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quinta-feira, 30 de outubro de 2025

A ETERNIDADE DE DEUS


'O que é o tempo de Deus?' Aqueles que isto perguntam ainda não te compreendem, ó sabedoria de Deus (Ef 3,10), ó luz das mentes - ainda não compreendem como são feitas as coisas que por meio de ti e em ti são feitas, e esforçam-se por saborear as realidades eternas, mas o seu coração esvoaça ainda nos movimentos passados e futuros das coisas, continuando vazio (Sl 5,10). 

Quem poderá deter o tempo e fixá-lo, a fim de que ele pare e por um momento capte o esplendor da eternidade sempre fixa, e a compare com os tempos nunca fixos, e veja que a eternidade é incomparável, e veja que um longo tempo não é longo senão a partir de muitos momentos que passam e não podem alongar-se simultaneamente; veja, pelo contrário, que, no que é eterno, nada é passado, mas tudo é presente, enquanto nenhum tempo é todo ele presente: e veja que todo o passado é obrigado a recuar a partir do futuro, e que todo o futuro se segue a partir de um passado, e que todo o passado e futuro são criados e derivam daquilo que é sempre presente? Quem poderá deter o coração do homem, a ponto de ele parar e ver como a eternidade, que é fixa, nem futura nem passada, determina os tempos futuros e passados? Será que, porventura, a minha mão consegue (Gn 31,29) isto, ou que a minha boca, que se manifesta falando, realiza tão grande intento?

E tu não precedes os tempos com o tempo: se assim fosse, não precederias todos os tempos. Mas precedes todos os passados com a grandeza da tua eternidade sempre presente, e superas todos os futuros porque eles são futuros, e quando eles chegarem, serão passado; tu, porém, és o mesmo e os teus anos não têm fim (Sl 101,28; Hb 1,12). Os teus anos não vão nem vêm: os nossos vão e vêm, para que todos venham. Os teus anos existem todos ao mesmo tempo, porque não passam, e os que vão não são excluídos pelos que vêm, porque não passam: enquanto os nossos só existirão todos, quando todos não existirem. 

Os teus anos são um só dia (Sl 89,4; 2Pe 3,8) e o teu dia não é todos os dias, mas um ‘hoje’, porque o teu dia de hoje não antecede o de amanhã; pois não sucede ao de ontem. O teu hoje é a eternidade: por isso, geraste co-eterno contigo aquele a quem disseste: 'Eu hoje te gerei' (Sl 2,7; At 13,33; Hb 1,5; 5,5). Tu fizeste todos os tempos e tu és antes de todos os tempos, e não houve tempo algum em que não havia tempo.

(Do Livro das Confissões, de Santo Agostinho)

terça-feira, 28 de outubro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLIII/Final)

 

149. A vaidade consiste em um apetite desmedido por elogios e no desejo de que nossos méritos brilhem com glória, e essa glória pode ser considerada vaidosa e perversa de três maneiras diferentes.

Primeiro, quando buscamos ser elogiados por uma virtude ou qualquer outro dom do corpo ou da alma que não possuímos, ou então por alguma posse frágil e transitória que não é digna de elogios, como saúde, beleza e outros dons do corpo, riquezas, pompa e outros bens que são chamados de dons da fortuna. Segundo, quando, ao buscar elogios, valorizamos a estima e a aprovação de alguém cujo julgamento não é confiável. Em terceiro lugar, quando não usamos esse elogio para a honra de Deus ou para o bem do próximo, e isso é sempre pecar contra os ditames da Sagrada Escritura: 'Não nos tornemos desejosos de vaidade' [Fl 2,3] e pode ser um pecado mortal quando buscamos ser elogiados por algum mal que fizemos ou temos a intenção de fazer, ou por algum outro mal que nunca fizemos e não pensamos em fazer, ou ainda aceitar elogios por um bem que não fizemos e que queremos que os outros acreditem que fizemos; também pode ser um pecado mortal se fizermos o bem apenas por respeito humano, com a intenção de sermos vistos e elogiados.

Em resumo, este é sempre um pecado muito perigoso, não tanto por sua gravidade, mas por suas graves consequências e porque impede a alma de receber a ajuda da graça e a dispõe a vários pecados mortais: 'Diz-se que a vaidade é um pecado perigoso, não tanto por causa de sua gravidade, mas porque é uma disposição para pecados graves, na medida em que gradualmente dispõe o homem à perda de todo o bem interior' [D.Th. 2a 2æ,qu. cxxxii, art. 3].

Aquele que sofre de vaidade corre o risco de perder também a sua fé, de acordo com as palavras de Cristo: 'Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a glória que é só de Deus?' [Jo 5,44]. Santo Agostinho, refletindo sobre isto e sobre o quão pouco se conhece este grande mal, afirma que ninguém é mais sábio do que aquele que sabe que este amor pelo louvor é um vício: 'Vê melhor aquele que vê que o amor pelo louvor é um vício' [Lib. 5, De Civ. Dei., cap. xiii ]; ver também São Tomás [2a 2æ, qu. xxi, art. 4; et qu cccv, art. 1; et qu. cxxxi, per tot.; et qu. clxxviii, art. 2].

150. A vaidade é um vício pelo qual o homem, desejando ser supremamente honrado acima de todos os outros, começa a elogiar e exaltar a si mesmo, exagerando e ampliando as coisas de modo a fazer com que seu próprio mérito pareça maior do que é. Também é chamada de ostentação, autoelogio ou atrevimento; e Santo Agostinho a chama de 'a pior de todas as pragas' [Lib. 1 De Ord. cap. xi] e Santo Ambrósio a chama de rede lançada pelo diabo para capturar os mais fortes e espirituais: 'O diabo lança armadilhas que prendem os mais fortes' [Lib. in Luc.]. Este é um vício que não tem medida porque, ao nos vangloriarmos do que não temos, mentimos à nossa própria consciência e a Deus; e como Deus disse de Moab pelo profeta: 'Conheço-lhe a presunção – oráculo do Senhor – a jactância e a vaidade' [Jr 48,30].

Pode ser um pecado mortal quando nos gabamos de algum pecado que cometemos; quando nos elogiamos, desprezando os outros; ou ainda quando nos elogiamos e exaltamos por meio de um excesso de orgulho que nos inunda o coração. O Doutor Angélico observa que este é um caso comum e não raro, e que o hábito é facilmente formado [2a 2æ, qu. lxii, art. 1. Ver também 2a 2æ, qu. cx, art. 2; qu. cxii, art. 1; et qu. cxxxii, art. 5 ad 1; et qu. clxii, art. 4 ad 2].

151. A hipocrisia é um vício pelo qual fingimos demonstrar externamente uma virtude e uma santidade que não possuímos; e é realmente hipócrita aquele que, estando cheio de maldade por dentro, finge ser bom na sua aparência exterior.

Não há vício contra o qual Jesus Cristo tenha protestado tanto em seu Evangelho quanto contra este [Mt 6, Mt 7, Mt 15, Mt 21], condenando-o com oito gritos de 'Ai de vós', que são oito maldições. E São Gregório observa que os hipócritas, cegos pelo orgulho e endurecidos em seus pecados, geralmente morrem impenitentes, sem nunca terem sido iluminados, por uma razão que talvez tenha sido tirada de São Pedro Crisólogo, porque, embora possamos ver que os remédios para a correção de outros vícios fazem bem, a doença da hipocrisia é tão pestilenta que afeta os próprios remédios, de modo que eles só servem para fomentar e aumentar o mal. 'Irmãos' - diz o santo - 'essa pestilência deve ser evitada, pois transforma remédios em doenças, medicamentos em enfermidades, santidade em vício, piedade em pecado'.

A hipocrisia é sempre um pecado mortal quando fingimos ser espirituais e santos e tentamos parecer assim, quando não o somos no coração, preocupando-nos mais com a opinião dos homens do que com a opinião de Deus; e é ainda pior quando afetamos santidade para promover nosso próprio avanço e adquirir crédito para alcançar e praticar o mal; ou então para obter alguma honra ou outro bem temporal.

Dessa forma, também pecamos gravemente por hipocrisia quando nos mostramos muito escrupulosos com obras ou com certas observâncias minuciosas, sem temer, ao mesmo tempo, transgredir os deveres essenciais da religião e do nosso próprio estado de vida, 'tendo abandonado as coisas mais importantes da lei', como aqueles escribas e fariseus que Cristo repreendeu, dizendo que 'filtram um mosquito e engolem um camelo' [Mt 23, 24]. Também quando, em todas as funções relacionadas com o serviço de Deus, fingimos ter uma intenção pura quando não a temos: 'E procuramos agradar não a Deus, mas aos homens; não a conversão, mas o favor do povo' [D. Th. 2a 2æ, qu. lxi, art. 2].

Os Padres da Igreja geralmente chamam a hipocrisia de perversidade, iniquidade, impiedade; e é fácil não apenas cair nesse pecado, mas também acostumar-se tanto a ele que nos leva ao ateísmo. Muitas vezes começamos servindo a Deus com um certo grau de fervor sagrado, mas quando este diminui, deixamos de servir a Deus e apenas fingimos servi-lo para manter as aparências: 'Ai de vós, hipócritas!' [São Tomás, 2a 2æ, qu. xi, per tot.].

