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quarta-feira, 5 de julho de 2023

OS MAUS SACERDOTES - TRAIDORES DE DEUS!

Eu sou o Deus que em um tempo fui chamado de o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó. Eu sou o Deus que deu a Lei a Moisés. Esta Lei era como uma vestimenta. Assim como uma gestante prepara o enxoval de seu bebê, Deus também preparou a Lei, que foi como a vestimenta, sombra e sinal das coisas por vir. Eu me vesti e me envolvi a mim mesmo com as vestes da nova Lei. À medida que um menino cresce, suas roupas são substituídas por outras novas. Da mesma forma, quando as vestimentas da Lei Antiga estavam a ponto de serem abandonadas, Eu me vesti com a nova roupa, ou seja, com a Nova Lei e a dei a todos que quisessem ter a mim e ás minhas vestes. Esta roupa não é muito apertada, nem difícil de vestir, mas é bem proporcionada em todas as partes. Não obriga as pessoas a jejuar ou a trabalhar demais, nem a matar-se, nem a fazer nada que esteja além dos limites de suas possibilidades, mas ela é benéfica para a alma e conduz à moderação e mortificação do corpo. Pois, quando o corpo adere demais ao pecado, o pecado o consome. 

Duas coisas podem ser encontradas na Nova Lei. Primeira, uma prudente temperança e o reto uso dos bens físicos e espirituais. Segunda, uma grande facilidade para manter-se na Lei, pelo fato de que, uma pessoa que não pode manter-se em um estado, pode permanecer em outro. Nela, pode-se ver que a pessoa que não conseguia viver o celibato, podia porém, viver um matrimônio honrado, podia levantar outra vez e prosseguir. Entretanto, agora, Minha Lei é rejeitada e menosprezada. As pessoas dizem que a Lei é muito rígida, pesada e sem atrativos. Eles a chamam de rígida, porque ordena a se contentar somente com aquilo que é necessário e evitar o que é supérfluo. Porém, eles querem ter tudo além do razoável e mais do que o corpo pode suportar, como se fossem animais. É por isso que ela lhes parece ser muito rígida ou rigorosa. 

Em segundo lugar, eles dizem que é pesada, pois a Lei diz que a pessoa deve ser indulgente com os desejos de prazer submetendo-os à razão em determinados momentos. Mas, querem ceder aos seus prazeres mais do que lhes convém e além dos limites. Terceiro, dizem que ela não é atrativa, pois a Lei ordena que eles amem a humildade e atribuam todo bem a Deus. Querem ser orgulhosos e exaltarem-se a si mesmos pelos presentes bons que Deus lhes deu. É por isso que ela não é atraente para eles. Veja como eles depreciam as vestes que lhes dei! Eu acabei com as formas antigas e introduzi as novas para durarem até que Eu venha para o Juízo, pois os velhos caminhos eram muito difíceis. Porém, eles, afrontosamente descartaram as vestimentas com as quais Eu cobri a alma, ou seja, uma fé ortodoxa.

Além de tudo isso somaram pecado sobre pecado porque também querem me trair. Davi não disse no salmo: 'Aquele que comeu de meu pão tramou a traição contra mim?' Quero que percebas duas coisas nessas palavras. Primeiro, ele não diz 'trama', mas 'tramou', como se fosse algo já passado. Segundo, ele aponta somente para um homem como traidor. Da mesma forma, Eu digo que são aqueles que no presente me traem, não aqueles que foram ou serão, mas aqueles que ainda estão vivos. Também digo que não se trata de apenas uma pessoa, mas de muitas. Mas tu deves me perguntar: 'Não há dois tipos de pão, aquele invisível e espiritual, do qual os Anjos e os Santos vivem e o outro que pertence a Terra, pelo qual os homens se alimentam? Mas se os Anjos e os Santos não desejam nada que não esteja de acordo com a Tua vontade, e os homens não podem fazer nada que Tu não aceites, como, então, podem Te trair?'

Na presença de minha Corte Celestial que sabe e vê todas as coisas em mim, Eu respondo por teu bem, de forma que possas compreender: De fato, há dois tipos de pão. Um é aquele dos Anjos, que comem meu pão no meu Reino e são preenchidos com a minha glória indescritível. Eles não me traem, pois não querem nada que não seja aquilo que Eu quero. Mas aqueles que comem meu pão no altar me traem. Eu Sou verdadeiramente esse Pão. É possível perceber três coisas nesse Pão: a forma, o sabor e a circularidade. De fato, Eu sou esse Pão e, como tal, tenho três coisas em mim: sabor, forma e circularidade. Sabor, porque tudo é insípido, insubstancial e carente de sentido sem mim, assim como uma refeição sem pão não tem sabor e não é nutritiva. Eu também tenho a forma do pão enquanto me considero da terra. Vim da Virgem, minha Mãe é a de Adão, Adão é da Terra. Também tenho circularidade onde não há princípio nem fim, porque Eu não tenho princípio nem fim. Ninguém pode encontrar um fim ou um princípio na minha sabedoria, no meu poder e na minha caridade. Eu estou em todas as coisas, sobre todas as coisas e além de todas as coisas. Mesmo se alguém voasse perpetuamente como uma flecha, sem parar, nunca encontraria um final ou um limite ao meu poder e à minha força. 

Através dessas coisas, sabor, forma e circularidade, Eu sou o Pão que parece e tem sabor de pão no altar, mas que se transforma em meu corpo que foi crucificado. Do mesmo modo que qualquer madeira facilmente inflamável é rapidamente consumida quando se coloca no fogo, e não resta nada da forma da madeira, pois toda se converte em fogo, assim também acontece quando estas palavras são ditas: 'Este é o meu Corpo…'; o que antes era pão imediatamente torna-se meu corpo. Faz-se uma chama, não como o fogo com a madeira, mas pela minha divindade. Por isso, aqueles que comem meu pão me traem. Que tipo de crime pode ser mais horrível do que quando alguém mata a si mesmo? Ou que traição poderia ser pior do que quando duas pessoas unidas por um vínculo indissolúvel, como um casal, um trai o outro? O que um dos dois faz para trair o outro? Ele diz a ela enganando: 'Vamos a tal e tal lugar de forma que eu passe meu futuro contigo!' Ela vai com ele com toda simplicidade, pronta para satisfazer qualquer desejo de seu marido. Mas, quando ele encontra a oportunidade e o lugar, lança contra ela três armas traiçoeiras. Ou utiliza algo suficientemente pesado para matá-la com um único golpe, ou afiado o suficiente para cortar exatamente seus órgãos vitais, ou, algo asfixiante que sufoca diretamente nela o espírito de vida. Então, quando ela morre, o traidor pensa consigo mesmo: 'Agora eu fiz mal. Se meu crime for descoberto e tornar-se público, serei condenado à morte'. Então, ele leva o corpo da mulher em um lugar escondido, de forma que seu pecado não seja descoberto. 

Esta é a forma com que sou tratado pelos meus sacerdotes, que são meus traidores. Pois eles e Eu estamos ligados por um único vínculo quando tomam o pão e, pronunciando as palavras, o transformam em meu verdadeiro Corpo, que recebi da Virgem. Nenhum dos Anjos pode fazer isto. Eu dei somente aos sacerdotes essa dignidade e os selecionei dentre as mais altas ordens. Mas eles me tratam como traidores. Fazem uma cara feliz e complacente para mim e me levam a um local escondido onde possam me trair. Estes sacerdotes fazem cara de felicidade aparentando ser bons e simples. Eles me levam a uma câmara escondida quando se aproximam do altar. Ali Eu sou como a noiva ou a recém casada, disposta a realizar todos os seus desejos e, em vez disso, eles me atraiçoam. Primeiro, me batem com algo pesado quando o Ofício Divino, que recitam para mim, se torna triste e pesado para eles. De bom grado diriam cem palavras para o bem do mundo do que uma só em minha honra. Antes dariam cem lingotes de ouro para o bem do mundo do que um só centavo em minha honra. Trabalhariam cem vezes por seu próprio benefício do que uma só vez em meu favor. Eles me pressionam tanto com este pesado fardo que é como se eu estivesse morto em seus corações. 

Em segundo lugar, me transpassam com uma lâmina afiada que penetra em meus órgãos vitais cada vez que um sacerdote sobe ao altar, sabendo que pecou e arrependeu-se, mas está firmemente decidido a voltar a pecar, uma vez que tenha terminado seu Oficio. Este diz consigo mesmo: 'Eu de fato me arrependo do meu pecado, mas não penso deixar a mulher com a qual pequei, até que já não possa mais pecar'. Isto me corta como a mais afiada das lâminas. Terceiro, é como se eles asfixiassem meu Espírito quando pensam: 'É bom e prazeroso estar no mundo, é bom ser indulgente com os desejos e não me posso conter. Farei isto enquanto for jovem e quando me fizer mais velho, irei me abster e emendarei meus caminhos'. E, através desse perverso pensamento, eles sufocam o espírito da vida. Mas como isso acontece? Pois bem, o coração destes se torna tão frio e tíbio em relação a mim e a cada virtude que nunca mais pode ser estimulado ou renascer no meu amor. Assim como o gelo não pega fogo, mesmo quando mantido sobre uma chama, mas apenas derrete, da mesma maneira mesmo que Eu lhes dê a minha graça e eles ouçam palavras de advertência, não melhoram no modo de vida, mas apenas crescem estéreis e frouxos a respeito de cada uma das virtudes. 

