fala assim do pecador: 'Ele se fortaleceu contra o Todo-Poderoso' [Jó 15,25] e, nesse sentido, também se pode dizer do orgulho que é o maior de todos os pecados, porque os orgulhosos se rebelam contra Deus, colocando-se em oposição a Ele, e não se importam em desagradá-lo para agradar a si mesmos, deixando o Todo Poderoso para se apegar à sua própria insignificância, como diz Santo Agostinho: 'Abandonando Deus, ele busca sua própria vontade e, ao fazê-lo, aproxima-se da insignificância; por isso, os orgulhosos, segundo as Escrituras, são chamados de praticantes de sua própria vontade' [Lib. IV, De Civ. Dei, cap. xiv], o que equivale a dizer, como São Paulo: 'amantes de si mesmos'. E o mesmo santo padre faz esta reflexão: mesmo os pecados veniais cometidos mais por fraqueza do que por malícia podem se tornar mortais se forem agravados pelo orgulho: 'Os pecados se insinuam pela fraqueza humana e, embora pequenos, tornam-se grandes e pesados se o orgulho aumenta o seu peso e a sua medida' [Lib. de Sancta Virginit. cap. ii].

Mas, como Deus jurou detestar esse vício: 'O Senhor Deus jurou por sua própria Alma: Eu detesto o orgulho de Jacó' [Am 6,8], pode ser surpresa que Ele o castigue mais do que todos os outros vícios? Santo Agostinho observa com singular força que, entre todos os pecados pelos quais os pecadores caem, nenhum é tão grande, tão ruinoso ou tão grave quanto o orgulho: 'Entre todas as quedas dos pecadores, nenhuma é tão grande quanto a dos orgulhosos' [Sl 35,12-13].

139. Consideremos agora onde reside o terrível perigo desse vício: 

(i) Porque, enquanto todos os outros vícios destroem apenas as virtudes opostas, como a devassidão destrói a castidade, a ganância destrói a temperança e a ira destrói a mansidão, etc., o orgulho destrói todas as virtudes e, segundo São Gregório, é como um câncer que não apenas corrói um membro, mas ataca todo o corpo: 'como uma doença pestilenta generalizada' [lib. xxxiv, Mor., cap. 18].

(ii) Porque os outros vícios só devem ser temidos quando estamos dispostos ao mal; mas o orgulho, diz Santo Agostinho, insinua-se mesmo quando estamos tentando fazer o bem: 'outros vícios devem ser temidos nos pecados, o orgulho deve ser temido mesmo nas boas ações' [Epist. cxviii] E Santo Isidoro diz: 'O orgulho é pior do que todos os outros vícios, pois brota até mesmo da virtude e sua culpa é menos sentida' [Lib. de Summ. Bono].

(iii Porque, depois de termos lutado contra os outros vícios e os termos vencido, podemos justamente regozijar-nos, mas assim que começamos a regozijar-nos por termos triunfado sobre o orgulho, ele triunfa sobre nós e vence-nos precisamente naquele ato pelo qual nos louvamos por tê-lo vencido. Santo Agostinho diz: 'Quando um homem se alegra por ter vencido o orgulho, este levanta a cabeça de alegria e diz: eis que eu triunfo assim porque tu triunfas' [Aug., Lib. de Nat. et Gr. cap. xxvii].

(iv) Porque se os outros vícios crescem rapidamente, também podemos nos livrar deles rapidamente; mas o orgulho é o primeiro vício que aprendemos e também o último a nos abandonar, como diz Santo Agostinho: 'Para aqueles que estão retornando a Deus, o orgulho é a última coisa a ser vencida, pois foi a primeira causa de seu afastamento de Deus' [Enarr. 2 in Ps. cxviii].

(v) Porque, assim como precisamos de alguma graça especial de Deus para nos capacitar a realizar qualquer uma das boas obras que dizem respeito à nossa salvação eterna, não há vício que impeça tanto o influxo da graça quanto o orgulho; porque 'Deus resiste aos orgulhosos' [Tg 4,6].

(vi) Porque o orgulho é o sinal característico e mais significativo dos réprobos, como diz São Gregório: 'O orgulho é o sinal mais manifesto dos perdidos' [Lib. 34. Mor. cxviii].