152. A desobediência é um pecado pelo qual violamos a ordem de nossos superiores, tratando-os com desprezo, e pode ser um pecado mortal mesmo em pequenas coisas; porque, como diz São Bernardo, não devemos considerar a natureza da coisa ordenada nem a simples transgressão do preceito, mas o orgulho da vontade que não se submete quando deveria: 'Não é a simples transgressão do desejo, mas a contenda orgulhosa da vontade que cria a desobediência criminosa' [Lib. de Præcept et Dispens., cap xi] e a gravidade do pecado pode ser julgada sob três aspectos diferentes.

Primeiro, a posição do superior, porque quanto mais elevada for a posição de quem ordena, mais grave é a desobediência. É um pecado maior desobedecer a Deus do que desobedecer ao homem, um pecado maior desobedecer ao papa do que a um bispo, ou a um pai e a uma mãe do que a outros parentes; e é também um pecado maior desobedecer com desprezo pela pessoa que ordena do que apenas com desprezo pelo mandamento.

Em segundo lugar, em relação à natureza das coisas ordenadas, porque quando estas são de maior importância, especialmente nas leis de Deus, a desobediência é maior; portanto, é um pecado mais grave desobedecer aos preceitos que impõem o amor a Deus do que aqueles que nos ordenam amar o próximo.

Em terceiro lugar, no que diz respeito à forma da ordem, pela qual o superior expressa sua intenção de que deseja ser obedecido em tal ou tal assunto, mas é principalmente o orgulho que agrava a desobediência, pois a vontade se recusa a se submeter como deveria à lei divina [São Tomás, 2a 2æ, qu. lxix, art. 1; et qu. cv per tot.].

153. A discórdia é uma discrepância da vontade que a impede de se conformar à vontade de Deus em assuntos em que deveria se conformar para a glória de Deus e o bem do próximo; e é um pecado grave, porque São Paulo os inclui entre os pecados que excluem aqueles que os cometem do reino dos Céus [Gl 5,20]. E Deus declara seu ódio e repulsa por todos aqueles que disseminam discórdia entre seus pares [Pv 6,9]. As dissensões geralmente surgem do orgulho, que nos leva a nos superestimar e a colocar nosso próprio bem-estar e opiniões contra os dos outros, e disso surgem as brigas, litígios, obstinação, calúnias, facções, ódio, contendas e muitos outros males sem número e sem fim [São Tomás 22, qu. xxxvii, art. 1 et 2; et qu. xxxviii, art. 2; et qu. cxxxii, art. 5].

Recolha-se, pois, interiormente, examine-se e, tendo constatado que, sob um ou outro destes títulos, o orgulho realmente o domina, julgue quão necessário é lutar contra ele com humildade, porque, se o orgulho for vencido, uma série de outros pecados também serão vencidos. E, para se dar coragem, lembre-se disto: perante o tribunal de Deus, os orgulhosos serão condenados, e somente os humildes podem esperar encontrar misericórdia. Dizer que somos humildes é o mesmo que dizer que estamos entre os eleitos e seremos salvos; e dizer que somos orgulhosos é o mesmo que dizer que somos réprobos e perdidos, como afirma São Gregório: 'O orgulho é um sinal certo dos réprobos, assim como a humildade é o sinal dos eleitos' [Hom. 7 in Evang.; et lib. 3, Mor. cap xviii].

E, assim, concluímos esse trabalho. Louvado seja Jesus Cristo!

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

terça-feira, 21 de outubro de 2025

A BÍBLIA EXPLICADA (XXX) - PARA BEM INTERPRETAR AS SAGRADAS ESCRITURAS

A ignorância da natureza das coisas dificulta a interpretação das expressões figuradas, quando estas se referem aos animais, pedras, plantas ou outros seres citados frequentemente nas Escrituras e servindo como objeto de comparações. Assim, é fato notório que a serpente, para preservar a cabeça, expõe seu corpo todo aos que a espancam. O quanto esse gesto nos esclarece sobre o sentido das palavras do Senhor ao nos mandar ser prudentes como a serpente! (Mt 10,16). Isto é, devemos saber apresentar nosso corpo aos que nos perseguem, de preferência a expor nossa cabeça que é Cristo. Assim, não deixar morrer em nós a fé cristã, renegando a Deus, ao poupar o nosso corpo. 

Sabe-se ainda, a propósito da serpente que, por instinto, penetra em passagens estreitas da caverna para aí despojar-se da antiga pele e receber forças novas. Quanto essa transformação nos incita a imitar sua astúcia, a nos despojar do homem velho e nos revestir do novo, conforme a palavra do Apóstolo! (Ef 4,22.24; Cl 3,9.10). Despojar-nos assim através da via estreita, conforme a palavra do Senhor: 'Entrai pela porta estreita' (Mt 7,13). Do mesmo modo, como o conhecimento das propriedades da serpente nos esclarece muitas comparações que a Escritura costuma apresentar sobre esse animal, assim também a ignorância das características de outros animais, sobre os quais ela igualmente faz menção, muito embaraça a quem procura entender.

Semelhante embaraço é produzido pela ignorância das pedras, das plantas e de tudo o que se mantém pelas raízes. Por essa razão, até o conhecimento das pedrinhas (carbunculi) que brilham nas trevas esclarece, por sua vez, várias obscuridades dos Livros santos, onde quer que estejam empregadas como figuras. O desconhecimento do berilo ou do diamante igualmente fecha, por vezes, as portas à compreensão. Ser-nos-á fácil compreender por que o ramo de oliveira, trazido pela pomba em seu regresso à arca (Gn 8,11) simboliza a paz perpétua, ao estudarmos que o contato untuoso do óleo não pode facilmente ser alterado por líquido estranho e que a própria árvore da oliveira está sempre coberta de folhas. Muitos, por não conhecerem o hissopo, nem a virtude que ele possui de purificar os pulmões pelo fato de se enraizar nas rochas e ser erva miúda e rasteira, são incapazes de compreender por que está dito: 'Tu me borrifarás com o hissopo, e serei purificado' (Sl 51,9).

A ignorância dos números também impede compreender quantidade de expressões empregadas nas Escrituras sob forma figurada e simbólica. Certamente, um espírito bem nascido sente-se levado a se perguntar o significado do fato de Moisés, Elias e o Senhor terem jejuado por quarenta dias (Ex 24,18; 1Rs 19,8; Mt 4,2). Ora, esse acontecimento propõe um problema simbólico que só é resolvido por exame atento desse número. Compreende o número 40 quatro vezes 10 e, por aí, como que envolve o conhecimento de todas as coisas incluídas no tempo. Pois é num ritmo quaternário que prossegue o curso do dia e do ano. Divide-se o dia em espaços horários da manhã, do meio-dia, da tarde e da noite. O ano estende-se nos meses da primavera, do verão, do outono e do inverno. Ora, enquanto vivemos no tempo, devemos nos privar por abstinência e jejum dos prazeres que o tempo nos proporciona. 

É certo, aliás, que o próprio curso do tempo ensina-nos a menosprezar o tempo e a desejar a eternidade. Por outro lado, o número 10 simboliza o conhecimento do Criador e da criatura, pois 3 designa a Trindade do Criador e 7, a criatura, considerada em sua alma e em seu corpo. Com efeito, na alma, há três movimentos que levam a amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o espírito (Mt 22,37). E no corpo, estão bem manifestos os quatro elementos que os constituem. Consequentemente, este número denário move-nos à cadência do tempo. Isto é, voltando quatro vezes, adverte-nos para vivermos na castidade e na continência, desapegados dos deleites temporais, e prescreve-nos jejuar quarenta dias. Eis o que nos explica a Lei personificada em Moisés; eis o que mostra a profecia, representada por Elias; eis o que nos ensina o próprio Senhor. Apoiando-nos no testemunho da Lei e dos Profetas, ele apareceu em plena luz, entre essas duas personagens, sob os olhos dos três discípulos tomados de espanto (Mt 17,2.3).

Em seguida, pode-se perguntar, do mesmo modo, como do número quarenta vem o número cinquenta, eminentemente sagrado em nossa religião devido a Pentecostes (At 2). E ainda, como esse número cinquenta multiplicado por três por causa das três épocas: aquela antes da lei, a época sob a lei e a sob a graça; e somando de modo ainda mais eminente a mesma Trindade, refere-se ao mistério da Igreja já purificada, representada nos cento e cinquenta e três peixes que, depois da Ressurreição do Senhor, são recolhidos nas redes arremessadas à direita (Jo 21,11). É assim que, por vários outros agrupamentos numéricos, encontram-se escondidas nos Livros santos certas figuras que, devido à ignorância de muitos, ficam impenetráveis aos leitores. 

A ignorância de certas noções musicais é, em numerosas passagens das Escrituras, barreira e véu. De fato, estudando a diferença entre o saltério e a cítara, um autor explicou engenhosamente certos símbolos. E entre os doutos, não é disputa fora de propósito indagar se há alguma lei musical que obrigue o saltério constar de dez cordas, esse tão grande número de cordas! Ora, na ausência dessa lei, é preciso reconhecer nesse número dez significado mais misterioso, relacionado, seja com os dez preceitos que se referem ao Criador e à criatura, seja com as considerações que expusemos acima, sobre o número denário. Quanto ao número relatado pelo Evangelho que mede a duração do templo, isto é, o número quarenta e seis (Jo 2,20), há nele não sei que tonalidade musical. Aplicado, porém, em referência à formação do corpo do Senhor, a propósito do qual foi feita a menção ao templo reconstruído, esse número obrigou certos hereges a reconhecerem que o Filho de Deus revestiu não um corpo fictício, mas um corpo real e humano. Deparamos, assim, a música e os números colocados em lugar de honra em muitas passagens da santa Escritura.