E assim me traem, naquilo que fingem ser simples quando na realidade não o são, e ficam tristes e desgostosos na hora de dar-me a glória em vez de regozijar-se e também naquilo que pretendem pecar e continuam pecando até o final. Eles também me escondem, por assim dizer, e me colocam em um local oculto quando pensam: 'Sei que pequei. Mas se me abstiver de realizar o Oficio, ficarei envergonhado e todos irão me condenar'.  E assim, imprudentemente, sobem ao altar e tocam em mim, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Fico como se estivesse em um lugar escondido, uma vez que ninguém sabe e nem se dá conta de quão corruptos e sem vergonha eles podem ser. Eu, Deus, permaneço ali, diante deles, como em uma dissimulação, porque, mesmo quando o sacerdote é o pior dos pecadores e pronuncia estas palavras 'Este é o meu corpo', ele ainda consagra meu Verdadeiro Corpo, e Eu, verdadeiro Deus e Homem, permaneço ali diante dele. Quando me põe em sua boca, entretanto, Eu já não estou presente para ele na graça das minhas naturezas divina e humana - só resta para ele a forma e o sabor do pão - não porque Eu não esteja realmente presente para os maus como para os bons devido à instituição do sacramento, mas porque os bons e os maus não o recebem com o mesmo efeito. 

Olhe, estes sacerdotes não são meus sacerdotes, e sim na realidade, meus traidores! Eles também me vendem e me traem como Judas. Olho para os pagãos e judeus, mas não vejo ninguém pior que estes sacerdotes, já que caíram no pecado de Lúcifer. Agora, deixe-me dizer-te sua sentença e a quem se assemelham. Sua sentença é a condenação. Davi condenou aqueles que desobedeciam a Deus, não por ira, ou má vontade nem por impaciência, senão devido à justiça divina, pois ele era um honrado profeta e rei. Eu, também, que sou maior que Davi, condeno estes sacerdotes, não pela ira nem pela má vontade, mas pela justiça. Maldito seja tudo o que retiram da Terra para seu próprio proveito, pois eles não louvam seu Deus e Criador que lhes deu estas coisas. Maldito seja o alimento e a bebida que entra em suas bocas e que alimenta seus corpos para que se convertam em alimento dos vermes e destinem suas almas ao inferno. Malditos sejam seus corpos que se levantarão novamente no inferno para ser queimados eternamente. Malditos sejam os anos de suas vidas inúteis. Maldita seja sua primeira hora no inferno, que nunca terminará. Malditos sejam por seus olhos que viram a luz do Céu. Malditos sejam por seus ouvidos que ouviram minhas palavras e permaneceram indiferentes. Malditos sejam por seu paladar, pelo qual experimentaram meus manjares. Malditos sejam por seu tato, pelo qual me tocaram. Malditos sejam, por seu olfato, pelo qual sentiram aromas agradáveis e se descuidaram de mim, que sou o mais agradável de todos. 

Agora, como são exatamente amaldiçoados? Pois bem, sua visão está amaldiçoada porque não desfrutará da visão de Deus em si, mas apenas verão sombras e os castigos do inferno. Seus ouvidos estão amaldiçoados porque não ouvirão minhas palavras, senão somente o clamor e os horrores do inferno. Seu paladar está amaldiçoado porque não experimentarão os bens e o gozo eternos, mas sim a amargura eterna. Seu tato está amaldiçoado porque não conseguirão tocar-me, senão somente o fogo perpétuo. Seu olfato está amaldiçoado, porque não sentirão esse doce perfume do meu Reino, que supera todas as essências, mas terão apenas o fedor do inferno que é mais amargo do que a bílis e pior que o enxofre. Sejam malditos pela Terra e o Céu e por todas as feras. Essas criaturas obedecem e glorificam a Deus, enquanto que eles me evitaram. Por isto eu prometo pela verdade, Eu que sou a Verdade, que se eles morrerem assim, com essa disposição, nem meu amor nem minha virtude os salvará. Ao contrário, estarão condenados para sempre.

(Excertos da obra 'Profecias e Revelações de Santa Brígida', Livro I - Cap. 47)


terça-feira, 21 de março de 2023

SERMÃO SOBRE A CEGUEIRA


Oh quem me dera tivesse agora neste auditório o mundo todo! Quem me dera que me ouvisse agora Espanha, que me ouvisse a França, que me ouvisse a Alemanha, que me ouvisse a mesma Roma! Príncipes, reis, imperadores, monarcas do mundo, vedes a ruína dos vossos reinos, vedes as aflições, e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou vedes, ou não o vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. 

Príncipes eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó prelados que estais em seu lugar, vedes as calamidades universais, e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes a irreverência dos lugares sagrados, vedes o abuso dos costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta de doutrina sã, vedes a condenação, e perda de tantas almas dentro, e fora da Cristandade? Ou o vedes, ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. 

Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra, vedes as obrigações que se descarregam sobre o vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustiças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes os respeitos, vedes as potências dos grandes, e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores, e gemidos de todos? Ou o vedes, ou o não vedes? Se o vedes, como não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. 

Pais de família, que tendes casa, mulher, filhos, criados, vedes o desconcerto, e descaminho das vossas famílias, vedes a vaidade da mulher, vedes o pouco recolhimento das filhas, vedes a liberdade, e más companhias dos filhos, vedes a soltura, e descomedimento dos criados, vedes como vivem, vedes o que fazem, e o que se atrevem a fazer, fiados muitas vezes na vossa dissimulação, no vosso consentimento, e na sombra do vosso poder? Ou o vedes, ou o não vedes? Se o vedes, como não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. 

Finalmente, homem cristão, de qualquer estado, e de qualquer condição que sejas: vês a Fé e o caráter que recebeste no batismo, vês a obrigação da Lei que professas, vês o estado em que vives há tantos anos, vês os encargos da tua consciência, vês as restituições que deves, vês a ocasião de que não te apartas, vês o perigo da tua alma, e de tua salvação, vês que estás atualmente em pecado mortal, vês que se te toma a morte nesse estado, que te condenas sem remédio; vês que, se te condenas, hás de arder no inferno, enquanto Deus for Deus, e que hás de carecer do mesmo Deus por toda a eternidade? 

Ou vemos tudo isto, cristãos, ou não o vemos? Se o não vemos, como somos tão cegos? E se o vemos, como o não remediamos? Fazemos conta de o remediar alguma hora, quando há de ser esta hora? Ninguém haverá tão ímpio, tão bárbaro, tão blasfemo, que diga que não. Pois se o havemos de remediar alguma hora, quando há de ser esta hora? Na hora da morte? Na última velhice? Essa é a conta que lhe fizeram todos os que estão no inferno, e lá estão, e lá estarão para sempre. E será bem que façamos nós também a mesma conta, e que nos vamos após eles? Não, não, não queiramos tanto mal a nossa alma. Pois se algum dia há de ser, se algum dia havemos de abrir os olhos, se algum dia nos havemos de resolver, porque não será neste dia?

Ah Senhor, que não quero persuadir aos homens, nem a mim (pois somos tão cegos), a Vós me quero tornar. Não olheis, Senhor, para as nossas cegueiras; lembrai-Vos dos Vossos olhos, lembrai-Vos do que eles fizeram hoje em Jerusalém. Ao menos um cego saia hoje daqui alumiado. Ponde em nós esses olhos piedosos; ponde em nós esses olhos misericordiosos; ponde em nós esses olhos onipotentes. Penetrai, e abrandai com eles a dureza destes corações: rasgai, e alumiai a cegueira destes olhos; para que vejam o estado miserável de suas almas; para que vejam quanto lhes merece essa Cruz, e essas chagas; e para que lançando-nos todos aos Vossos pés, como hoje fez o cego, arrependidos com uma firmíssima resolução de nossos pecados, nos façamos dignos de ser alumiados por Vossa Graça e Vos ver eternamente na Glória.

('Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma', do Pe. Antônio Vieira, pregado na Igreja da Misericórdia de Lisboa, no ano de 1669)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

OS GRAUS DO SACRAMENTO DA ORDEM


O Sacramento da Ordem é um só, mas é subdividido em diferentes graus hierárquicos, que foram bastante reduzidos após as reformas litúrgicas do Concílio Vaticano II. No rito tradicional, o Sacramento da Ordem era composto por sete graus distintos, que incluíam quatro ordens iniciais chamadas menores e três outras finais chamadas maiores, todas vinculadas a simbolismos explícitos associados a uma crescente hierarquia de ação litúrgica. 