(vii) Porque os outros vícios são facilmente reconhecíveis e, portanto, é fácil odiá-los e corrigi-los; mas o orgulho é um vício que não é tão facilmente conhecido, porque se mascara e se disfarça de muitas formas, chegando mesmo a assumir a aparência da virtude e da humildade; sendo assim um vício oculto, é menos fácil escapar dele, como ensina a máxima de Santo Ambrósio: 'As coisas ocultas são mais difíceis de evitar do que as coisas conhecidas' [Epístola 82].

140. Este último perigo é para nós o maior de todos, e ainda mais porque nós mesmos parecemos cooperar para não reconhecer esse vício, inventando subterfúgios e artifícios para esconder sua feiúra e estudando inúmeros pretextos para nos enganarmos, acreditando que o orgulho não é orgulho e não reina em nosso coração no momento em que é mais dominante do que nunca.

Assim como a humildade é geralmente chamada de fraca e desprezível pelos amantes cegos deste mundo, o orgulho é chamado de coragem e grandeza, e os orgulhosos são considerados proativos, dignos, de comportamento nobre e bom julgamento, sustentando sua posição com honra, mantendo sua reputação, mantendo sua posição e cumprindo os deveres de seu estado. Que vocabulário de vaidade! Mas vamos contrapor a ele o vocabulário da verdade que foi usado por Jó: 'Eu disse à podridão: Tu és meu pai; aos vermes: minha mãe e minha irmã' [Jó 17,4].

Se você peneirar essas expressões mundanas, descobrirá que delas emana a quintessência do orgulho mais consumado. Esta é, de fato, a única coisa que peço a vocês: que, se infelizmente foram enganados por outros, pelo menos não se enganem a si mesmos. Estudem para conhecer seus próprios males, se desejam ser curados deles. Recomendo-lhes apenas que se dediquem a aprender a verdade e aproveitem este conselho: se o conhecimento dessa verdade lhes parecer difícil, é sinal de que vocês são orgulhosos.

É o próprio São Tomás que os convencerá disso. Vocês podem aprender a verdade de duas maneiras: pelo intelecto e pelos afetos. O homem orgulhoso não a conhece pelo intelecto, porque Deus a esconde dele, como disse Cristo: 'Tu escondeste estas coisas aos sábios e prudentes' [Mt 11, 25]; e menos ainda a conhecerá com seus afetos, porque ninguém que se deleita na vaidade pode se deleitar na verdade: 'Quando os orgulhosos se deleitam em sua própria excelência' - explica Santo Agostinho - 'eles se afastam da excelência da verdade' [D. Th. 2a 2æ, qu. clxii, art. 3].

O homem orgulhoso não tem nenhum prazer em sermões, meditações ou instruções sobre a verdade eterna; na verdade, todos estes são enfadonhos para ele. Se você descobrir algum sinal disso em si mesmo, deve concluir imediatamente que é orgulhoso e humilhar-se um pouco - você que lê esta doutrina -para que o Pai eterno lhe dê luz, assim como Cristo disse: 'Eu te bendigo, ó Pai, porque revelaste estas coisas aos pequeninos' [Mt 11,25].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

VERSUS: RICOS X POBRES

'Felizes os pobres de espírito porque é deles o reino dos céus' (Mt 5,3). Poderíamos perguntar-nos a que pobres se referia a Verdade ao dizer 'felizes os pobres', se não tivesse acrescentado nada sobre o tipo de pobres de que falava. Pensar-se-ia então que, para merecer o Reino dos Céus, bastaria a indigência de que muitos sofrem devido a uma necessidade penosa e dura. Mas ao dizer: 'felizes os pobres de espírito', o Senhor mostra que o Reino dos Céus deve ser dado aos que são recomendados mais pela humildade da alma, do que pela penúria dos recursos. No entanto, não podemos duvidar de que os pobres adquirem mais facilmente do que os ricos o bem que é esta humildade, pois a doçura é uma amiga da sua indigência, ao passo que o orgulho é o companheiro da opulência dos ricos. 

Porém, também se encontra entre muitos ricos esta disposição de alma que os leva a servirem-se da sua abundância, não para se encherem de orgulho, mas para praticarem a bondade, e que encaram como grande lucro o que gastaram para aliviar a miséria e a infelicidade dos outros... Feliz esta pobreza que não está agrilhoada pelo amor das riquezas materiais; ela não deseja aumentar a sua fortuna neste mundo, antes aspira a tornar-se rica dos bens dos céus.