(Excertos da obra 'A Doutrina Cristã', de Santo Agostinho)

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

'QUE EU NÃO VÁ DIANTE DE VÓS COM AS MÃOS VAZIAS...'


Custe o que custar, Senhor, não queiras que eu vá diante de Vós com as mãos vazias, pois a recompensa deve ser dada segundo as minhas obras. Eis a minha vida, eis a minha honra e a minha vontade; tudo vos dou, sou vosso, dispõe de mim segundo a vossa vontade. Vede bem, meu Senhor, quão pouco posso fazer, ainda que tendo chegado diante de Vós, abrigado nesta torre de vigia onde se veem as verdades: sem desviares de mim, poderei fazer todas as coisas mas, se afastares, por pouco que seja, voltarei para onde estava, que era o inferno.

Oh como é uma alma quando se encontra aqui, tendo que voltar a lidar com todos a olhar e ver esta falsa vida mal organizada, a perder tempo cumprindo seus deveres para com o corpo, dormindo e comendo! Tudo a cansa, ela não sabe como escapar e se vê acorrentada e aprisionada. Então ela sente mais verdadeiramente o cativeiro que trazemos com nossos corpos e a miséria desta vida. Ela percebe então porque São Paulo implorou a Deus que o libertasse de tudo isso. Ela clama como ele. Ela pede a Deus liberdade, como eu disse antes; mas aqui é frequentemente com tão grande ímpeto que parece que a alma quer deixar o corpo em busca dessa liberdade, já que ela não é dada. Ela vagueia como se vendida em uma terra estrangeira, e o que mais a cansa é não encontrar muitos que se queixem como ela e peçam por isso, pois o mais comum é simplesmente desejar viver.

Ah se não estivéssemos apegados a nada e não tivéssemos alegria em nada da terra, como a dor de viver para sempre sem Ele temperaria o medo da morte com o desejo de desfrutar a vida verdadeira!

(Excertos da obra 'Livro da Vida', de Santa Teresa de Ávila)

SANTA TERESA DE ÁVILA, ROGAI POR NÓS!

terça-feira, 14 de outubro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLII)

 

145. O santo papa São Gregório percebeu o orgulho em todos os tipos de pessoas e descreveu suas características. Alguns, diz ele, orgulham-se de seus bens, outros de sua eloquência, alguns orgulham-se de coisas mundanas e outros de coisas da Igreja e dos dons de Deus de tal forma que, cegos pela vaidade, somos incapazes de discernir isso; quer nos exaltemos acima dos outros por causa da glória mundana ou dos dons espirituais, o orgulho nunca saiu do nosso coração porque está domiciliado ali e, para se disfarçar, assume uma aparência falsa.

É bom saber também que o orgulho não tenta superiores e inferiores da mesma maneira. Ele tenta os grandes, fazendo-os entender que alcançaram sua posição por seu próprio mérito e que nenhum de seus inferiores poderia ser comparado a eles; ele tenta seus subordinados, desviando sua atenção de suas próprias falhas e fazendo-os observar e julgar as ações de seus superiores; eles falam, no entanto, de seus superiores com uma certa liberdade, e como esse orgulho é chamado de independência legítima neles, assim também no superior é chamado de zelo e decoro.

Às vezes, nosso orgulho nos obriga a falar alto, outras vezes a preservar um silêncio amargo. O orgulho é dissoluto em suas alegrias, sombrio e delirante em sua melancolia; parece honroso na aparência, mas não tem honra; é cheio de valor ao ofender, mas covarde ao ser ofendido; é lento para obedecer, importuno em suas exigências para determinar seu dever, mas negligente em cumpri-lo; embora seja rápido para se intrometer e interferir em tudo o que não lhe diz respeito, não há possibilidade de incliná-lo em qualquer direção, a menos que ele próprio se incline para isso por seu próprio gosto. Por outro lado, é astuto, e finge ser indiferente em relação a qualquer cargo ou dignidade que cobiça, para que possa ser forçado a aceitá-los, amando ter aquelas coisas que mais deseja como se impostas violentamente sobre si, por medo de ser considerado com desprezo se seu desejo por elas fosse revelado. Tudo isso é ensinamento de São Gregório.

146. Depois de considerar o orgulho em si mesmo, resta-nos observar seus efeitos, e especialmente oito dos vícios mais comuns e familiares que ele produz, que são a presunção, a ambição, a inveja, a vaidade, a ostentação, a hipocrisia, a desobediência e a discórdia. Vamos examiná-los com São Tomás.

A presunção é um vício pelo qual nos consideramos capazes de realizar coisas além de nossas forças, esquecendo a necessidade da ajuda divina. O pecador é culpado de presunção quando acredita que pode se converter a Deus quando quiser e escolher, como se a conversão fosse obra apenas de seu livre arbítrio; vivendo mal, ainda confia em ter uma boa morte; quando peca e continua pecando, confiando em obter o perdão final; quando acredita que pode, por si mesmo e sem a ajuda da graça, resistir à tentação, evitar o pecado e observar os mandamentos de Deus, ou então que pode realizar algum ato sobrenatural de fé, esperança, caridade ou contrição, ou realizar algum ato meritório para o seu bem-estar eterno e salvar-se perseverando no bem.

Tudo isso está além de nossas próprias forças, e pensar que podemos fazer essas coisas sem a ajuda especial de Deus, e sem estar dispostos a pedir essa ajuda a Deus, é um pecado de presunção - um pecado grave de orgulho pelo qual acreditamos que possuímos uma virtude quando não a temos: 'Ó presunção perversa' - diz a Sagrada Escritura - 'de onde vieste?' [Eclo 37,3]. E São Gregório, explicando qual era o pecado que Jó chamava de 'grande iniquidade' [Jó 31,28], afirmou que era a presunção, que é um insulto ao autor de toda a graça, 'pela qual o homem atribui a si mesmo todo o mérito de uma boa obra' [Lib. xxii, Mor., cap. x].

147. A ambição é um vício que nos leva a buscar nossa própria honra com avidez desmedida [São Tomás, 2a 2æ, qu. cxxxi, art. 2]. Ora, como essa honra é um sinal de respeito e estima, concedido à virtude meritória e àquele que é de grau superior, e como é certo que não temos mérito algum por nós mesmos, porque tudo o que recebemos vem de Deus, não é a nós mesmos, mas somente a Deus que tal honra é inteiramente devida.

Além disso, como essa honra foi ordenada por Deus como um meio para nos tornar capazes de ajudar o próximo, é certo que toda essa honra deve ser usada por nós para cumprir esse fim. Portanto, duas coisas são necessárias para nos permitir fugir da ambição. A primeira é que não devemos nos apropriar do mérito da honra, e a segunda é que devemos confessar que essa mesma honra é devida inteiramente a Deus e só nos é querida na medida em que pode servir ao nosso próximo. Se, portanto, nos faltar uma dessas duas coisas, cometemos o pecado da ambição. É ambicioso, portanto, aquele que busca ter algum cargo ou posição, seja no mundo ou na Igreja, quando não tem a virtude e o conhecimento necessários para mantê-lo, e que trama e conspira para ser colocado à frente de outros que são mais dignos do que ele.

É ambicioso aquele que deseja ser estimado, honrado e reverenciado mais do que sua posição merece, e como se fosse de posição superior à que realmente ocupa, para ser honrado como um pregador eloquente ou um escritor inteligente, ou em qualquer profissão à qual pertença, embora na realidade só possa ser classificado entre os indiferentes e medíocres.

É ambicioso aquele que, sem um único pensamento pela glória de Deus ou por servir ao próximo, deseja ou busca algum cargo mundano ou eclesiástico, simplesmente com vistas ao seu próprio bem-estar temporal e ao avanço de sua família, ou deseja ganhar a honra de algum cargo elevado ou bispado, 'pelo amor ao poder' - como diz Santo Agostinho - 'e pelo orgulho da posição' [Lib. xix, De Civ. Dei., cap. xiv].

Jesus Cristo demonstra um ódio especial por esse vício em vários trechos do seu evangelho [Mt 18, 20. 23; Lc 9,12] e os Padres argumentam, a partir disso, que o homem ambicioso está em estado de pecado mortal; e é fácil para as pessoas mais espirituais cometerem esse pecado, como diz Santo Ambrósio: 'A ambição muitas vezes torna criminosos aqueles que nenhum vício poderia deleitar, que nenhuma luxúria poderia mover, que nenhuma avareza poderia enganar' [Lib. 4 in Luc.]. O pior da ambição é que poucas pessoas têm escrúpulos a respeito dela, e a razão é que, por esse vício, a consciência se deprava, porque se une a essa paixão e raramente recupera a sua integridade [São Tomás, 2a 2æ, qu. cxxxi, art. 1 et 2; qu. clxxxv, art. 2].

148. A inveja é uma tristeza que surge da contemplação do bem-estar do nosso próximo, quando imaginamos que o bem que lhe acontece deve ser em nosso detrimento, prejudicial à nossa própria glória e interesse; mas dos seus bens, só invejamos aqueles que nos trazem estima aos olhos do mundo -riquezas, dignidade, a amizade e os favores dos grandes, ciência, elogios, fama e tudo o que nos parece contribuir para o nosso crédito e nos trazer honra.