O primeiro grau era chamado Ordem do Ostiário quando o seminarista recebia a incumbência de abrir e fechar a igreja e cuidar dos vasos sagrados.

O segundo grau constituía a Ordem do Leitor; pela qual o seminarista recebia a tarefa de ler as Sagradas Escrituras durante o Ofício Divino e catequizar o povo.

O terceiro grau compreendia a Ordem do Exorcista; com esta ordem, o seminarista recebia o poder de expulsar o demônio dos corpos daqueles que estão possuídos (embora o uso desse poder estivesse sujeito a uma formação e permissão adicionais).

O quarto grau constituía a Ordem do Acólito, pela qual o seminarista poderia fazer o ofício de servir a Santa Missa.

O quinto grau compreendia a Ordem do Subdiaconato; por essa ordenação, o postulante fazia o seu voto de castidade perpétua e recebia, então, o poder de ajudar o diácono e o sacerdote no Altar. 

Pelas reformas litúrgicas do Concílio Vaticano II, o papa Paulo VI extinguiu as quatro Ordens Menores e o subdiaconato (o leitorato e o acolitato foram mantidos como ministérios e passíveis de concessão a leigos e obrigatórios aos postulantes do diaconatopresbiterado e episcopado). Com a denominação explícita de Ordem permaneceram apenas os graus de diaconato, presbiterado e episcopado na Igreja Latina. 

O sexto grau (atualmente vigente) consistia na Ordem do Diaconato, pelo qual o postulante recebe o poder de auxiliar o sacerdote no altar, de anunciar o Evangelho, fazer pregações e batismos.

O sétimo grau (atualmente vigente) compreendia a Ordem dos Sacerdotes (presbiterado para os padres e episcopado para os bispos) que outorga ao postulante o poder de consagrar o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e o de perdoar os pecados, ou seja, de ser um sacerdote sendo um outro Cristo e continuar nesta terra a obra da redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, embora seja um único sacramento, a ordem é estabelecida em graus distintos para os bispos, os presbíteros e os diáconos do único sacerdócio de Cristo. Em cada modalidade da ordem - bispos, presbíteros ou diáconos - há um idêntico rito ou sinal que é a imposição das mãos, mas em cada um deles, pela fórmula da consagração, são invocadas graças específicas ou diferentes dons do Espírito Santo.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

10 VEZES BERNARDES

 

1. Quem não obedece as leis de Deus acaba sendo escravo das leis do homem.

2. A um vaso de vinho misturado com três partes de água não chamaremos com razão vinho; nem a um pouco de açúcar envolvido em três tantos de sal chamaremos com razão açúcar. Logo, se eu mostrar como a nossa vida é misturada, ao menos, com três tantos de morte, provado ficará que lhe não devemos chamar, absoluta e simplesmente, vida, pois vai o seu vigor tão aguado e a sua doçura tão salgada com as propriedades da morte.

3. Neste mundo faz Deus dos ímpios vara com que castiga os justos; mas depois chama os justos para o Reino, e lança a vara ao fogo...

4. Ó doçura de meu coração! Ó vida de minha alma! Ó agradável repouso de meu espírito! Abstraí-me de todas as criaturas, para que só em vós descanse. Ó meu Deus e Senhor, toda a minha esperança e refúgio meu! Ó alvo aonde atiram os meus desejos! Quando, quando apartareis de mim tudo o que de vós me aparta?

5. Em maus caminhos, raro é não haver maus encontros.

6. Quem quiser pois medir a grandeza do corpo do pecado, olhe para a sombra que este causou no corpo de Cristo. Os altos montes medem-se pela sombra que fazem, e porque a sombra da terra chega a escurecer o firmamento, coligimos que o corpo da mesma terra é vastíssimo; logo, se a sombra do pecado chegou a escurecer o mesmo filho de Deus, quem deixará já de reconhecer a grandeza do corpo do pecado?

7. Olhai o tráfego! Tudo ferve, tudo se muda por instantes. Se divertirdes os olhos, dali a nada tudo achareis virado. O rico já é pobre, o mecânico já é fidalgo, o moço já é velho, o são já é enfermo, e o homem já é cinzas. Já são outras cidades, outras ruas, outra linguagem, outros trajos, outras leis, outros homens... Tudo passa!

8. Sabeis que coisa é a esperança? Uma engenhosa máquina com que o espírito se guinda desde o mundo para a eternidade; e assim não lhe carrega o peso dos males que cá embaixo leva, porque tanto furta à aflição do trabalho que padece, quanto se levanta à contemplação do descanso que espera.

9. Amar é querer algum bem à pessoa amada. Os pais que [amam os seus filhos] repreendem e castigam os seus filhos, lhes apertam o freio em seus apetites, lhes quebram as suas próprias vontades, velam sobre as companhias em que andam, exercícios em que se ocupam e que fazem os mais ofícios de uma boa e solícita educação ... e, e quanto ao espiritual, o que pretendem é que eles tenham virtude e a graça de Deus e que, por fim, consigam o morgado da felicidade eterna.

10. Assim como o amor de Deus é a raiz de todas as virtudes, o amor-próprio é a raiz de todos os vícios.

[Pe. Manuel Bernardes (1644 - 1710)]

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

ORAÇÃO DO CURA D'ARS PELOS SACERDOTES


Onipotente e eterno Deus, dignai-Vos olhar a face do Vosso Divino Filho e, por amor a Ele, tende piedade de Vossos sacerdotes. Lembrai-Vos que são apenas frágeis e débeis criaturas. Conservai neles sempre vivo o fogo do Vosso amor e guardai-os de modo que o inimigo não possa prevalecer contra eles e que nunca se tornem indignos de sua santa vocação.

Eu Vos rogo pelos Vossos sacerdotes fiéis e fervorosos, pelos que se empenham em missões próximas ou distantes, pelos que Vos tenham abandonado. Ó Jesus, eu vos rogo pelos sacerdotes jovens e anciãos, pelos que se encontram enfermos ou agonizantes e pelas almas daqueles que padecem no Purgatório.

Ó Jesus, Eu Vos rogo pelo sacerdote que me batizou, pelos sacerdotes que perdoaram os meus pecados, por aqueles que celebraram ou que celebram as missas a que eu assisto, pelos que me instruíram e pelos que me aconselharam, por todos os sacerdotes a quem devo algum motivo de gratidão.

Ó Jesus, guardai-os todos junto ao Vosso Sagrado Coração e concedei-lhes abundantes bênçãos desde agora e por toda a eternidade. Amém.

Sagrado Coração de Jesus, bendizei aos Vossos sacerdotes.

Sagrado Coração de Jesus, santificai os Vossos sacerdotes.

Sagrado Coração de Jesus, reinai pelos Vossos sacerdotes.

Maria, Mãe dos sacerdotes, rogai por todos eles.

Dai-nos, Senhor, vocações sacerdotais e religiosas.

Amém. 
(São João Maria Vianney, o Cura D'Ars)

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

SOBRE OS QUE SERÃO JULGADOS COMO ANJOS


É uma verdade incontestável que a misericórdia e a justiça de Deus caminham juntas e ambas - como atributos infinitos da Providência Divina - hão de acompanhar os juízos particulares de todos os homens no plano da eternidade. Essa realidade por si só já é tremenda: 'Deus tem misericórdia de quem o teme, não de quem se usa dela para não o temer' (Santo Afonso Maria de Ligório).

Essa premissa fundamental tem um corolário muitíssimo mais inquietante para o espectro dos homens. A associação divina entre justiça e misericórdia tende a pender em favor da justiça divina, tanto mais intensamente, para quem mais usufruiu da abundância das graças divinas. O pecado dos anjos rebeldes, por exemplo, resumiu-se em um ato de soberba extrema contra a Providência Divina, que resultou num imediato e irrevogável veredito de danação eterna no momento seguinte.

Quais são os homens que, na terra, em termos do acesso e usufruto das graças divinas, mais se aproximam dos anjos? Os sacerdotes, sem dúvida alguma; os padres, bispos, cardeais e papas da Santa Igreja Católica. Para eles, especialmente, é de se esperar uma realidade de juízo particular muitíssimo diferenciada daquela que seria aplicada aos leigos, a não ser em casos muito excepcionais. Assim, todo homem ímpio deverá passar pelo crivo da justiça divina, mas os maus sacerdotes serão julgados pelo rigor divino da sua justiça em uma escala incomparavelmente maior.  