(São Leão Magno)


Como sois divinamente bom, meu Deus! Se tivésseis chamado os ricos em primeiro lugar, os pobres não teriam ousado aproximar-se de Vós; pensariam que estavam obrigados a manter-se à distância por causa da sua pobreza; ter-vos-iam olhado de longe, deixando que os ricos vos rodeassem. Mas haveis chamado para junto de Vós toda a gente: os pobres, uma vez que assim lhes mostrais, até ao fim dos séculos, que eles são os primeiros a ser chamados, os favoritos, os privilegiados; os ricos porque, por um lado, não são tímidos e por outro, depende deles tornarem-se tão pobres como os pastores. 

Num minuto, se o quiserem, se tiverem o desejo de se assemelhar a Vós, se temerem que as riquezas os afastem de Vós, podem tornar-se perfeitamente pobres. Como sois bom! Como agistes da melhor forma para chamar ao mesmo tempo, para o vosso redor, todos os Vossos filhos, sem nenhuma excepção! E que bálsamo colocastes, até ao fim dos tempos, no coração dos pobres, dos pequenos, dos desdenhados deste mundo, mostrando-lhes, desde o vosso nascimento, que eles são os vossos privilegiados, os vossos favoritos, os primeiros a ser chamados — os sempre chamados para junto de Vós, que quisestes ser um dos seus e estar, desde o vosso nascimento e toda a vossa vida, rodeado por eles.
(São Charles de Foucauld)

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (II)

 

PARTE I - SOBRE A MORTE

II. Sobre os Ataques de Satanás na Hora da Morte

Embora a morte seja em si mesma muito amarga, sua amargura é ainda mais intensificada pela lembrança vívida dos pecados de nossa vida passada, pelo pensamento do julgamento que está por vir, da eternidade que temos diante de nós e pelos ataques de Satanás. Essas quatro coisas enchem a alma de tal terror que ela inevitavelmente se desesperaria, a menos que fosse fortalecida pela ajuda de Deus. Vamos entrar em algumas explicações sobre cada uma dessas quatro coisas e também indicar alguns meios de combater os medos que elas inspiram.

Com relação aos ataques de Satanás, saiba que o Deus totalmente justo permite que ele tenha grande poder para nos atacar na hora da morte; não para nossa perdição, mas para nossa provação. Antes de expirar, o cristão ainda tem que provar que nada pode fazê-lo abandonar seu Deus. Por essa razão, o inimigo maligno emprega todo o poder que recebeu e usa todas as suas forças contra o homem quando ele está morrendo, na esperança de fazê-lo pecar e empurrá-lo para o inferno. Durante toda a nossa vida, ele nos ataca ferozmente e não negligencia nenhum meio pelo qual possa nos enganar. Mas todas essas perseguições não se comparam ao ataque final com o qual ele se esforça para nos vencer no fim. Então ele se enfurece no limite, como um leão rugindo, procurando quem possa devorar.

Isso aprendemos na seguinte passagem do Apocalipse: 'Ai da terra e do mar, porque o diabo desceu a vós, tendo grande ira, sabendo que tem pouco tempo' (Ap 12,12). Essas palavras têm uma aplicação especial para os moribundos, contra os quais o diabo concebe uma grande ira e a quem ele faz todos os esforços para seduzir. Pois ele sabe muito bem que, se não os colocar sob seu poder agora, nunca mais terá a chance de fazê-lo. Ouça o que São Gregório diz sobre esse ponto: 'Considerem bem como é terrível a hora da morte e como será assustadora a lembrança de nossas más ações naquele momento. Pois os espíritos das trevas recordarão todo o mal que nos fizeram e nos lembrarão dos pecados que cometemos por sua instigação. Eles não irão apenas ao leito de morte dos ímpios, mas estarão presentes com os eleitos, esforçando-se para descobrir algo pecaminoso de que possam acusá-los. Ai de nós! Como será para nós, mortais infelizes, naquela hora, e o que poderemos dizer em nossa defesa, vendo quantos são os pecados que nos serão imputados? O que poderemos responder aos nossos adversários, quando eles colocarem todos os nossos pecados diante de nós, com o objetivo de nos levar ao desespero?'