E é assim que a inveja nasce dentro de nós, quando vemos alguém mais rico, mais culto do que nós, outro mais sábio e mais virtuoso do que nós, outro que tem mais talento e habilidade, e a quem, portanto, gostaríamos de ver privado desses dons, para que também fosse privado dos elogios, da honra e de quaisquer outras vantagens que imaginamos ser mais devidas a nós do que a ele. Ora, o pecado consiste nisto: que, quando deveríamos, por caridade, regozijar-nos com a prosperidade do nosso próximo, ficamos apenas tristes com ela, desejando, em nosso orgulho, que ela fosse nossa, para que pudéssemos ser superiores ao nosso próximo em mérito; e este pecado é o pecado especial do diabo, como diz o Sábio: 'a inveja do diabo' [Sb 2,24]. O Espírito Santo nos ordena com toda justiça, por meio de São Paulo, que nos guardemos contra ele: 'Não nos invejemos uns aos outros' [Gl 5,26], pois é fácil pecar mortalmente de uma forma ou de outra. Mas, no entanto, quão comum é esse vício nas famílias, nas comunidades, em todos os estados de vida, entre altos e baixos, ricos e pobres, entre os seculares e até mesmo entre os próprios religiosos!

Todo esse mal provém de uma falsa consciência, que nos leva a acreditar que a inveja não é um grande pecado e, portanto, embora seja um mal grave, não é temida, nem evitada, nem nos esforçamos para nos corrigir dela. Esta reflexão é de São Cipriano: 'A inveja parece uma ofensa pequena, de modo que, enquanto nos parece leve, não é temida; enquanto não é temida, é desprezada; enquanto é desprezada, não é facilmente evitada e, assim, torna-se uma fonte secreta de ruína' [São Tomás, 2a 2æ, qu. xxxiv, art. 6; et qu. xvi, art. 1 et 2 etc.; et qu. clviii, art. 11 et 14].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

O MUNDO, INSENSATO MUNDO...

Assim que a tua devoção se for tornando conhecida no mundo, maledicências e adulações te causarão sérias dificuldades de praticá-la. Os libertinos tomarão a tua mudança por um artifício de hipocrisia e dirão que alguma desilusão sofrida no mundo te levou por oposição a recorrer a Deus. Os teus amigos, por sua vez, se apressarão a te dar avisos que supõem ser caridosos e prudentes sobre a melancolia da devoção, sobre a perda do teu bom nome no mundo, sobre o estado de tua saúde, sobre a necessidade de viver no mundo conformando-se aos outros e, sobretudo, sobre os meios que temos para salvar-nos sem tantos mistérios.

Filoteia, tudo isso são loucas e vãs palavras do mundo e, na verdade, essas pessoas não têm um cuidado verdadeiro de teus negócios e de tua saúde: Se vós fôsseis do mundo, diz Nosso Senhor, amaria o mundo o que era seu; mas, como não sois do mundo, por isso ele vos aborrece.

Veem-se homens e mulheres passarem noites inteiras no jogo; e haverá uma ocupação mais triste e insípida do que esta? Entretanto, seus amigos se calam; mas, se destinamos uma hora à meditação ou se nos levantamos mais cedo, para nos prepararmos para a santa comunhão, mandam logo chamar o médico, para que nos cure desta melancolia e tristeza. Podem-se passar trinta noites a dançar, que ninguém se queixa; mas por levantar-se na noite de Natal para a Missa do Galo, começa-se logo a tossir e a queixar de dor de cabeça no dia seguinte. Quem não vê que o mundo é um juiz iníquo, favorável aos seus filhos, mas intransigente e severo para os filhos de Deus?

Só nos pervertendo com o mundo, poderíamos viver em paz com ele, e impossível é contentar os seus caprichos. Veio João Batista, diz o divino Salvador, o qual não comia pão nem bebia vinho, e dizeis: ele está possesso do demônio. Veio o Filho do Homem, come e bebe, e dizeis que é um samaritano. É verdade, Filoteia, se condescenderes com o mundo e jogares e dançares, ele se escandalizará de ti; e, se não o fizeres, serás acusada de hipocrisia e melancolia. Se te vestires bem, ele te levará isso a mal, e, se te negligenciares, ele chamará isso baixeza de coração. A tua alegria terá ele por dissolução e a tua mortificação por ânimo carrancudo; e, olhando-te sempre com maus olhos, jamais lhe poderás agradar. Às nossas imperfeições ele considera pecados, os nosso pecados veniais ele julga mortais, e malícias, as nossas enfermidades; de sorte que, assim como a caridade, na expressão de São Paulo, é benigna, o mundo é maligno.

A caridade nunca pensa mal de ninguém e o mundo o pensa sempre de toda sorte de pessoas; e, não podendo acusar as nossas ações, condena ao menos nossas intenções. Enfim, tenham os carneiros chifres ou não, sejam pretos ou brancos, o lobo sempre os há de tragar, se puder. Procedamos como quisermos, o mundo sempre nos fará guerra. Se nos demorarmos um pouco mais no confessionário, perguntará o que temos tanto que dizer; e, se saímos depressa, comentará que não contamos tudo. Espreitará todas as nossas ações e, por uma palavra um pouco menos branda, dirá que somos insuportáveis. Chamará avareza o cuidado por nossos negócios, e idiotismo a nossa mansidão. Mas, quanto aos filhos do século, sua cólera é generosidade; sua avareza, sábia economia; e suas maneiras livres, honesto passatempo. É bem verdade que as aranhas sempre estragam o trabalho das abelhas!

Abandonemos este mundo cego, Filoteia; grite ele quanto quiser, como uma coruja para inquietar os passarinhos do dia. Sejamos firmes em nossos propósitos, invariáveis em nossas resoluções e a constância mostrará que a nossa devoção é séria e sincera. Os cometas e os planetas parecem ter o mesmo brilho; mas os cometas, que são corpos passageiros, desaparecem em breve, ao passo que os planetas brilham continuamente. Do mesmo modo muito se parece a hipocrisia com a virtude sólida e só se distingue porque aquela não tem constância e se dissipa como a fumaça, ao passo que esta é firme e constante.

Demais, para assegurar os começos de nossa devoção, é muito bom sofrer desprezos e censuras injustas por sua causa; deste modo nós nos prevenimos contra a vaidade e o orgulho, que são como as parteiras do Egito, às quais o infernal faraó mandou matar os filhos varões dos judeus no mesmo dia de seu nascimento. Enfim, nós estamos crucificados para o mundo e o mundo deve ser crucificado para nós. Ele nos toma por loucos; consideremo-lo como um insensato.

(São Francisco de Sales, excertos da obra 'Filoteia ou Introdução à Vida Devota')

terça-feira, 30 de setembro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLI)


141. São Gregório e São Tomás ensinam que se pode pecar de quatro maneiras diferentes por meio de atos de orgulho. A primeira é quando consideramos que possuímos algum bem, seja corporal ou espiritual, por nós mesmos, e nos gloriamos dele como se realmente nos pertencesse, sem pensar em Deus, que é o doador de todos os bens. Foi com esse orgulho que Arfaxad, rei dos medos, pecou quando se gloriou no poder de seu enorme exército; e o rei Nabucodonosor pecou da mesma forma quando se vangloriou da construção da Babilônia: 'Não é esta a grande Babilônia que eu construí com a força do meu poder?' [Dn 4,27]. Da mesma forma, o homem rico, mencionado em São Lucas, pecou quando se deleitou com suas riquezas e as considerou como sua própria substância, dizendo: 'Vou reunir todas as coisas e direi à minha alma: alma, você tem muitos bens guardados para muitos anos' [Lc 12,18-19].

E, portanto, podemos dizer que é por meio desse orgulho que todos pecam: aqueles que se lisonjeiam e se gastam em ostentação, glorificando-se por seus grandes talentos, ou por suas riquezas, ou por sua prudência, ou por sua eloquência, ou pela beleza de seu corpo, ou pelo custo de suas vestes, como se Deus não tivesse nada a ver com isso, e que, estimando-se imoderadamente, desejam também ser estimados pelos outros. Este é o verdadeiro orgulho, porque se Deus nos deu todas essas coisas boas para nosso uso, Ele reservou a glória delas para si mesmo: 'A Deus somente seja dada a glória e a honra' [1Tm 1,17] e quem usurpa essa glória é culpado de orgulho.

E, portanto, devemos observar com São Tomás que, para cometer um pecado de orgulho, não é necessário declarar positivamente que esses dons não vêm de Deus, pois isso seria um pecado de infidelidade, mas basta que nos gloriemos deles como se nos pertencessem, 'o que se relaciona com o orgulho' [2a 2æ, qu. clxii].

142. A segunda maneira pela qual podemos pecar em nossas ações por orgulho é quando, sabendo e admitindo que recebemos tal ou tal dom de Deus, atribuímos isso interiormente ao nosso próprio mérito e desejamos que os outros façam o mesmo, e em nosso comportamento exterior nos comportamos como se realmente merecêssemos receber esses dons. Foi assim que Lúcifer pecou por orgulho; pois, apaixonado por sua própria beleza e nobreza, e embora reconhecesse que Deus era o autor de tudo isso, ele teve a presunção de pensar que ele mesmo o merecia e era digno de sentar-se ao lado de Deus no mais alto dos céus: 'subirei ao céu' [Is 14,13].

