sábado, 18 de maio de 2024

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

Cultivai o santo recolhimento, isto é, vivei em sociedade de vida, de união e de amor com Deus, com Nosso Senhor. O santo recolhimento é a raiz da árvore, a vida das virtudes e até do amor divino: é a força da alma concentrada em Deus para daí irromper e expandir-se. Permanecei sempre no interior, vivei em vosso interior, possui-vos, virai-vos de fora para dentro, deixai este mundo; retirai-vos com Jesus em vosso coração, onde Ele vos move a alma, falai-lhe a linguagem interior que só o amor entende e compreende. Entretei uma doce e habitual conversação em vosso interior e não o percais de vista, se quiserdes conformar-vos àquele que dizia: 'Jesus é minha alegria e felicidade!' Lembrai-vos deste princípio de vida, de que só encontrareis felicidade no serviço de Deus na vida interior de oração e de amor.

(São Pedro Julião Eymard)

sexta-feira, 17 de maio de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXXI)

 

Capítulo LXXXI

Razões e Exemplos para a Devoção às Santas Almas - Obrigação de Caridade e de Justiça - O Roubo aos Falecidos - A Propriedade Devastada - O Velho Soldado e o seu Legado Piedoso Não Cumprido

Acabamos de considerar a devoção às almas do Purgatório como uma obra de caridade. A oração pelos mortos, dissemos, é uma obra santa, porque é um exercício muito salutar da mais excelente das virtudes, a caridade. Esta caridade para com os defuntos não é apenas facultativa e de conselho, mas é também de preceito, não menos do que dar esmolas aos pobres. Como existe uma obrigação geral de caridade para dar esmolas, com quanto maior razão não somos obrigados pela lei geral da caridade a ajudar os nossos irmãos sofredores no Purgatório?

Esta obrigação de caridade está muitas vezes associada a uma obrigação de justiça rigorosa. Quando um moribundo, quer por palavra, quer por testamento escrito, exprime os seus últimos desejos no que diz respeito às obras de piedade; quando encarrega os seus herdeiros de mandar celebrar um certo número de missas, de distribuir uma certa soma em esmolas, para qualquer boa obra que seja, os herdeiros são obrigados, em estrita justiça, a partir do momento em que entram na posse da propriedade, a cumprir sem demora os últimos desejos do falecido.

Este dever de justiça é tanto mais sagrado quanto estes legados piedosos não passam frequentemente de restituições disfarçadas. Ora, o que nos ensina a experiência cotidiana? Será que as pessoas se apressam com religiosa exatidão a cumprir essas piedosas obrigações que dizem respeito à alma do defunto? Infelizmente, muito pelo contrário. Uma família que se apodera de uma fortuna considerável distribui ao seu pobre parente defunto os poucos sufrágios que ele reservou para seu próprio benefício espiritual; e se as sutilezas da lei civil os favorecem, os membros dessa família não se envergonham, sob o pretexto de alguma informalidade, de anular fraudulentamente o testamento para se livrarem da obrigação de fazer esses legados piedosos. Não é em vão que o autor da Imitação de Cristo nos aconselha a satisfazer os nossos pecados durante a nossa vida e a não depender demasiado dos nossos herdeiros, que muitas vezes negligenciam a execução das piedosas doações feitas por nós para o alívio das nossas pobres almas.

Para estas famílias - todo cuidado é pouco! É uma injustiça sacrílega combinada com uma crueldade atroz. Roubar a um pobre, diz o IV Concílio de Cartago, é como tornar-se o seu assassino (Egentium Necatores). Que diremos, pois, daqueles que roubam os mortos, que os privam injustamente dos seus sufrágios e os deixam sem assistência nos terríveis tormentos do Purgatório? Além disso, aqueles que se tornam culpados desse roubo infame são frequentemente punidos mais severamente por Deus, mesmo nesta vida. Às vezes, ficamos espantados ao ver uma fortuna considerável derreter-se, por assim dizer, nas mãos de certos herdeiros; uma espécie de maldição parece pairar sobre certas heranças. No dia do Juízo Final, quando o que agora está oculto se manifestar, veremos que a causa dessa ruína terá sido frequentemente a avareza e a injustiça dos herdeiros, que negligenciaram as obrigações impostas a eles em relação aos legados piedosos relativos à herança.

Aconteceu em Milão, diz o Padre Rossignoli, que uma magnífica propriedade, situada a pouca distância da cidade, foi completamente devastada pelo granizo, enquanto os campos vizinhos permaneceram ilesos. Este fenómeno atraiu a atenção e o espanto; fazia lembrar as pragas do Egito. O granizo devastou os campos dos egípcios e respeitou a terra de Gessen, habitada pelos filhos de Israel. Este foi considerado como um flagelo semelhante. O granizo misterioso não podia ter-se confinado exclusivamente aos limites de uma propriedade sem obedecer a uma causa inteligente. As pessoas não sabiam como explicar este fenômeno, quando a aparição de uma alma do Purgatório revelou que se tratava de um castigo infligido aos filhos ingratos e culpados, que tinham negligenciado a execução da última vontade do seu falecido pai relativamente a certas obras de piedade.