Os espíritos malignos tentarão sua infeliz vítima no momento da morte em vários pontos, mas especialmente no que diz respeito aos pecados em que ela mais frequentemente caiu. Se durante sua vida ela nutriu ódio por alguém, eles conjurarão diante de seus olhos moribundos a imagem dessa pessoa, relembrando tudo o que ela fez para prejudicá-la, a fim de reavivar a chama do ódio contra esse inimigo ou acendê-la novamente. Ou, se alguém transgrediu contra a pureza, eles lhe mostrarão o cúmplice de seu pecado e se esforçarão para despertar a paixão culpada que sentia por essa pessoa. Se ele foi atormentado por dúvidas sobre a fé, eles lhe lembrarão o artigo de crença que ele tinha dificuldade em aceitar, representando-o como falso. Se um homem tem tendência à pusilanimidade, os espíritos malignos a incentivarão nela, para que possam roubar-lhe a esperança da salvação. O homem que pecou por orgulho e se gabou de suas boas obras, procurarão enganar com bajulação, assegurando-lhe que ele está em alta graça com Deus e que tudo o que fez não pode deixar de garantir-lhe um lugar no céu. Novamente, se durante sua vida um homem cedeu à impaciência, permitindo-se ficar zangado e irritado com cada ninharia, eles fazem com que sua doença pareça mais incômoda para ele, para que se torne impaciente e se rebele contra Deus por ter lhe enviado uma doença tão dolorosa.

Ou, se ele foi indiferente e pouco devoto, sem fervor na oração ou assiduidade em seus exercícios religiosos, eles tentarão manter em sua alma esse estado de apatia, sugerindo-lhe que sua fraqueza física é grande demais para permitir que ele se junte às orações que seus familiares fazem por ele. Finalmente, eles tentarão aqueles que levaram uma vida ímpia e repetidamente caíram em pecado mortal, levando-os ao desespero, representando suas transgressões como sendo tão grandes que estão além do perdão. Em uma palavra, os espíritos do mal atacam os mortais no momento da morte com mais ferocidade em seu ponto mais vulnerável, assim como um general habilidoso atacará uma fortaleza pelo lado onde percebe que as muralhas são mais fracas.

Mas os demônios nem sempre se limitam a tentar o homem em relação às suas principais falhas e defeitos predominantes; frequentemente o tentam a cometer pecados dos quais ele até então não era culpado. Pois esses inimigos astutos não poupam esforços para enganar os moribundos e, se falham de uma maneira, tentam ter sucesso de outra. Essas tentações não são de caráter comum. Às vezes são tão violentas que é impossível para os mortais fracos resistir a elas sem ajuda sobrenatural. Se tudo o que alguém em boa saúde pode fazer é resistir aos ataques do demônio, e mesmo assim muitas vezes é vencido por eles, quão difícil deve ser para alguém enfraquecido pela doença lutar contra inimigos tão poderosos!

Sobre este ponto, um escritor piedoso disse: 'A menos que o moribundo, antes de sua última doença, tenha se armado contra esses ataques e se acostumado a lutar contra seus adversários espirituais, ele tem poucas chances de prevalecer contra eles no momento da morte. Se o fizer, será apenas com a ajuda do Deus Todo-Poderoso, de Nossa Senhora, de seu anjo da guarda ou de um dos santos. Pois nosso Deus misericordioso e seus anjos e santos abençoados não abandonam o cristão na hora de sua maior necessidade; eles correm em seu auxílio, isto é, desde que ele seja digno de sua ajuda'. A fim de se preparar antes da última doença para combater essas tentações, é aconselhável recitar com a devida devoção a seguinte oração.

ORAÇÃO

Ó Jesus, compassivo Redentor da humanidade, recordando a tripla tentação que sofrestes do inimigo maligno vos  rogo, pela vossa gloriosa vitória sobre ele, que estejais ao meu lado no meu último conflito e me fortaleceis contra todas as suas tentações. Sei que, com minhas próprias forças, não posso lutar contra um inimigo tão poderoso e certamente serei vencido, a menos que Vós e vossos santos abençoados, me concedais a ajuda oportuna. Portanto, imploro sinceramente o vosso auxílio e a dos vossos santos, e proponho armar-me da melhor maneira possível com a vossa graça, para enfrentar as tentações que me aguardam. Prometo pois, diante de Vós, dos santos anjos e dos santos abençoados, que nunca me exporei voluntariamente a qualquer tentação, seja ela de que natureza for, mas com a ajuda da vossa graça, hei de combatê-las com todas as minhas forças. Amém.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)