E, por isso, São Bernardo o repreende, dizendo: 'Ó alma orgulhosa, que obra fizeste para merecer o teu descanso?' O que fizeste, ó ousado, para merecer tal honra? E é assim que pecaram por orgulho aqueles réprobos a quem se faz alusão -  em Lc 17,9 - que, como o fariseu, deram graças a Deus pelo bem que fizeram e pelo mal que deixaram de fazer: 'Ó Deus, eu te dou graças...', mas, ao mesmo tempo, tiveram a presunção de se considerarem de mérito singular, 'confiando em si mesmos'.

Assim, todos aqueles que pecam presumindo que mereceram qualquer bem de Deus são condenados por orgulho, porque, ao atestarem seu próprio mérito, tornam Deus devedor dessa graça, que não seria mais graça se a tivéssemos merecido. Podemos muito bem nos permitir, com Jó, dizer que, por nossos pecados, merecemos a ira de Deus e todo tipo de mal: 'Oh, que meus pecados, pelos quais mereci a ira, fossem pesados na balança' [Jó 6,2], mas não podemos dizer que merecemos a graça ou qualquer bem, como diz São Paulo: 'Se é por graça, não é agora por obras; caso contrário, a graça não é mais graça' (Rm 11,6].

E cada um de nós deve dizer com o mesmo humilde São Paulo: 'Pela graça de Deus sou o que sou' [1Cor 15,10]. Se sou rico, nobre, são ou possuo quaisquer outros dons, tudo isso vem de Deus, que me fez assim, não por meus próprios méritos, mas unicamente por sua própria misericórdia e bondade. Quer eu me abstenha do mal ou faça o bem, devo tudo isso não ao meu próprio mérito, mas à graça de Deus, que me assiste com a sua misericórdia: 'Pela graça de Deus sou o que sou'. E qualquer um que atribua o que é ou o que tem aos seus próprios méritos é culpado de orgulho e apropria-se do que deveria dar à misericórdia e à graça de Deus. Por isso, a Santa Igreja sabiamente termina suas orações com estas palavras: 'Por Jesus Cristo, nosso Senhor'... E com isso protestamos à Divina Majestade que pedimos as dádivas mencionadas nessas orações pelos méritos de Jesus Cristo e que, se nossas orações forem ouvidas, será somente pelos méritos de Jesus Cristo.

Este é um ponto que merece toda a atenção, para que não caiamos por inadvertência no mais terrível orgulho. E Santo Agostinho nos exorta a lembrar que não só todo o bem que temos vem de Deus, mas também que o temos somente por sua misericórdia e não por nossos próprios méritos. 'Quando o homem vê que todo o bem que tem vem da misericórdia de Deus e não de seus próprios méritos, ele deixa de ser orgulhoso' [Sl 84].

143. A terceira maneira pela qual podemos pecar por orgulho é quando atribuímos a nós mesmos algum bem - de qualquer tipo - que, na verdade, não possuímos, seja estimando-nos por esse bem imaginário que existe apenas em nossos pensamentos e desejando que os outros também nos estimem por isso, seja realmente possuindo-o, seja apenas desejando ter esse bem que não temos para poder nos vangloriar e nos gloriar nele, tudo isso é orgulho detestável.

Foi assim que o bispo de Laodicéia pecou, estimando-se rico em méritos quando era apenas desprezível; e, por isso, Deus lhe disse que o vomitaria da sua boca: 'Começarei a vomitar-te da minha boca, porque dizes: sou rico e não tenho necessidade de nada, e não sabes que és miserável e pobre' [Ap 3,16.17]. E é com esse tipo de orgulho que todos pecam, quer se considerem a si mesmos, quer procurem ser considerados pelos outros, em palavras ou ações, como mais ricos, mais sábios, mais importantes ou mais virtuosos do que realmente são.

Pode ser um ato de virtude desejar essas coisas para algum fim honroso, por exemplo, desejar mais conhecimento para poder servir à Santa Igreja, desejar riquezas para poder dar mais esmolas; mas desejar essas coisas para não parecer inferior aos outros ou para adquirir mais estima é apenas orgulho, e como são poucos os que não estão infectados com esse orgulho! Um por uma coisa, outro por outra, quase todos os homens procuram ser estimados acima do que realmente são - e isso sem o menor escrúpulo.

Às vezes, pode ser que o pecado não seja tão grave, seja porque não se trata de um desejo deliberado, seja porque a natureza da ofensa é muito leve; mas, por outro lado, é em si mesmo sempre um pecado muito grave, porque, por meio desse orgulho, o homem não permanece mais sujeito à regra que lhe foi dada por Deus: contentar-se com o seu próprio estado. São Tomás diz: 'Isso é evidentemente da natureza do pecado mortal' [2a 2æ, qu. clxii, art. 5 et 6] e sua doutrina sobre esse ponto é que, quanto maior for o dom do qual nos gloriamos, embora não o possuamos, maior é o nosso orgulho. Portanto, é pior fingir ser santo do que fingir ser nobre ou rico, porque a santidade é um dom maior do que a posição social ou a riqueza. 

E o hábito de desculpar os pecados que cometemos também pertence a esse tipo de orgulho, porque quando nos desculpamos e dizemos que não somos culpados, afirmamos nossa inocência e nos atribuímos uma inocência que não possuímos. E quantas vezes pecamos assim por orgulho, sem nem mesmo saber! São Tomás também atribui ao orgulho o esforço de esconder os nossos pecados e, assim, desculpar e atenuar a maldade deles em nossas confissões [Ibid. art. 4].

144. A quarta maneira pela qual pecamos por orgulho é quando usamos qualquer dom que possamos ter para parecer distintos ou nos considerarmos melhores do que os outros, e para sermos mais estimados e honrados do que eles. Tudo o que temos de bom, seja no corpo ou na alma, na natureza, na fortuna ou na graça, é um dom de Deus, e usar esses dons para tentar ser mais visível do que os outros é orgulho.

É com esse orgulho que o fariseu no Templo considerava sua própria bondade e se colocava acima dos outros, especialmente do publicano: 'Eu não sou como os demais homens, desonestos, injustos, adúlteros, tal como este publicano' [Lc 18,11]. Ele se estimava acima de todos e era, na realidade, o mais orgulhoso de todos. Foi também com esse orgulho que os discípulos pecaram quando se glorificaram em seu dom singular de poder expulsar demônios: 'E eles voltaram com alegria, dizendo: Senhor, até os demônios nos estão submetidos' [Lc 10,17], e nosso abençoado Senhor lhes respondeu com toda a justiça: 'Eu vi Satanás cair do céu como um raio' - como se Ele quisesse dizer - 'Cuidem-se para não se exaltarem como o orgulhoso Lúcifer, para que não caiam como ele caiu'.

São Gregório, de fato, faz esta reflexão de que não há orgulho que se assemelhe tanto ao orgulho diabólico quanto este: 'Isso se aproxima muito de uma semelhança diabólica' [Lib. 23. Mor. cap. iv]. Quem quer que deseje exaltar-se acima dos outros imita Lúcifer, que desejava ser o primeiro entre os anjos e o mais próximo do trono de Deus. Este foi o pecado de Lúcifer quando se deteve em seu desejo de ser exaltado: 'E disseste em teu coração: Eu subirei sobre as nuvens mais altas!' [Is 14,14]. E aqueles que estão sempre tramando para seu próprio avanço e estão insatisfeitos com sua própria condição pecam assim como Lúcifer pecou: 'Subirei!' e devemos nos proteger contra esse pecado diabólico, como diz São Paulo: 'Para que, ensoberbecidos, não caiamos no julgamento do diabo' [1Tm 3,6].
 
E, além disso, devemos também observar o que o mesmo santo pontífice nos diz, que muitas vezes caímos neste pior tipo de orgulho: 'Neste quarto tipo de orgulho, a mente humana cai com muita frequência' e não há dúvida de que é realmente um pecado grave, pois com isso ofendemos tanto a Deus como ao nosso próximo. E quantos homens e mulheres existem, tanto religiosos como seculares, de todos os estados e condições, que cometem este pecado de orgulho com tanta frequência que se torna um hábito predominante neles.

Na prática, percebemos que todos os homens desejam se distinguir em sua arte particular, por mais inferior que seja, e todos buscam primeiro ser estimados tanto quanto os outros e, depois, se distinguir mais do que os outros - Eu subirei! - cada um em sua própria esfera e também fora dela. O homem rico se considera maior do que o homem culto por causa de suas riquezas; o homem culto se considera maior do que o homem rico por causa de seu conhecimento; o homem casto se considera melhor do que aquele que dá esmolas, e aquele que dá esmolas se considera superior ao homem casto. Quanto orgulho! E, no entanto, poucas pessoas estão dispostas a reconhecer que são realmente orgulhosas.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XL)

Doutrina Moral

Sobre o Vício do Orgulho - Exame Prático 

136. São Tomás [2a 2æ, qu. clxii, art. 1] define o orgulho como uma afeição desordenada contra a razão correta, pela qual o homem se estima a si mesmo e deseja ser estimado pelos outros acima do que realmente é; e como essa afeição se opõe ao raciocínio correto, é certamente um pecado que participa da gravidade de um pecado mortal, porque está em oposição direta à virtude da humildade. São Paulo coloca os orgulhosos na mesma categoria daqueles que 'Deus entregou aos sentimentos depravados e considerou dignos de morte' [Rm 1,28.32], embora às vezes seja apenas um pecado venial, quando a razão não está suficientemente esclarecida ou não há pleno consentimento da vontade [D. Th., loc. cit., art 5].