São Crisóstomo (conforme exposto por Santo Afonso de Ligório) tornou cristalina essa argumentação: 'A maior ciência dá lugar a um castigo mais severo; se o pastor cometer os mesmos pecados que as suas ovelhas, não receberá o mesmo castigo, mas uma pena muito mais dura'. E o seu testemunho adicional é avassalador para os maus sacerdotes: 'É o que a experiência deixa ver: um secular, depois de pecar, facilmente se arrepende. Se assiste a uma missa, se ouve um sermão enérgico sobre alguma verdade eterna - malícia do pecado, certeza da morte, rigor do juízo de Deus, penas do inferno -  entra facilmente em si e volta-se para Deus; porque estas verdades, como coisas novas, tocam-no e penetram-no de temor. Mas quando um padre há calcado aos pés a graça de Deus, com todas as luzes e conhecimentos recebidos, que impressão podem fazer ainda nele as verdades eternas e as ameaças das divinas Escrituras? Tudo quanto encerra a Escritura é para ele uma coisa sediça e de pouco valor; porque as coisas mais terríveis que lá se encontram, por muito lidas, já lhe não fazem impressão. Donde conclui que nada mais impossível que a emenda de quem sabe tudo e peca'.

'Quanto maior é a dignidade dos padres' - diz São Jerônimo - 'tanto maior é a sua ruína, se num tal estado chegam a abandonar a Deus'. São Bernardo afirma categoricamente que 'Quanto mais elevado é o posto em que Deus o colocou, tanto mais funesta será a sua queda', expressão similar ao pensamento de Santo Ambrósio: 'Quando se cai num plano, raro se experimenta grande mal; mas cair de um lugar alto não é só cair, é precipitar-se, e a queda será mortal'.

É o mesmo São Bernardo que afirmou: 'A ingratidão faz estancar a fonte da bondade divina'. Que ingratidão a Deus pode ser cometida pelos homens maior que a de um sacerdote que, desprezando os tesouros das graças da Igreja, abandona a sã doutrina e se vende, a preço vil, para os louros, afazeres e caprichos deste mundo? Achincalham a liturgia da Santa Missa, assumem a ideologia dos inimigos da Igreja, tornam-se vedetes da comunicação insossa, insuflam egos para se tornarem cegos, fazem todas as concessões possíveis ao ecumenismo, fecham todas as portas à sã doutrina. Abraçam a iniquidade com tal malícia e insensatez, que sobre eles São Jerônimo ousou dizer: 'Nenhuma besta há no mundo mais feroz do que um mau padre'.

E, quanto mais este infeliz se afunda num abismo de insanidades, mais nele se regala pela sensação de tranquilidade e de confraternizações mundanas cada vez maiores. A insensatez se ensoberbece pela insanidade. Quem mais perto esteve do Céu, mais dele se afasta numa desembestada correria. O sacerdote perde a sua condição divina e torna-se, cada vez mais, um homem comum. E nada pode ser mais trágico na história humana da salvação do que um homem comum ser julgado por Deus um dia como se fosse um anjo. 

sábado, 3 de julho de 2021

SOBRE A AÇÃO DIABÓLICA NO MUNDO


Trechos adaptados de uma entrevista dada pelo Padre Gabriele Amorth (1925 - 2016), a um jornal italiano em junho de 2001, por ocasião da conclusão da versão italiana do chamado 'Novo Manual do Exorcismo da Igreja Católica'. Trechos de uma outra entrevista concedida por este sacerdote também foram publicados neste blog (aqui).

Por que a crítica sobre o Novo Ritual de Exorcismo aprovado pela Igreja?

O Ritual do Exorcismo teria que ser revisado, não reescrito. Nele, havia orações que foram usadas por doze séculos. Antes de eliminar essas frases antigas, que têm sido muito eficazes, era preciso pensar bem. Mas não! Todos os exorcistas que usaram as orações do Novo Ritual atestam que elas são absolutamente ineficazes. Mas também o rito do batismo infantil foi arruinado. Foi renovado de tal forma que o exorcismo contra Satanás quase foi eliminado. O batismo sempre teve uma importância enorme para a Igreja, a ponto de ser chamado de exorcismo menor. Paulo VI protestou publicamente contra este novo rito.

Encontramos esta mesma degeneração do rito, na nova bênção. Li cuidadosamente as 1200 páginas dele. Bem, toda e qualquer referência ao fato de que o Senhor nos protege contra Satanás e que os anjos nos protegem dos ataques do diabo foram sistematicamente removidos. Todas as orações pela bênção de casas e escolas foram eliminadas. Tudo deve ser abençoado e protegido, mas hoje não há mais proteção contra o diabo. Não há mais defesa, não há orações contra ele. O próprio Jesus nos ensinou uma oração de libertação no Pai Nosso: 'Livrai-nos do Maligno. Livrai-nos da pessoa de Satanás'. Esta oração foi mal traduzida, e hoje as pessoas oram, dizendo: 'Livrai-nos do mal'. Fala-se de um mal geral, cuja origem, basicamente, não é conhecida.

Dou-lhe apenas dois exemplos, ambos incríveis. O ponto 15 fala sobre a maldição, que é um mal causado a uma pessoa que recorre ao diabo. Isso pode ser feito de várias maneiras, como feitiços, maldições, mau-olhado, vodu, macumba. O antigo Ritual Romano explicava como lidar com isso. O novo Ritual, por outro lado, declara, categoricamente, que é totalmente proibido realizar exorcismos nestes casos. Absurdo. Os feitiços são, de longe, a causa mais frequente de possessões e males causados ​​pelo diabo, pelo menos 90% das vezes. É como dizer aos exorcistas para pararem de fazer exorcismos. 

O ponto 16 declara solenemente que os exorcismos não devem ser realizados se não houver certeza da presença do diabo. Esta é uma obra-prima da incompetência: a certeza de que o diabo está presente na pessoa só se consegue com o exorcismo. Ambos os pontos contradizem o Catecismo da Igreja Católica, que expressa claramente que é necessário o exorcismo tanto no caso das possessões diabólicas como no caso dos males oriundos da ação do demônio. O manual também explicita que o exorcismo deve ser praticado tanto sobre as pessoas quanto sobre as coisas. E o diabo nunca está presente nas coisas, mas apenas a sua influência. As declarações contidas no novo Ritual são muito sérias e muito prejudiciais.

Mas não foram os peritos que o prepararam? 

De jeito nenhum! Nestes dez anos, duas comissões trabalharam no Ritual: uma formada por cardeais, que tratou das disposições iniciais e outra, que tratou das orações. Posso afirmar, com certeza, que nenhum dos membros das duas comissões jamais fez exorcismo, nem esteve presente em exorcismos, nem têm a menor ideia do que seja exorcismo. Este é o erro, o pecado original, deste Ritual. Nenhum dos que colaboraram nele é especialista em exorcismos.

Mas como isso foi possível?

Não me pergunte. Durante o Concílio Ecumênico Vaticano II, em todas as comissões havia um grupo de especialistas que ajudaram os bispos. Este costume foi mantido após o Concílio, cada vez que partes do Ritual foram modificadas. Mas não foi assim neste caso. E se havia um assunto em que especialistas eram necessários, era esse... os exorcistas nunca foram consultados. E, além disso, as comissões têm recebido as sugestões que fizemos com desdém. Essa coisa toda é perversa... quando passamos a examinar a parte prática, que exige um conhecimento específico do assunto, percebemos a total inexperiência dos editores. Fizemos numerosas observações, artigo por artigo, e as transmitimos a todas as partes interessadas: Congregação para o Culto Divino, Congregação para a Doutrina da Fé e as conferências episcopais. Uma cópia foi entregue diretamente ao Papa.

Os bispos são os responsáveis por credenciar os sacerdotes exorcistas?

Sim. Quando um sacerdote é nomeado bispo, ele se depara com um artigo do Código de Direito Canônico que o autoriza plenamente a nomear exorcistas. O mínimo que se pode pedir a um bispo é que ele tenha participado de pelo menos um exorcismo, já que deve tomar uma decisão tão importante. Infelizmente, isso quase nunca acontece. Mas se um bispo recebe um pedido sério de exorcismo - isto é, não feito por um louco - e não age de acordo, ele está cometendo um pecado mortal. Você será responsável por todo o terrível sofrimento daquela pessoa, às vezes durando anos ou toda a vida, quando você poderia ter evitado.

Os bispos e sacerdotes que não creem no demônio já não são católicos?

Digamos que eles não acreditam em uma verdade evangélica. Então eles provavelmente seriam acusados de heresia.  Mas sejamos claros: alguém é formalmente herege, se for acusado de cometer um erro e persistir nele. Mas, devido à situação que existe hoje na Igreja, ninguém, nunca, acusaria nenhum bispo por não acreditar no diabo ou nas possessões demoníacas, ou de não nomear exorcistas porque não acreditam nessas coisas. Eu poderia mencionar um grande número de bispos e cardeais que, assim que foram nomeados para uma diocese, a primeira coisa que fizeram foi privar todos os exorcistas do poder de exercer a profissão. Ou bispos que afirmam abertamente: 'Não acredito nisso. São coisas do passado'... 