Sabemos que em todos os países e em todos os lugares, fala-se de casas assombradas, tornadas inabitáveis, com grande prejuízo para seus proprietários. Ora, se tentarmos descobrir a causa disso, geralmente descobriremos que uma alma esquecida por seus parentes volta para reclamar os sufrágios que lhe são devidos. Quer seja atribuído à credulidade, à excitação da imaginação, à alucinação, ou mesmo ao engano, permanecerá sempre um fato bem provado para ensinar aos herdeiros insensíveis como Deus castiga tal conduta injusta e sacrílega, mesmo nesta vida.

O seguinte evento, que foi relatado por Tomás de Cantimpre (Rossign., Merv., 15), demonstra claramente quão culpáveis são, aos olhos de Deus, os herdeiros que defraudam os mortos. Durante as guerras de Carlos Magno, um valente soldado tinha servido nos mais importantes e honrosos cargos. A sua vida era a de um verdadeiro cristão. Contente com o seu soldo, abstinha-se de qualquer ato de violência e o tumulto do campo nunca o impediu de cumprir os seus deveres essenciais, embora em assuntos de menor importância tivesse sido culpado de muitas pequenas faltas comuns aos homens da sua profissão. Tendo atingido uma idade muito avançada, adoeceu; e vendo que a sua última hora tinha chegado, chamou à sua cabeceira um sobrinho órfão, de quem tinha sido pai, e expressou-lhe os seus desejos de morte. 

'Meu filho' - disse ele - 'sabes que não tenho riquezas para te legar; só tenho as minhas armas e o meu cavalo. As minhas armas são para ti. Quanto ao meu cavalo, vende-o quando eu tiver entregue a minha alma a Deus, e reparte o dinheiro entre os padres e os pobres, para que os primeiros ofereçam o Santo Sacrifício por mim, e os outros me ajudem com as suas orações'. O sobrinho chorou e prometeu executar sem demora os últimos desejos do seu tio e benfeitor moribundo. O velho soldado morreu pouco depois, o sobrinho tomou posse das armas e levou o cavalo. Era um animal muito bonito e valioso. Em vez de o vender imediatamente, como tinha prometido ao seu falecido tio, começou por usá-lo em pequenas viagens e, como estava muito satisfeito com ele, não quis desfazer-se dele tão cedo. Adiou com o duplo pretexto de que não havia nada que obrigasse ao cumprimento imediato da sua promessa e que aguardaria uma ocasião favorável para obter um preço elevado por ele. Assim, adiando de dia para dia, de semana para semana e de mês para mês, acabou por abafar a voz da consciência e esqueceu a obrigação sagrada que havia assumido para com a alma do seu benfeitor.

Seis meses se passaram, quando, certa manhã, o falecido apareceu-lhe dirigindo-se a ele em termos de severa reprovação. 'Homem infeliz' - disse ele - 'esqueceste a alma do teu tio; violaste a promessa sagrada que fizeste no meu leito de morte. Onde estão as missas que deverias ter mandado rezar? Onde estão as esmolas que deveríeis ter distribuído aos pobres para o repouso da minha alma? Por causa da vossa negligência culpada, sofri tormentos inauditos no Purgatório. Finalmente, Deus teve piedade de mim; hoje vou gozar a companhia dos bem-aventurados no Céu. Mas tu, por um justo julgamento de Deus, morrerás dentro de poucos dias e serás submetido às mesmas torturas que me restariam suportar se Deus não tivesse tido misericórdia de mim. Sofrerás durante o mesmo tempo que eu deveria ter sofrido, depois do qual começarás então a expiação das tuas próprias faltas'.

Alguns dias depois, o sobrinho adoeceu gravemente. Chamou imediatamente um sacerdote, relatou-lhe a visão e confessou os seus pecados, chorando amargamente. 'Vou morrer em breve' - disse ele - 'e aceito a morte das mãos de Deus como um castigo que muito mereci'. Ele expirou em sentimentos de humilde arrependimento. Essa foi apenas a menor parte dos sofrimentos que lhe foram anunciados como punição por sua injustiça; trememos de horror ao pensar na parte restante que ele estava prestes a cumprir na outra vida.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.


quinta-feira, 16 de maio de 2024

POEMAS PARA REZAR (LIII)


CURA-ME SENHOR!