137. O orgulho está entre os pecados mortais porque é dele que derivam tantos outros pecados, e é por isso que São Paulo, vendo as inúmeras maldades do mundo, chamou a atenção de seu discípulo Timóteo, dizendo: 'Vê quantos são arrogantes, orgulhosos, blasfemos, desobedientes aos pais' [2Tm 3,2], sem amor pelo próximo ou por Deus. De onde você acha que todos esses vícios têm origem? Esta é a fonte: o amor desordenado que todos têm por si mesmos: 'Os homens são amantes de si mesmos', eis a explicação que São Paulo dá para isso e, como observa Santo Agostinho, 'Todos esses males fluem da fonte que ele menciona primeiro: o amor próprio' [Tr. 123 em Jo. lib. iv, De Civ. Dei, c. xiii] e, como diz o mesmo santo, 'esse excesso de amor próprio é apenas orgulho'.

Portanto, podemos concluir disso que quem vence o orgulho vence toda uma série de pecados; de acordo com a explicação dada por São Gregório [Lib. 31, Mor. c. xvii] deste texto de Jó: 'De longe fareja a batalha, a voz troante dos chefes e o alarido dos guerreiros' [Jó 39,25].

138. O orgulho ocupa o primeiro lugar entre os pecados capitais e São Tomás não apenas o coloca entre os pecados capitais, mas acima deles, como transcendendo todos eles, o rei dos vícios que inclui em seu cortejo todos os outros vícios, por isso é chamado na Sagrada Escritura: 'a raiz de todo o mal' [1Tm 6,10] e 'o princípio de todo o pecado' [Eclo 10, 15], porque, assim como a raiz da árvore está escondida sob a terra e envia toda a sua força para os galhos, o orgulho permanece escondido no coração e influencia secretamente todos os pecados por meio de sua ação. Portanto, sempre que cometemos um pecado mortal, estamos na realidade nos opondo e dirigindo nossa própria vontade contra a vontade de Deus.

Jó fala assim do pecador: 'Ele se fortaleceu contra o Todo-Poderoso' [Jó 15,25] e, nesse sentido, também se pode dizer do orgulho que é o maior de todos os pecados, porque os orgulhosos se rebelam contra Deus, colocando-se em oposição a Ele, e não se importam em desagradá-lo para agradar a si mesmos, deixando o Todo Poderoso para se apegar à sua própria insignificância, como diz Santo Agostinho: 'Abandonando Deus, ele busca sua própria vontade e, ao fazê-lo, aproxima-se da insignificância; por isso, os orgulhosos, segundo as Escrituras, são chamados de praticantes de sua própria vontade' [Lib. IV, De Civ. Dei, cap. xiv], o que equivale a dizer, como São Paulo: 'amantes de si mesmos'. E o mesmo santo padre faz esta reflexão: mesmo os pecados veniais cometidos mais por fraqueza do que por malícia podem se tornar mortais se forem agravados pelo orgulho: 'Os pecados se insinuam pela fraqueza humana e, embora pequenos, tornam-se grandes e pesados se o orgulho aumenta o seu peso e a sua medida' [Lib. de Sancta Virginit. cap. ii].

Mas, como Deus jurou detestar esse vício: 'O Senhor Deus jurou por sua própria Alma: Eu detesto o orgulho de Jacó' [Am 6,8], pode ser surpresa que Ele o castigue mais do que todos os outros vícios? Santo Agostinho observa com singular força que, entre todos os pecados pelos quais os pecadores caem, nenhum é tão grande, tão ruinoso ou tão grave quanto o orgulho: 'Entre todas as quedas dos pecadores, nenhuma é tão grande quanto a dos orgulhosos' [Sl 35,12-13].

139. Consideremos agora onde reside o terrível perigo desse vício: 

(i) Porque, enquanto todos os outros vícios destroem apenas as virtudes opostas, como a devassidão destrói a castidade, a ganância destrói a temperança e a ira destrói a mansidão, etc., o orgulho destrói todas as virtudes e, segundo São Gregório, é como um câncer que não apenas corrói um membro, mas ataca todo o corpo: 'como uma doença pestilenta generalizada' [lib. xxxiv, Mor., cap. 18].

(ii) Porque os outros vícios só devem ser temidos quando estamos dispostos ao mal; mas o orgulho, diz Santo Agostinho, insinua-se mesmo quando estamos tentando fazer o bem: 'outros vícios devem ser temidos nos pecados, o orgulho deve ser temido mesmo nas boas ações' [Epist. cxviii] E Santo Isidoro diz: 'O orgulho é pior do que todos os outros vícios, pois brota até mesmo da virtude e sua culpa é menos sentida' [Lib. de Summ. Bono].

(iii Porque, depois de termos lutado contra os outros vícios e os termos vencido, podemos justamente regozijar-nos, mas assim que começamos a regozijar-nos por termos triunfado sobre o orgulho, ele triunfa sobre nós e vence-nos precisamente naquele ato pelo qual nos louvamos por tê-lo vencido. Santo Agostinho diz: 'Quando um homem se alegra por ter vencido o orgulho, este levanta a cabeça de alegria e diz: eis que eu triunfo assim porque tu triunfas' [Aug., Lib. de Nat. et Gr. cap. xxvii].

(iv) Porque se os outros vícios crescem rapidamente, também podemos nos livrar deles rapidamente; mas o orgulho é o primeiro vício que aprendemos e também o último a nos abandonar, como diz Santo Agostinho: 'Para aqueles que estão retornando a Deus, o orgulho é a última coisa a ser vencida, pois foi a primeira causa de seu afastamento de Deus' [Enarr. 2 in Ps. cxviii].

(v) Porque, assim como precisamos de alguma graça especial de Deus para nos capacitar a realizar qualquer uma das boas obras que dizem respeito à nossa salvação eterna, não há vício que impeça tanto o influxo da graça quanto o orgulho; porque 'Deus resiste aos orgulhosos' [Tg 4,6].

(vi) Porque o orgulho é o sinal característico e mais significativo dos réprobos, como diz São Gregório: 'O orgulho é o sinal mais manifesto dos perdidos' [Lib. 34. Mor. cxviii].

(vii) Porque os outros vícios são facilmente reconhecíveis e, portanto, é fácil odiá-los e corrigi-los; mas o orgulho é um vício que não é tão facilmente conhecido, porque se mascara e se disfarça de muitas formas, chegando mesmo a assumir a aparência da virtude e da humildade; sendo assim um vício oculto, é menos fácil escapar dele, como ensina a máxima de Santo Ambrósio: 'As coisas ocultas são mais difíceis de evitar do que as coisas conhecidas' [Epístola 82].

140. Este último perigo é para nós o maior de todos, e ainda mais porque nós mesmos parecemos cooperar para não reconhecer esse vício, inventando subterfúgios e artifícios para esconder sua feiúra e estudando inúmeros pretextos para nos enganarmos, acreditando que o orgulho não é orgulho e não reina em nosso coração no momento em que é mais dominante do que nunca.

Assim como a humildade é geralmente chamada de fraca e desprezível pelos amantes cegos deste mundo, o orgulho é chamado de coragem e grandeza, e os orgulhosos são considerados proativos, dignos, de comportamento nobre e bom julgamento, sustentando sua posição com honra, mantendo sua reputação, mantendo sua posição e cumprindo os deveres de seu estado. Que vocabulário de vaidade! Mas vamos contrapor a ele o vocabulário da verdade que foi usado por Jó: 'Eu disse à podridão: Tu és meu pai; aos vermes: minha mãe e minha irmã' [Jó 17,4].

Se você peneirar essas expressões mundanas, descobrirá que delas emana a quintessência do orgulho mais consumado. Esta é, de fato, a única coisa que peço a vocês: que, se infelizmente foram enganados por outros, pelo menos não se enganem a si mesmos. Estudem para conhecer seus próprios males, se desejam ser curados deles. Recomendo-lhes apenas que se dediquem a aprender a verdade e aproveitem este conselho: se o conhecimento dessa verdade lhes parecer difícil, é sinal de que vocês são orgulhosos.

É o próprio São Tomás que os convencerá disso. Vocês podem aprender a verdade de duas maneiras: pelo intelecto e pelos afetos. O homem orgulhoso não a conhece pelo intelecto, porque Deus a esconde dele, como disse Cristo: 'Tu escondeste estas coisas aos sábios e prudentes' [Mt 11, 25]; e menos ainda a conhecerá com seus afetos, porque ninguém que se deleita na vaidade pode se deleitar na verdade: 'Quando os orgulhosos se deleitam em sua própria excelência' - explica Santo Agostinho - 'eles se afastam da excelência da verdade' [D. Th. 2a 2æ, qu. clxii, art. 3].

O homem orgulhoso não tem nenhum prazer em sermões, meditações ou instruções sobre a verdade eterna; na verdade, todos estes são enfadonhos para ele. Se você descobrir algum sinal disso em si mesmo, deve concluir imediatamente que é orgulhoso e humilhar-se um pouco - você que lê esta doutrina -para que o Pai eterno lhe dê luz, assim como Cristo disse: 'Eu te bendigo, ó Pai, porque revelaste estas coisas aos pequeninos' [Mt 11,25].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXIX)

 


132. É necessário ser humilde não apenas nos pensamentos, mas também nas palavras, porque o homem humilde fala pouco, seguindo o conselho do Espírito Santo: 'Não fales precipitadamente; que as tuas palavras sejam poucas' [Ecles 5,1]. Falar muito é fruto do orgulho, porque nos convencemos de que sabemos muito e desejamos impressionar os outros com nossos pensamentos e opiniões. Você tem cuidado ao falar para não dizer nada em seu próprio louvor ou qualquer coisa que possa fazer com que seja elogiado pelos outros, para não parecer erudito, sábio ou espiritual, exibindo ostensivamente suas vantagens pessoais ou as que pertencem à sua família? É fácil nessas coisas você ser dominado pelo orgulho, e o santo Tobias nos adverte, dizendo: 'Nunca deixe o orgulho reinar em sua mente ou em suas palavras' [Tb 4,14].