... O Concílio Vaticano II havia pedido que alguns textos fossem revisados. Essa ordem foi desobedecida, pois havia o desejo de refazê-los completamente, sem pensar que eles poderiam piorar as coisas ao invés de melhorar. Muitos ritos foram agravados por aquela mania de querer se livrar de tudo o que aconteceu, para fazer de novo, como se a Igreja, até hoje, a única coisa que fez foi nos enganar e mentir, e como se apenas até agora, tivesse grandes gênios, super teólogos, super estudiosos da bíblia, super liturgistas, que sabem dar à Igreja o que é bom. Isso é uma mentira: o último Concílio simplesmente pediu que os textos fossem revisados, não destruídos.

Na sua opinião, qual é o maior feito de Satanás?

Fazer acreditar que não existe. E quase isso foi alcançado. Mesmo dentro da Igreja. Temos um clero e um episcopado que deixou de acreditar no diabo, nos exorcismos, nos males extraordinários que o diabo pode causar e nem mesmo no poder que Jesus nos deu para expulsar demônios. Por três séculos, a Igreja latina - ao contrário da ortodoxa e de várias denominações protestantes - abandonou quase completamente o ministério do exorcismo. Por não praticar exorcismos, por não estudá-los e por nunca os ter visto, o clero não acredita mais neles. Mas ele nem mesmo acredita no diabo. Temos episcopados inteiros que são hostis aos exorcismos. Existem países em que não existe sequer um exorcista, como Alemanha, Suíça, Espanha e Portugal. Uma falta terrível.

O satanismo está sendo cada vez mais difundido pelo mundo?

Sim, enormemente. Quando a fé diminui, a superstição aumenta. Na linguagem bíblica, posso dizer que as pessoas estão abandonando Deus e se rendendo ao ocultismo. O terrível desaparecimento da fé em toda a Europa católica, coloca as pessoas nas mãos de feiticeiros e adivinhos, e assim prosperam as seitas satânicas. Uma forte propaganda é feita do culto ao diabo, para as massas, através do rock satânico e de personagens como Manson. Crianças também estão sendo atacadas: há revistas e gibis que ensinam bruxaria e satanismo.

As sessões espíritas, nas quais os mortos são evocados para obter respostas, são comuns. Agora se ensina a realizar sessões espíritas por meio de computadores, telefones, televisores e gravadores de vídeo, mas, acima de tudo, com escrita automática. Já não é necessário nem médium: é um espiritismo que cada um pode fazer por si. De acordo com pesquisas, 37% dos alunos jogaram jogos de cartas em uma verdadeira sessão espírita. Em uma escola onde fui convidado a falar, os meninos me disseram que jogaram este jogo durante a aula de religião, diante dos olhos satisfeitos do professor.

E isso expõe as pessoas à ação demoníaca? 

Não há diferença entre magia branca e magia negra. Quando a magia funciona, é sempre obra do diabo. Todas as formas de ocultismo, como esta fuga para as religiões do Oriente, com suas sugestões esotéricas, são portas abertas para o demônio. E o diabo entra. Imediatamente.

O que faz o demônio para seduzir o homem?

A sua estratégia é sempre a mesma. Já contei isso a ele que o reconheceu. Faz-nos acreditar que o inferno não existe, que o pecado não existe e que é apenas mais uma experiência a ser vivida. Luxúria, sucesso e poder são as três grandes paixões nas quais Satanás confia.

Como alguém torna-se uma vítima do demônio?

Alguém pode ser objeto de ataques do demônio, em quatro casos. Pode ser uma bênção para a pessoa (como no caso de muitos santos), pode ser por uma persistência irreversível no pecado, pode ser por uma maldição que alguém faz invocando o nome do diabo ou pode ser pela prática do ocultismo.

Você tem medo do demônio?

Ter medo desse animal? É ele quem deve ter medo de mim: eu ajo em nome do Senhor do mundo, enquanto ele é apenas o macaco de Deus.

A ação do demônio visa triunfar sobre a alta hierarquia da Igreja?

É uma estratégia vitoriosa, que ele tenta sempre colocar em prática. Principalmente quando as defesas do oponente são fracas. Satanás também tenta. Mas, graças a Deus, é o Espírito Santo que dirige a Igreja: 'As portas do inferno não prevalecerão'. Apesar das deserções, e apesar das traições, não devem causar espanto. O primeiro traidor foi um dos apóstolos mais próximos de Jesus: Judas Iscariotes. Mas, apesar disso, a Igreja continua o seu caminho. O Espírito Santo está presente e, portanto, os ataques de Satanás só podem ser parcialmente bem sucedidos. Naturalmente, o demônio pode vencer batalhas, até mesmo batalhas importantes, mas ele nunca vai ganhar a guerra.

terça-feira, 30 de março de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: SERMÃO DO DIA DE RAMOS (II)


E a alma, o que há de fazer? O corpo, imitar; a alma, meditar: o corpo com os ramos da palma, a alma com os da oliveira. A alma nestes santos dias há de fazer do coração um Monte Calvário, levantar nele um Cristo crucificado, e pôr-se desta maneira a contemplar suas dores. Oh! quem pudera explicar-se agora com o pensamento, e falar com o silêncio! Quando os amigos de Jó o foram visitar nos seus trabalhos - diz a Escritura Sagrada - ficaram uma semana inteira olhando só para ele, sem falarem palavra. Assim o hão de fazer nossas almas esta semana, se são amigas de Jesus: olhar, calar e pasmar. Oh! que vista! Oh! que silêncio! Oh! que admiração! Oh! que pasmo! Só três coisas dou licença a nossas almas que se possam perguntar a si mesmas no meio desta suspensão: Quem padece? O que padece? Por quem padece? E que meditação esta para uma eternidade!

Quem padece? Deus, aquele ser eterno, infinito, imenso, todo poderoso, aquele que criou o céu e a terra com uma palavra, e o pode aniquilar com outra; aquele, diante de cujo acatamento, os principados, as potestades e as dominações, e todas as hierarquias estão tremendo. Este Deus, cuja grandeza; este Deus, cuja majestade; este Deus, cuja soberania incompreensível só ele conhece inteiramente, e todos os entendimentos criados com infinita distância de nenhum modo podem alcançar, este, este é o que padece. 

Aqui se há de fazer uma pausa, e pasmar. São Bernardo, cheio de pasmo e assombro nesta mesma consideração, rompeu dizendo: Ergo ne credendum est, quod iste sit Deus, qui flagellatur, qui conspuitur, qui crucifigitur? [por que não cremos que é esse Deus que é flagelado, que é cuspido, que é crucificado?] É possível que se há de crer que este, que padece tantas injúrias e afrontas e tal morte é aquele mesmo Deus imortal, impassível, eterno, que não teve princípio, e é o princípio e fonte de todo ser? Este, este é; que nem ele seria Deus, nem a nossa fé seria fé, se assim não fosse, e nós não creríamos o que excede toda a capacidade humana. Por isso Isaías, quando entrou a falar da Paixão, como profeta que entre todos era o mais eloquente, o exórdio por onde começou foi aquela pergunta: Quis credidit auditui nostro? [quem acreditou na nossa pregação?]. Quem haverá que dê crédito ao que há de ouvir de minha boca? Tão alheio é quem padece do que padece, e este é Deus. Vede se há bem de que pasmar aqui.

Depois de considerarmos que é Deus quem padece, então se segue a consideração do que padece. E não só havemos de trazer à memória o que já vimos que padeceu exteriormente em todos os sentidos do corpo, mas muito mais devemos considerar e ponderar o que padeceu no interior da alma e em todas suas potências. Com dois nomes, ou com duas semelhanças nos declarou nosso amorosíssimo Redentor o que padeceu em sua Paixão, com nome e semelhança de cálice, quando disse a São Pedro: Calicem, quem dedit mihi Pater, non vis ut bibam illum? - o cálice que me deu o meu Pai, não queres que o beba? E com nome e semelhança de Batismo, quando disse a todos os discípulos: baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor usque dum perficiatur - Eu hei de ser batizado em um batismo, o qual desejo com grandes ânsias e aperto do coração até que chegue. 

De sorte que declarou o Senhor o que havia de padecer por nós, já chamando-lhe cálice, já batismo, e por quê? Porque o batismo recebe-se por fora, o cálice bebe-se por dentro, e Cristo, Redentor nosso, em toda sua Paixão não só padeceu por fora os martírios do corpo, senão também, e muito mais, por dentro os tormentos da alma. Por fora padeceu os tormentos dos açoites, dos espinhos, dos cravos, da lança, que o banharam todo em sangue, e por isso lhes chamou Batismo; por dentro, padeceu as tristezas, os tédios, os temores, as angústias e agonias, que, sem ferro, lhe tiraram também sangue no Horto, e lhe penetravam mortalmente a alma: Tristis est anima mea usque ad mortem [Minha alma está triste até a morte (Mc 14, 34].

Oh! quem pudesse entrar profundamente no interior da alma de Jesus, e entender o que naquele consistório sacratíssimo e secretíssimo das suas três potências passava e sofria por tantas horas! A memória, desde o princípio do mundo, representava os pecados de todos os homens, por quem satisfazia a divina justiça; o entendimento ponderava o pouco número dos mesmos homens que se haviam de aproveitar do preço infinito daqueles tormentos, e a vontade se desfazia com dor de ver perder tantas almas por sua culpa, sem achar consolação alguma a tamanha perda; e esta era a tristeza que ocupava toda a alma do Salvador e com três cravos mais agudos e penetrantes a crucificava. Aqui havemos de fazer a segunda pausa, e pasmar tanto daquele infinito amor, como da nossa infinita cegueira. Oh! Senhor, quantos pode ser que vísseis então, dos que agora se acham nesta mesma igreja, que, por que haviam de desprezar e condenar as suas almas, agonizavam a vossa! Considere cada um se porventura, ou eterna desventura, é algum destes, e vejam bem o seu perigo enquanto têm tempo.

Este é o Deus que padece, estas são as penas e dores que padece, e só resta ver por quem padece. Se a fé me não ensinara outra coisa, cuidara eu que padecia Deus pelo céu, porque vejo o sol eclipsado e coberto de luto; cuidara que padecia pela terra, porque a vejo tremer e arrancar-se de seu próprio centro; cuidara que padecia pelas pedras, porque as vejo quebrarem-se umas contra as outras e abrirem-se as sepulturas; cuidara que padecia pelo Templo de Jerusalém, porque vejo rasgar-se de alto a baixo o véu do Sancta Sanctorum; cuidara que padecia por este mundo elementar, porque vejo confusos, perturbados, atônitos e com prodígios de sentimento e assombro todos os elementos. 

Mas não são estas as criaturas por quem padece Deus, posto que todas confessam que padece o seu Criador; e, como seres irracionais e insensíveis, quiseram acabar como Ele quando o veem morrer. Quem são logo aqueles por quem padece o Autor da natureza, e por quem morre o Autor da vida? Sou eu, sois cada um de vós, e somos todos os homens. Por nós, e só por nós Deus padece; por nós, e só por nós padece quanto padece. Por nós que, depois de nos criar, o não respeitamos; por nós que, depois de nos sustentar, o não servimos; por nós que, depois de nos remir, o não obedecemos; por nós que, depois de morrer por nosso amor, o não amamos; por nós que, depois de se pôr em uma cruz por nós, o tornamos a crucificar mil vezes; por nós que, esperando-nos assim, e chamando-nos com os braços abertos, não queremos acudir às suas vozes; por nós, enfim, que, sabendo que nos há de julgar e nos prometeu o céu se o não ofendermos, queremos antes o inferno sem ele, que o céu com ele. Isto é o que faz todo o homem que peca mortalmente, e isto o que continua a fazer enquanto se não se livra do pecado, para que vejais se tem razão, não só de pasmar, mas de perder o juízo.

('Sermão de Dia de Ramos' - Parte II, Pe. Antônio Vieira, pregado na Matriz do Maranhão, no ano de 1656)

segunda-feira, 29 de março de 2021

SEMANA SANTA MAIOR: SERMÃO DO DIA DE RAMOS (I)


Acabemos de nos desenganar, antes que se acabe o tempo: Ecce nunc tempus acceptabile [agora é o tempo favorável]. Acabemos de tratar da salvação, antes que se fechem as portas da misericórdia: Ecce nunc dies salutis [agora são os dias da salvação]. Ou fazemos conta de nos converter deveras a Deus alguma hora, ou não: se não fazemos esta conta, para que somos cristãos? Por outro caminho mais largo podíamos ir ao inferno. Mas se nenhum há tão rematadamente inimigo de sua alma, que ao menos não tenha intenção de algum dia a tirar do poder do demônio e a dar a Deus, quando há de ser este dia? Que dia, ou que dias mais a propósito podemos ter ou esperar que estes da Semana Santa? Que dias mais a propósito para pedir a Deus perdão dos pecados, que aqueles mesmos dias em que Deus se pôs em uma cruz por meus pecados? Que dias mais a propósito para alcançar e ter parte nos merecimentos do sangue de Cristo, que os dias em que se está derramando o mesmo sangue? Agora, agora, e não depois, é o tempo aceito a Deus: Ecce nunc tempus acceptabile. Estes dias, estes, e não os futuros, incertos e enganosos, são os dias da salvação: Ecce nunc dies salutis.

Suposto pois, cristãos, que este é o tempo, e suposto que os dias são tão precisos que não temos outros para que apelar, o que resta é recuperar o perdido, e que nos aproveitemos deles com tais atos de verdadeira contrição e devoção, que esta Semana Santa, como o é em si, seja em nós também santa. Os ramos que cortaram das árvores os que hoje saíram a receber a Cristo: caedebant ramos de arboribus [cortavam ramos de árvores], posto que São Mateus não declare quais fossem, São João diz que eram de palma, e São Lucas de oliveira. E com os dois afetos que estes ramos significavam, devemos nós seguir e acompanhar o Senhor em todos seus passos, oferecendo estes humildes obséquios a seus sacratíssimos pés, que isto quer dizer: et sternebant in via [e os espalhavam pelo caminho]. 

A palma é símbolo da paciência, como a oliveira o é da misericórdia e da compaixão; e tais eram os dois mistérios que encerrava o aparato e a diferença daqueles ramos: padecer e compadecer. Desta maneira receberemos e acompanharemos o nosso bom Rei e Redentor muito melhor que a ingrata e inconstante Jerusalém, se não só hoje, mas todos estes dias padecermos alguma coisa com ele, e nos compadecermos dele. Tudo resumiu São Paulo a uma só palavra, quando disse: si tamen compatimur [se padecemos com Ele]. Uma coisa é compadecer, e outra padecer com: compadecer, é compadecer dele; padecer com, é padecer com ele; e tanto nos merecem a paciência as suas penas, como a compaixão o seu amor. Toda a sua sagrada humanidade do corpo e alma de Cristo nos mereceu sempre muito, mas nunca tanto como nestes dias: padecendo na imitação de seus tormentos, acompanharemos seu santíssimo corpo, e compadecendo-nos na meditação de suas dores, acompanharemos a sua santíssima alma.

Digo pois, quanto ao corpo, que havemos nesta semana de procurar padecer alguma coisa em todos os cinco sentidos, assim como Cristo padeceu em todos. Adão e Eva, em um só pecado, pecaram com todos os cinco sentidos. Pecaram com o ouvir, ouvindo a serpente; pecaram com o ver, olhando para a fruta; pecaram com o tato, retirando-a; pecaram com o olfato, cheirando-a; pecaram com o gosto, comendo-a. Com todos os cinco sentidos pecaram nossos primeiros pais, e nós, tão herdeiros de suas misérias como de suas culpas, em todos pecamos infinitas vezes. E como Cristo vinha pagar pelo pecado de Adão e pelos nossos, quis padecer também em todos os cinco sentidos.

Padeceu no sentido de ver, vendo fugir todos os seus discípulos: vendo que um o entregou tão aleivosamente; vendo que outro o negou três vezes; vendo-se atar e levar preso, e a tantos tribunais; vendo-se tapar os olhos; vendo-se despir no Pretório, e estar despido no Calvário tantas horas à vista de todo o mundo, e no meio de dois ladrões; sobretudo, vendo a desconsolada Mãe ao pé da cruz, em cujo coração e em cujos olhos estava outras três vezes crucificado. Finalmente, vendo os meus pecados e os vossos, com que tão ingratos havíamos de dar a tanto amor, uma vez que todos naquela hora lhe eram presentes.

Padeceu no sentido do ouvir, ouvindo o 'Deus te salve' murmurado da boca de Judas; ouvindo os crimes e testemunhos falsos com que foi acusado; ouvindo as vozes e brados com que os mesmos que hoje o aclamaram rei lhe pediam a morte; ouvindo a sentença com que o iníquo juiz o entregou à vontade de seus inimigos; ouvindo o pregão do malfeitor e alvoroçador do povo; ouvindo as injúrias e blasfêmias dos príncipes dos sacerdotes na cruz, e as dos mesmos ladrões que com ele estavam crucificados, e não ouvindo em todo este tempo uma só palavra de consolação aquele mesmo Senhor que, com palavras e obras, tinha consolado a tantos.

Padeceu no sentido do olfato ou de cheirar, porque morreu entre os ascos e horrores do Monte Calvário, chamado assim das caveiras e ossos dos malfeitores que ali se justiçavam, os quais, ou porque os enterravam mal os algozes, ou porque depois os desenterravam os cães, estavam espalhados por todo o monte, e de mistura com a corrupção do sangue faziam aquele infame lugar horrendo, hediondo, asqueroso e insuportável ao cheiro. E como divino pagador de nossos pecados, não só escolheu o gênero da morte, senão também a circunstância do lugar; para satisfazer nele pelos excessos do olfato, quis que fosse tão infeccionado e malcheiroso.