Você às vezes se coloca como exemplo, dizendo que seria bom fazer assim e assim, como você mesmo fez? Se você tem algum dom de Deus, você fala sobre isso como se dissesse: 'Graças a Deus, não tenho tal e tal vício; graças a Deus, tenho tal e tal virtude'? Lembre-se do conselho dado pelo Anjo a Tobias, de que é bom manter ocultos os dons secretos de Deus: 'Pois é bom esconder o segredo de um rei' [Tb 12,7]. Pode ser que às vezes você fale mal de si mesmo, para que os outros possam contradizê-lo. Essa é a maneira de agir daquele de quem se diz: 'Há quem se humilhe perversamente' [Eclo 19, 23], que finge fugir dos elogios, mas os busca, que foge das honras e as corteja. Você deve se acostumar a não falar mal e nem bem de si mesmo, porque é fácil que o orgulho inspire suas palavras em ambos os casos.

133. Quando você ouve elogios a seu respeito, que precauções você toma? O amor-próprio é rápido em misturar um pouco de seu próprio incenso com o que recebe dos outros. Quero dizer com isso que, devido à corrupção de nossa natureza, estamos muito dispostos a aprovar esses elogios como se fossem verdadeira e justamente devidos a nós, e a nos lisonjear com vaidade; mas tudo isso vem da falta de humildade. Santo Agostinho, falando desse prazer que temos de ser elogiados, dirige esta oração a Deus: 'Senhor, afasta de mim essa loucura' [Lib. 10, Confess., cap. xxxvii], pois considerava uma verdadeira loucura ter prazer na vaidade e nos enganos; e quando ouvia outros elogiá-lo, refletia sobre o conhecimento que tinha de si mesmo e sobre a justiça de Deus, dizendo em seu coração: 'Eu me conheço melhor do que eles me conhecem, mas Deus me conhece melhor do que eu mesmo' [Enarr. in Ps. xxv].

Um coração verdadeiramente humilde, diz São Gregório, sempre teme ouvir elogios a si mesmo, porque teme que esses elogios sejam falsos ou lhe roubem o mérito e a recompensa prometidos à verdadeira virtude. 'Se o coração é verdadeiramente humilde, ele não reconhece o bem que ouve a seu respeito ou teme que a esperança de uma futura recompensa seja trocada por algum favor passageiro' [lib. 22, Mor. c. iii].

O homem humilde, diz São Tomás, fica surpreso quando alguém fala bem dele, e nada o surpreende mais do que ouvir elogios a si mesmo. Assim, a Santíssima Virgem, quando ouviu do Arcanjo Gabriel que se tornaria a Mãe de Deus, tinha uma opinião tão humilde de si mesma que se maravilhou muito por ser exaltada a uma dignidade tão eminente. 'Para uma alma humilde, nada é mais maravilhoso do que ouvir falar de sua própria excelência; assim, à pergunta de Maria: ‘Como isso será possível?’, o Anjo apresenta uma prova, não para tirar sua fé, mas para dissipar sua admiração' [3 part., qu. xxx, art. 4]. Mas o orgulho pode até mesmo insinuar-se nesse mesmo desprezo pelos elogios, como diz Santo Agostinho: 'O homem muitas vezes se orgulha tolamente de seu próprio desprezo tolo por si mesmo' [Lib.10].

Mas se é necessário elogiar aqueles que estão presentes, não é menos necessário exercer discrição e prudência ao fazê-lo, como também ensina Santo Agostinho: 'para que a tentação mais perigosa não se encontre no amor de elogiar'. A adulação é sempre perniciosa, quer adulemos a nós mesmos ou aos outros.

134. Também se pode pecar contra a humildade com a pompa e a vaidade do próprio vestuário. É o que a rainha Ester chama de 'sinal do meu orgulho e glória' [Est 14,16] e devemos manter nossos corações desapegados desse amor, porque tal vestuário só é adequado quando se adequa ao nosso estado e condição, e quando o usamos com a intenção correta: 'Não te glories em vestuário em nenhum momento' [Ecles 11,4] diz o Espírito Santo. Por mais bonitas que sejam as roupas que você usa, não permita que a vaidade entre em seu coração; e se você tiver que aparecer em público com boas roupas, proteja-se contra a vaidade 'e não se exalte no dia da sua honra' [Ibid.].

O excesso, a auto-complacência, o desejo de agradar, de atrair a atenção para si mesmo, de estar acima dos seus iguais ou de se igualar aos seus superiores pela pompa de suas vestes são coisas que devem ser moderadas e subjugadas pela humildade. São Tomás dá uma excelente regra para isso: 'A extravagância em vestimentas suntuosas deve ser restringida pela humildade' [2a 2æ, qu. clxi, art.]. Essas necessidades que consideramos essenciais para o decoro de nosso estado devem ter seus limites prescritos pela modéstia e simplicidade cristãs, e não pelo orgulho ou pela tendência luxuosa dos tempos. E a vaidade com que nossa graça de porte ou beleza facial nos inspira também deve ser restringida pela humildade; porque 'o favor é enganador e a beleza é vaidade' [Pv 31,30].

135. Quanto a certas ações exteriores, indiferentes em si mesmas, mas que, se feitas com boa intenção, podem tender a nos tornar virtuosos, o único requisito necessário é ter o cuidado de que sejam realizadas com humildade, como Cristo nos ensina: 'Serei pequeno aos meus próprios olhos' [2Rs 6,22]. Isso é o que cada um de nós deve dizer a si mesmo, como o santo rei Davi, e nos ajuda muito a formar esse bom hábito de humildade para com nós mesmos, a fim de que também sejamos humildes para com os outros.

É por isso que desejo que você se dedique com toda a diligência a este exame. Que concepção e estima você tem da virtude da humildade? Você realmente acredita que a humildade de coração é necessária para a sua salvação eterna? Você sabe que é necessário acreditar firmemente no mistério da Santíssima Trindade e que quem duvida disso é herege; mas você deve saber que também é necessário acreditar com igual firmeza na doutrina da humildade ensinada por Jesus Cristo em seu evangelho, porque não podemos afirmar que no evangelho uma doutrina é mais verdadeira do que outra, nem que devemos acreditar mais em uma do que em outra, porque todas elas procedem igualmente da boca de Jesus Cristo, que é a própria Verdade.

Se, portanto, você acredita neste dogma da humildade, como você o aplica a si mesmo e que medidas você toma para ser humilde? Você pede isso a Deus? Recorre à intercessão da Santíssima Virgem e dos santos? Familiariza-se com os pensamentos mais eficazes para lhe ensinar essa humildade: os pensamentos da morte, do julgamento, do Inferno, do Paraíso e da eternidade, da gravidade do pecado e, acima de tudo, da Paixão de Jesus Cristo?

Estou perfeitamente certo de que você nunca alcançará essa humildade se negligenciar esses meios, que são os mais adequados para adquiri-la; e se você não tiver sido humilde de coração, como poderá justificar-se perante o tribunal de Deus? Grave em sua mente esta bela passagem que Santo Agostinho deixou para seu amigo Dioscuro: 'Não se afaste, ó Dioscuro, do caminho real da humildade que foi ensinado por Cristo; embora muitas outras virtudes sejam exigidas pela religião cristã, procure dar à humildade o lugar mais alto, porque todas as virtudes são adquiridas e mantidas pela humildade, e sem humildade elas desaparecem' [Epist. cxiii].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

sábado, 30 de agosto de 2025

A GLÓRIA DAS GLÓRIAS É A CRUZ!

Toda ação de Cristo é glória da Igreja católica. Contudo, a glória das glórias é a cruz. Paulo, muito bem instruído, disse: 'Longe de mim gloriar-me a não ser na cruz de Cristo'.

Foi uma coisa digna de admiração que ele tenha recuperado a vista àquele cego de nascença em Siloé. Mas o que é isto em vista dos cegos do mundo inteiro? Foi estupendo e acima das forças da natureza ressuscitar Lázaro após quatro dias de morto. Mas a um só foi dada essa graça; e os outros todos, em toda a terra, mortos pelo pecado? Foi maravilhoso alimentar com cinco pães, qual fonte, a cinco mil homens. Mas e aqueles que em toda a parte sofrem a fome da ignorância? Foi magnífico libertar a mulher ligada há dezoito anos por Satanás; mas que é isto se considerarmos a todos nós, presos pelas cadeias de nossos pecados?

Pois bem; a glória da cruz encheu de luz os que estavam cegos pela ignorância, libertou os cativos do pecado, remiu o universo inteiro. Não nos envergonhemos da cruz do Salvador. Muito pelo contrário, dela tiremos glória. Pois a palavra da cruz é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, para nós, no entanto, é salvação. Para aqueles que se perdem é loucura; para nós, que fomos salvos, é força de Deus. Não era um simples homem quem por nós morria; era o Filho de Deus feito homem.