Padeceu no sentido do gosto, não só pelo fel e vinagre que lhe deram a beber, senão muito mais por aquela ardentíssima sede, maior incomparavelmente que todos os outros tormentos, porque só ela obrigou ao pacientíssimo Redentor pedir alívio. Mas podendo mais o desejo de padecer por nós, que a força da natureza na humanidade enfraquecida e exausta, provou o azedo do vinagre e o amargoso do fel, para mortificar o gosto, para não moderar o ardor e nem aliviar a sede.

Padeceu, finalmente, no sentido do tato, não ficando em todo o seu sagrado corpo parte alguma que não fosse martirizada com particular tormento. Padeceu nos braços as cordas e cadeias; no rosto, as bofetadas; na cabeça, a coroa de espinhos; nos ombros, o peso da cruz; nas costas, os milhares de açoites; nas mãos e nos pés, os cravos e, em todos os ossos, em todos os nervos, em todas as veias, em todas as artérias a suspensão, a aflição, a violência mais que mortal de estar três horas no ar pendente de um madeiro, até expirar nele.

Pois, se estes são os dias em que o meu Deus padeceu tão cruelmente em todos os cinco sentidos, e tão amorosamente por mim, não será justo que eu também em todos os sentidos padeça alguma coisa por ele? Nenhum coração me parece que haverá tão ingrato e tão insensível, que se não deixe mover desta razão: Hoc enim sentite in vobis, quod et in Christo Jesu, diz São Paulo - o que Cristo Jesus sentiu em si, devemos nós sentir em nós - ele por amor de nós, e nós por amor dele. E se a vossa devoção deseja saber e me pergunta de que modo poremos em prática este recíproco sentimento, mortificando-nos também em todos os nossos sentidos, digo primeiramente que mortifiquemos o ver, andando nestes dias com grande modéstia e recato, e negando aos olhos as vistas de todas as criaturas, e apartando-os principalmente daquelas que mais nos agradam e mais nos apartam de Deus. 

Os olhos têm dois ofícios: ver e chorar; e mais parece que os criou Deus para chorar que para ver, pois os cegos não veem e choram. Já que tantos dias damos aos olhos para ver, já que tão cansados andam os nossos olhos de ver, não lhes daremos alguns dias de férias, para que descansem em chorar? Chorem os nossos olhos os nossos pecados nestes dias, e chorem muito em particular o não haverem antes cegado que ofendido a Deus. Ah! Senhor, quanto melhor fora não ter olhos, que ter-vos ofendido com eles!

O sentido de ouvir mortificá-lo-emos, retirando-nos esta semana de todas as práticas e conversações, não só ilícitas e ociosas, mas ainda das lícitas. Troquemos o ouvir pelo ler, lendo todos estes dias algum livro espiritual em que Deus nos fale e nós o ouçamos. A quem não está muito exercitado no orar, é mais fácil o ler, e muitas vezes mais proveitoso. Na oração falamos nós com Deus; na leitura, fala Deus conosco. E de quantas coisas - que fora melhor não ouvir - ouvimos todo o ano aos homens; estes dias ao menos, melhor bem é que ouçamos a Deus.

No sentido do olfato, pouco têm que mortificar os homens nesta terra, porque não vejo nela este vício. Nas mulheres, se nelas há alguma demasia, lembrem-se de que nesta semana derramou a Madalena os seus cheiros e os seus unguentos aos pés de Cristo. E para os aborrecerem e detestarem para sempre, saibam que a última disposição da morte do mesmo Senhor foram estes cheiros. Porque a Madalena derramou os unguentos, se excitou a cobiça de Judas; porque em Judas se excitou a cobiça, tratou da venda; porque vendeu a seu Mestre, o prenderam e o mataram. Por isso o Senhor disse - e este é o sentido literal: Mittens haec unguentum hoc in corpus meum, ad sepeliendum me fecit, como se dissera: Estes unguentos são para a minha sepultura, porque destes unguentos  me há de ocasionar a morte.

O sentido do gosto, ainda que se tenha mortificado por toda a quaresma com o jejum ordinário, nestes dias é bem que haja para ele alguma particular mortificação. Muitos santos do ermo passavam esta semana inteira sem comer, e pessoas de muitos diferentes estados, não no ermo, senão nas cortes, passam em jejum de quinta-feira até sábado. Nos maiores dias desta semana, é padrão das mesas dos grandes príncipes não se porem nelas mais que ervas; para estes dias se fizeram propriamente os jejuns de pão e água: ao menos estes dias não são para regalo. O cordeiro mandava Deus que se comesse com alfaces agrestes, porque o agreste e desabrido no comer destes dias é a melhor disposição para se alimentar na quinta-feira o Divino Cordeiro sacramentado.

O sentido do tato, como o mais vil e mais delinquente que todos, é razão que seja nestes dias mais mortificado. Quando Urias veio do exército com aviso a el-rei Davi, disse-lhe o rei que fosse descansar à sua casa. E ele, que respondeu? Pois bem, Senhor: 'está o meu general dormindo sobre a terra na campanha, e eu que me haja de deitar em cama? Não farei tal desatino'. E foi-se deitar em uma tábua no corpo da guarda. A cama em que dormiu o último sono da morte o nosso Jesus, bem sabeis qual foi. Pois, será justo que quando ele tem por cama o duro madeiro da cruz, descanse o nosso corpo tão regaladamente como nos outros dias? 

Alguma diferença é bem que haja nestes dias. Ao menos o nosso rei e os seus filhos, de quinta-feira até domingo não se deitam em cama, nem se assentam, senão no chão, assistindo sempre ao Senhor, sem sair nunca da Capela Real, nem de dia, nem de noite. Estas são as noites e os dias para que se fizeram as penitências: para estas noites se fizeram os pés descalços, para estas noites as disciplinas, e para estes dias e para estas noites os cilícios. Que poucos cilícios deve haver no Maranhão? Não vos escuseis com isto.

('Sermão de Dia de Ramos', Pe. Antônio Vieira, pregado na Matriz do Maranhão, no ano de 1656)

sábado, 29 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (X)


Na décima e última parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira conclui o seu sermão, com a seguinte recomendação final: a pregação que dá fruto à Santa Palavra de Deus é aquela que descontenta e traz inquietação aos ouvintes e não aquela que os tornam confortáveis e passivos às palavras do pregador e do sermão.

X

Dir-me-eis o que a mim me dizem e o que já tenho experimentado que, se pregamos assim, zombam de nós os ouvintes e não gostam de ouvir. Ó boa razão para um servo de Jesus Cristo! Zombem e não gostem embora e façamos nós nosso ofício! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa é a que lhes devemos pregar e, por isso mesmo, porque é mais proveitosa e a que mais é mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, são os demônios, que tiram a palavra de Deus dos corações dos homens: venit diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! [vem o demônio e lhes tira a palavra do coração! (Lc 8,12)]. 

Pois por que não comeu o diabo o trigo que caiu entre os espinhos ou o trigo que caiu nas pedras, senão o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho, conculcatum est ab hominibus - pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa é a que o diabo mais teme. De outros conceitos, de outros pensamentos, de outras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas não se teme nem se acautela o diabo, porque sabe que não são essas as pregações que lhe hão de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: secus viam [ao lado do caminho]; daquela doutrina que parece comum: secus viam [ao lado do  caminho]; daquela doutrina que parece trivial: secus viam [ao lado do  caminho]; daquela doutrina que parece trilhada: secus viam [ao lado do caminho]; daquela doutrina que nos põe no caminho e na via da nossa salvação (que é a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa é a de que o demônio se receia e se acautela, essa é a que procura comer e tirar do mundo e, por isso mesmo, essa é a que deviam pregar os pregadores e a que deviam buscar os ouvintes. 

Mas se eles não o fizerem assim e zombarem de nós, zombemos nós tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam [por meio da boa e da má fama (II Cor 6,8)], dizia São Paulo: o pregador há de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apóstolo: há de pregar com fama e com infâmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso é mundo: mas infamado, e pregar o que convém, ainda que seja com descrédito de sua fama, isso é ser pregador de Jesus Cristo.

Pois gostem ou não gostem os ouvintes! Ó que advertência tão digna! Que médico há que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar saúde? Sarem e não gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos médicos das almas. Quais vos parece que são as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parábola, diz que as pedras são aqueles que ouvem a pregação com gosto: hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum [são aqueles que com alegria recebem a palavra]. Pois será bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?! Não gostem e abrandem-se; não gostem e quebrem-se; não gostem e frutifiquem. Este é o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: et fructum afferunt in patientia [e produzem fruto pela paciência (Lc 8,15)] conclui Cristo. 

De maneira que o frutificar não se ajunta com o gostar, senão com o padecer; frutifiquemos nós e tenham eles paciência. A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte, a cada palavra do pregador, treme; quando cada palavra do pregador é um torcicolo para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para casa confuso e atônito, sem conhecer parte de si, então esta é a preparação que convém e então se pode esperar que dê fruto: et fructum afferunt in patientia [e produzem fruto pela paciência (Lc 8,15)].

Enfim, para que os pregadores saibam como hão de pregar e os ouvintes a quem hão de ouvir, acabo com um exemplo do nosso reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; não os nomeio, porque os hei de desigualar. Altercou-se, entre alguns doutores da universidade, qual dos dois fosse maior pregador e como não há juízo sem inclinação, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: 'entre dois sujeitos tão grandes, não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim'.

Com isto concluo. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saíeis do sermão muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que saísseis muito descontentes de vós. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões: não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muito descontentes de si; não que lhes pareçam bem os nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, que se descontentem embora de nós. 

Si hominibus placerem, Christus servus non essem [se quisesse agradar aos homens, não seria servo de Cristo (Gl 1,10)], dizia o maior de todos os pregadores, São Paulo: se eu contentasse os homens, não seria servo de Deus. Ó contentemos a Deus e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja há tribunas mais altas que as que vemos: spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus [fomos entregues em espetáculo a Deus, aos anjos e aos homens (cf I Cor 4,9)]. Acima das tribunas dos reis, estão as tribunas dos anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos há de julgar. Que conta há de dar a Deus um pregador no Dia do Juízo? O ouvinte dirá: não me disseram isso. E o pregador? Vae mihi, quia tacui [ai de mim, estou perdido (Is 6,5)]: ai de mim, que não disse o que convinha! Não seja mais assim, por amor de Deus e de nós.

Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidades. Veja o Céu que se tem ainda na terra quem se põe da sua parte e saiba o inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus; e saiba a mesma terra, que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto: et fecit fructum centuplum [e deu fruto cem por um].

(Sermão da Sexagésima - Parte X, Pe. Antônio Vieira)

quinta-feira, 27 de junho de 2019

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (IX)


Na nona parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira define finalmente a causa primária do pouco fruto de tantas pregações ineficazes: o pregador se fia em pregar as suas próprias palavras em desfavor de pregar a Santa Palavra de Deus.

IX

As palavras que tomei por tema o dizem: semen est Verbum Dei [a semente é a Palavra de Deus]. Sabeis, cristãos, a causa por que se faz hoje tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são as palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus - como dizia - é tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nasce. Mas, se as palavras dos pregadores não são palavras de Deus, porque muito se espantem que não tenham a eficácia e os efeitos da Palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Espírito Santo: 'quem semeia ventos, colhe tempestades' (Os 8,7). Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega é vaidade e se não se prega a Palavra de Deus, como não há a Igreja de Deus de padecer tormenta em vez de colher fruto?

Mas dir-me-eis: 'padre, os pregadores de hoje não pregam o Evangelho, não pregam as Sagradas Escrituras? Pois como não pregam a palavra de Deus?' Esse é o mal. Pregam palavras de Deus, mas não pregam a Palavra de Deus: qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere [quem detém a minha palavra, professe minha palavra na verdade (Jr 23, 26)], disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavras de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavras de Deus, antes podem ser palavras do demônio. 

Tentou o demônio a Cristo que das pedras fizesse pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei [não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus (Mt 4,4)]. Esta sentença foi tirada do capítulo VIII do Deuteronômio (Dt 8,3). Vendo o demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo e, alegando o exposto no Salmo 90, diz-lhe desta maneira: mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: 'deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomarão nos braços, para que te não faças mal'. De sorte que Cristo defendeu-se do diabo com a Escritura e o diabo tentou a Cristo com a Escritura. 

Todas as Escrituras são palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do diabo, como toma o diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido e o diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido, são palavras de Deus, mas tomadas em sentido alheio, são armas do diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, são defesa; tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o diabo derrubar a Cristo e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pináculo do templo. O pináculo do templo é o púlpito porque é o lugar mais alto dele. O diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambição; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja e que, em muitas partes, tem derrubado nela senão a Cristo, pelo menos a sua fé.

Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de tão sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inúteis, que tantas vezes levantais ou esses empreendimentos ao vosso parecer agudos que proferis, achaste-os alguma vez nos Profetas do Velho Testamento ou nos Apóstolos e Evangelistas do Novo Testamento ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? É certo que não, porque desde a primeira palavra do Gênesis até à última do Apocalipse, não há tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras não há o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, é esse o sentido em que Deus os disse? É esse o sentido em que os entendem os Padres da Igreja? É esse o sentido da mesma gramática das palavras? Não, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que entoam e não pelo que significam, e talvez nem pelo que entoam. 

Pois se não é esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que não são palavras de Deus. E se não são palavras de Deus, porque nos queixamos que não façam fruto as pregações? Basta que as palavras de Deus sejam ditas pelo que nós queremos dizer para que não possamos dizer o que elas dizem! E ainda constatar a aprovação do auditório a estas coisas quando se devia dar com a cabeça pelas paredes só de as ouvir! Verdadeiramente não sei do que mais me espanta: se dos nossos conceitos ou se dos vossos aplausos... 'Ó como bem argumentou o pregador!' Assim é; mas o que argumentou? Um falso testemunho do texto, outro falso testemunho do santo, outro do entendimento e do sentido de ambos. Então espera-se que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a alguém parecer demasiada a censura, ouça-me.

Estava Cristo acusado diante de Caifás, e diz o Evangelista São Mateus que, por fim, vieram duas testemunhas falsas: novissime venerunt duo falsi testes [por fim, apresentaram-se duas falsas testemunhas (Mt 26, 60)]. Estas testemunhas disseram que ouviram Cristo dizer que, se os judeus destruíssem o templo, ele o tornaria a reedificar em três dias. Se lermos o Evangelista São João, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em três dias e foi isto mesmo que disseram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista de testemunhas falsas: duo falsi testes [duas testemunhas falsas]? O mesmo São João deu a explicação: loquebatur de templo corporis sui [referia-se ao templo do seu corpo (Jo 2,21)].

Quando Cristo disse, que em três dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo místico de seu corpo, o qual os judeus destruíram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreição; e como Cristo falava do templo místico e as testemunhas se referiram ao templo material de Jerusalém, ainda que as palavras fossem verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas porque Cristo as dissera em um sentido e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, é levantar falso testemunho a Deus, é levantar falso testemunho às Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouço dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas aquilo que são apenas minhas imaginações, as quais não quero excluir deste número [apenas imaginações]! Porque desde logo há que se esperar que as nossas imaginações, as nossas vaidades e as nossas fábulas não tenham a eficácia de palavra de Deus!

Miseráveis de nós e miseráveis os nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de São Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt [pois haverá tempo em que (os homens) não suportarão a sã doutrina (2Tm 4,3)]: 'virá tempo', diz São Paulo, 'em que os homens não suportarão a sã doutrina'. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus [levados pelos pruridos dos sentidos, buscarão mestres para ouvir apenas o que desejam (2Tm 4,3)]. Mas, para seu apetite, terão grande número de pregadores feitos de montão e sem escolha, os quais não farão mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: 'fecharão os ouvidos à verdade e abri-los-ão às fábulas'. 

Fábula tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia; e tudo são muitas pregações deste tempo. São fingimento porque são subtilezas e pensamentos aéreos, sem fundamento de verdade; são comédia, porque os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre aquelas do tempo presente era ter-se acabado as comédias em Portugal; mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio do que nas pregações de um orador cristão e, muitas vezes, mais que cristão, religioso!

Pouco disse São Paulo em lhes chamar comédia porque muitos sermões não são comédia, mas farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio; e quando este [o sermão] se rompe, que é o que se ouve? Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajes e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Céu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. 

E nós, o que é que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajes, uma voz muito afetada e muito polida e logo começar com muito desgarro, para quê? Para motivar desvelos, para creditar empenhos, para requintar finezas, para lisonjear precipícios, para brilhar auroras, para derreter cristais, para desmaiar jasmins, para toucar primaveras e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa, a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar? Na comédia, o rei veste como rei e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio e fala como lacaio; o rústico veste como rústico e fala como rústico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... não o quero dizer, por reverência do lugar. Já que o púlpito é teatro e o sermão não é comédia sequer, como faremos bem a figura? Não servirão as palavras com o vestido e com o ofício? Assim pregava São Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hábitos? Não louvamos e não admiramos o seu pregar? Não nos prezamos de ser seus filhos? Pois por que não os imitamos? Por que não pregamos como eles pregavam? Neste mesmo púlpito pregou São Francisco Xavier, neste mesmo púlpito pregou São Francisco de Borja; e eu, que tenho este mesmo hábito, por que não pregarei a sua doutrina já que não me falta o seu espírito?

(Sermão da Sexagésima - Parte IX, Pe. Antônio Vieira)