Outrora o cordeiro, morto segundo a instituição mosaica, afastava para longe o devastador. Porém, o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, não poderá muito mais libertar dos pecados? O sangue de um cordeiro irracional manifestava a salvação. Sendo assim, não trará muito maior salvação o sangue do Unigênito?

O Cordeiro não entregou a vida coagido, nem foi imolado à força, mas por sua plena vontade. Ouve o que ele disse: 'Tenho o poder de entregar minha vida; e tenho o poder de retomá-la'. Chegou, portanto, com toda a liberdade à paixão, alegre com a excelente obra, jubiloso pela coroa, felicitando-se com a salvação do homem. Não se envergonhou da cruz pois trazia a salvação para o mundo. Não era um homem qualquer aquele que padecia, era o Deus encarnado a combater pelo prêmio da obediência.

Por conseguinte, não te seja a cruz um gozo apenas em tempo de paz. Também em tempo de perseguição guarda a mesma fidelidade, não aconteça seres tu amigo de Jesus durante a paz e inimigo durante a guerra. Agora recebes a remissão dos pecados e és enriquecido com os generosos dons espirituais de teu rei. Rebentando a guerra, luta por ele valorosamente.

Jesus foi crucificado em teu favor, ele não tinha pecado. Tu, por tua vez, não te deixarás crucificar por aquele que em teu benefício foi pregado na cruz? Não estarás fazendo nenhum favor porque primeiro recebeste. Entretanto, mostras tua gratidão pagando a dívida a quem por ti foi crucificado no Gólgota.

(Das Catequeses de São Cirilo)

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

SOMOS APENAS A CASA DO HÓSPEDE

A vida interior depende de três condições preliminares: uma correta concepção de Deus; a harmonia psicológica e as circunstâncias do meio. Uma reta concepção da divindade é a condição fundamental de uma vida interior, rica e fecunda. Pois o que faz a força da vida interior não é o isolamento. É o encontro de Deus em nós. Somos apenas a Casa do Hóspede. O isolamento, como tal, poderá ser apenas mau humor, desespero ou misantropia. E nada de mais alongado dessas formas de negação da vida do que a vida interior. 

Esta, ao contrário, é uma intensificação da vida. Para ter vida interior é preciso, antes e acima de tudo, ter vida, crer na vida e viver a vida do modo mais intenso possível. Ora, só pode preencher essas três exigências ou mesmo qualquer delas quem crê em Deus e encontra a Deus não apenas à distância ou de modo abstrato, mas dentro de si mesmo. O ateísmo pode provocar uma intensificação da vida exterior, mas jamais um aumento da vida interior. Para quem não crê em Deus, só há vida no movimento, na agitação, no mundo das ações e dos fatos. O ateu encontra em si o vazio. Pois se vê, naturalmente, como uma consequência e um motor. Mas jamais como a habitação da própria vida. 

Crer em Deus é portanto a condição essencial da vida interior. E ter de Deus uma noção que permita essa intimidade com o mistério, esse diálogo interior, que não anula a Deus em nós, nem nos aniquila em Deus, é a exigência imediata. E por isso é que duas concepções correntes da divindade, o deísmo e o panteísmo, são também tão contrárias ao mundo interior como o ateísmo. O deísmo coloca a Deus como uma categoria abstrata ou então a uma distância tal que o isola do mundo, tanto exterior como interior. Para o deísmo Deus é uma 'categoria do ideal' , como dizia Renan, ou o 'arquiteto do universo', como dizia Voltaire, ou um Alá inacessível e sem comunicação com o mundo, como quer o fatalismo muçulmano. Essa concepção abstracionista de Deus, como uma peça na geometria do universo, aparta Deus de tal maneira do homem que não há meio de o encontrarmos, quando nos fechamos em nós mesmos. O mesmo se dá com o fatalismo maometano, para quem a linha da divindade é como que paralela à linha da humanidade, sem que entre elas existam quaisquer coordenadas. Por mais puro que seja o moteísmo, desde que separa Deus do homem, não permite que a vida divina se insira na vida humana de modo a alimentar o mistério e a abundância da vida interior. 

O mesmo se dá com a concepção oposta, com o panteísmo. Se dissolvemos Deus no universo, o criador nas criaturas, se apenas vemos Deus em toda parte, encarnado na criação, é como se o tivéssemos solitário e separado no céu geométrico ou fatalista. Os dois contrários se encontram. No panteísmo, Deus se perde no universo e não podemos encontrá-lo em nós, como se Ele se tivesse desinteressado da sua própria obra, por culpa das traições do homem. Para que nossa vida interior represente a vida de Deus em nós e o encontro com Ele no fundo de nós mesmos, é preciso que se resguarde simultaneamente a distinção entre Deus e o mundo, contra o panteísmo e a união de Deus com o mundo, pelas idéias criadoras, pelos sacramentos e pela graça constantemente animando a natureza contra o deísmo. 

Só assim podemos ter a Deus em nós, sem que seja uma ilusão ou uma palavra vã. Só assim podemos encontrar, dentro de nós, o próprio criador da vida. E por isso mesmo é que não bastam as virtudes morais para que tenhamos uma vida interior intensa. É mister que as virtudes teologais, a Fé, a Esperança e o Amor, transfiguradas pelos dons do Espírito Santo, venham permitir que encontremos, no fundo de nossas almas, a presença divina. E essa presença é que faz a riqueza da vida interior. É porque há em nós mais do que nós mesmos, que o mundo interior tem um sentido tão grande. É porque Deus pode habitar em nós e pela vida interior podemos mais de perto conviver com Ele, que ir a Deus não é sair de nós, e sim, pelo contrário, entrar em nós. 

A vida religiosa só se torna exterior como uma consequência e não como uma causa. Os dois modos de manifestação exterior dessa vida, a oração e o apostolado, só se justificam, quando alicerçados na vida interior. Pela oração é que nos unimos profundamente a Deus. E a oração coletiva, a oração em união com todos os fiéis, a oração do nosso eu em união com a Igreja, Corpo Místico de Cristo, só tem valor quando precedida e acompanhada, simultaneamente, pela oração interior, pela intimidade com Deus no fundo de nossas almas. De outra forma se opera apenas uma mecanização, uma ritualização da prece, que não possui valor espiritual nenhum. O mesmo ocorre com o apostolado. Só há força de irradiação e de contaminação no apostolado, como extensão do Reino de Deus, a que cada cristão está moralmente obrigado, quando essa irradiação parte de um foco ardente que não pode deixar de expandir-se. E, portanto, de uma vida interior que extravasa naturalmente e por isso mesmo de modo mais fecundo para a extensão da vida sobrenatural em nós, que é Deus em nosso mundo interior. 

Uma falsa concepção da divindade é, por conseguinte, um elemento de enfraquecimento, corrupção e aniquilamento de nossa vida interior. Uma verdadeira concepção de Deus, ao contrário, permite que, dentro de nós, encontremos a fonte de toda a vida, a própria Vida em sua cratera ardente e luminosa. Não há pois, vida interior autêntica sem uma profunda vida religiosa. Deus em nós é a condição primeira e maior dessa reverência que devemos ter para com a nossa vida íntima, de modo a expurgá-la de todos os elementos de desagregação e mantê-la na limpidez e na limpeza com que nos preparamos sempre para receber um hóspede. E Deus é mais, muito mais do que um hóspede em nossa casa íntima. É o próprio dono da casa. E quanto mais nos tornarmos hóspedes do nosso Hóspede, tanto mais veremos crescer e florescer o nosso mundo interior.

(Excertos da obra 'Meditação Sobre o Mundo Interior', de Alceu Amoroso Lima)

terça-feira, 19 de agosto de 2025

SOBRE A CONFIANÇA EM DEUS

Desperte, eu lhe digo, levante-se e fique acordado, você que foi vencido pelo sono do pecado; volte à vida finalmente, você que caiu diante da espada mortal de seus inimigos. O apóstolo Paulo está aqui. Ouça-o enquanto ele exige vigorosamente ser ouvido, batendo à sua porta e lhe chamando com palavras claras: 'Acorda do teu sono e levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará!' (Ef 5,14).

Se você ouve Cristo, que restaura a vida, por que se sente inseguro quanto à sua restauração? Ouça as suas próprias palavras: 'Se alguém crer em mim, ainda que morra, viverá' (Jo 11,25) Se a própria Vida, que dá vida, procura ressuscitar você, por que você continua tolerando ficar morto?

Seu coração deve bater com confiança no amor de Deus e não endurecer e se tornar impenitente diante do seu grande crime. Não são os pecadores, mas os ímpios que devem se desesperar; não é a magnitude do crime de alguém, mas o desprezo por Deus que destrói as esperanças de alguém. Se, de fato, o diabo é tão poderoso que é capaz de lançá-lo nas profundezas desse vício, quão mais eficaz é a força de Cristo para restaurá-lo à posição elevada da qual você caiu? 'Aquele que caiu nunca mais se levantará?' (Sl 40,9). 'Se o jumento do teu inimigo cair sob o peso da sua carga' (cf Ex 23,5) é o aguilhão da penitência que o impele e a mão do espírito que o liberta com coragem.

Se a sua carne impura o enganou... se roubou os sete dons do Espírito Santo, se extinguiu não apenas a luz do seu rosto, mas também a do seu espírito, não fique deprimido e não se desespere completamente. Mais uma vez, reúna suas forças, anime-se como um homem, ouse realizar grandes feitos e, ao agir assim, você terá a força, pela misericórdia de Deus, para triunfar sobre seus inimigos.

(São Pedro Damião)