Cura-me Senhor
da minha miséria sem caridade
da minha pequenez sem remorsos
do meu vazio sem luz
do meu nada sem amor.

Cura-me Senhor
das andanças sem fim
das promessas não cumpridas
do meu voo sem asas
do viver por viver.

Cura-me Senhor
das chagas da vaidade
das lacerações dos sentidos
dos traumas do orgulho
das feridas do pecado.

Cura-me Senhor
da minha mente insensata
do meu coração endurecido
da minha imaginação febril
da minha alma vazia.

Cura-me Senhor
por buscar as coisas do mundo
por ansiar ter sempre mais
por lembrar tanto de mim
por esquecer tanto de Deus.

Cura-me Senhor
de tantas escolhas erradas
de tantos atalhos inúteis
de tanta palavra vã
de tanto tempo perdido.

Cura-me Senhor
da minha falta de paciência
da minha inconstância geral
das más obras que construí
das boas obras que não fiz.

Cura-me Senhor
da fome dos meus sentidos
da sede da minha intemperança
do grito dos meus prazeres
da nudez dos meus desvarios.

Cura-me Senhor
da dúvida em ocasiões sem fim
da indiferença de muitos dias
da incerteza de outros tempos
do torpor de tantas vezes. 

Cura-me Senhor
de não amar sem medida
de olvidar a justiça
de penhorar o socorro
de barganhar o perdão.

Cura-me Senhor
de rezar tão pouco
de tão pouco apostolado
de agradecer tão pouco
de tão pouco louvor e glória. 

Cura-me Senhor,
cura-me todo de mim
para que página em branco
seja inscrito no Livro da Vida
como uma imagem de Deus.

E, livre de tudo que sou,
todo livre de mim, 
seja como alma cativa
não sendo mais eu que viva
mas o Cristo vivendo em mim.

(Arcos de Pilares)

quarta-feira, 15 de maio de 2024

FRASES DE SENDARIUM (XXIX)

'Quanto mais humanos pudermos ser, mais divinos seremos'

(Santa Teresa de Lisieux)

São tuas ações e a tua prática cotidiana de vida cristã que podem permitir a acolhida do Semeador dentro de si para distribuir e lançar, na terra fértil e fecunda do teu coração humano, as sementes que hão de gerar abundantes frutos de vida eterna.

terça-feira, 14 de maio de 2024

SERMÕES DO CURA D'ARS (XIX)

SOBRE A NOSSA VOCAÇÃO DE TESTEMUNHAS DE CRISTO 

'Também vós dareis testemunho, porque estais comigo desde o princípio' 
(Jo 15,27)


Quando dois reinos estão em guerra um com o outro, é fácil distinguir os soldados de cada parte por meio de suas armas, seus uniformes e suas bandeiras. Desde o princípio do mundo, tem-se travado uma luta violenta entre o Rei do Céu e da Terra e o príncipe das trevas, sobre a qual deles deve pertencer a raça humana. Cristo, o Redentor, pela sua morte e ressurreição, ganhou a vitória sobre o inferno.

Antes de entrar gloriosamente no céu como vencedor, levando consigo as almas dos justos da antiga lei, como primogênitos da sua vitória, fundou a sua Igreja na terra como o seu reino, no qual deveríamos continuar a combater contra o inferno, e pelo seu poder deveríamos e poderíamos completar a vitória.

Por isso Ele diz aos Seus Apóstolos, os generais do seu reino: 'Vós dareis testemunho de mim', e a Sagrada Escritura diz deles: 'Com grande coragem os Apóstolos deram testemunho da ressurreição de Jesus Cristo, nosso Senhor' (At 4,33.) As palavras de Cristo aplicam-se também a nós. Todos nós somos obrigados a dar testemunho dEle, não por sermões e milagres, como fizeram os Apóstolos, mas pela nossa vida, pela imitação de Jesus; pois como todos nós nos tornamos membros do seu corpo, e recebemos de Cristo o nome de 'cristãos', somos obrigados a levar uma vida digna deste Chefe, não para trazer desgraça ao seu Santo Nome, mas para viver de tal forma que, na nossa vida, o cristão possa ser distinguido do não-cristão. Este é o nosso testemunho de Cristo. Vou agora falar sobre este assunto. No Cântico dos Cânticos, o divino Esposo diz à alma que o ama: 'Põe-me como um selo no teu coração, como um selo no teu braço' (Ct 8,6). Nós trazemos este selo de Cristo quando o imitamos:

I. Em nossa vontade
II. Em nossas palavras
III. Em nossas obras

I

1. Davi exprime a vontade de nosso Redentor nestas palavras que o Espírito Santo lhe permite pronunciar (Sl. xxxix. 8-9): 'No princípio do livro está escrito a meu respeito: fazer vossa vontade, meu Deus, é o que me agrada, porque vossa Lei está no íntimo de meu coração (Sl 39, 8-9). Mas Cristo diz de si mesmo (Jo. vi. 38): 'Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou' (Jo 6,38) e 'Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou' (Jo 4,34) e o Apóstolo exalta-o, dizendo: 'Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz' (Fp 2,8). Quando desceu da glória do céu para a terra, sacrificou-se à vontade de seu Pai. 'Tu queres, ó meu Deus' - disse Ele, por assim dizer, com completa resignação - 'que eu nasça num estábulo desolado; que derrame o meu sangue na circuncisão; que fuja diante de Herodes; que suporte os fardos e os problemas desta vida terrena durante trinta e três anos. Vós quereis que eu seja traído, desprezado, cuspido, esbofeteado nas faces e flagelado, coroado de espinhos, pregado na cruz e sofra a mais cruel das mortes. Meu Deus, eu também o quero. Estou pronto a sofrer estas e outras aflições ainda maiores'.

2. Agora, caro cristão, contempla e age de acordo com este modelo nas tuas disposições. Quando mil decepções te cercarem, dize também: 'Meu Deus, eu quero!' Quando a pobreza te aflige, quando a língua do caluniador te fere, quando os falsos amigos te enganam, quando a doença te visita, quando as dores corporais te atormentam, com paciência invencível imita Cristo e diz: 'Meu Deus, eu quero!' Deveis ter estas disposições, esta vontade; então a vida de Cristo é o vosso modelo e vós dais testemunho dEle.

3. Como agiste até agora? Examina-te a ti mesmo e reconhece como as tuas disposições têm sido muitas vezes diferentes daquelas do Senhor. Ah, quantas pessoas ambiciosas existem cujos pensamentos e ações são dirigidos para a aquisição de honra, reconhecimento, cargos e dignidades! Quantas pessoas avarentas que ponderam noite e dia sobre como aumentar o seu dinheiro! Quantos mundanos que pensam continuamente nos seus prazeres! Quantas almas vingativas que não esquecem as injúrias que sofreram! É isto dar testemunho de Cristo? Não fazem o mesmo os pagãos, que dão testemunho de Satanás?

II

1. De que tipo são as palavras de Jesus Cristo, nosso Senhor? Pedro disse uma vez: 'Tu tens palavras de vida eterna' (Jo 6,69), pois todas as suas palavras foram dirigidas para a honra de Deus, a extirpação do pecado, o crescimento da virtude e a salvação das almas. Consideremos isso nas sete últimas palavras sagradas que Ele proferiu da cruz, em meio à sua agonia de morte. Primeiro, orou ao Pai celestial: 'Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem' (Lc 23,34). Estas são palavras de misericórdia e reconciliação. Ao ladrão penitente, disse: 'Hoje estarás comigo no paraíso' (Lc 23,43)- palavras de abençoada promessa. Dirige estas palavras à sua Mãe Santíssima: 'Mulher, eis aí o teu filho!' e ao seu discípulo: 'Eis aí a tua mãe!' (Jo 19,26). Que palavras consoladoras! No momento do abandono, Ele clama, com inteira submissão e confiança em Deus: 'Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?' (Mt 37,46.) Seu desejo de sofrer ainda mais e no mais alto grau por causa de nossa salvação nos é provado por seu grito: 'Tenho sede' (Jo 19,28); 'Tudo está consumado' (Jo 19,30). Ele diz, cheio de alegria, que completou a nossa redenção, e recomenda a sua alma com resignação nas mãos do seu Pai: 'Nas tuas mãos entrego o meu espírito' (Lc 23,46.) Agora, queridos cristãos, olhai para este modelo e agi de acordo com as vossas palavras. Tudo o que falardes deve ser para a honra de Deus, e para a vossa própria salvação e a do vosso próximo. A palavra nos é dada, como diz um servo de Deus, para louvar a Deus, para a edificação do nosso próximo.

2. As tuas conversas têm sido desta natureza, amigo cristão? Ah, quão diferentes elas têm sido muitas vezes daquelas do Senhor! Se entrarmos nas casas e palácios dos ricos e poderosos, que conversa, que conversas estão em voga? Que palavras ouvimos nas salas de aula, nas assembleias dos líderes do povo? Nas ruas encontramos as indicações dos prazeres sensuais, nas lojas é a vaidade; em casa, nas oficinas, com demasiada frequência, infelizmente, apenas incredulidade e blasfêmia. Onde é que, nos nossos dias, não há um lugar em que as reputações não sejam destruídas, as calúnias, as blasfêmias, os juramentos e, sobretudo, onde as conversas impróprias não tenham encontrado um lugar? Mesmo a vida familiar já não é pura e, nos ouvidos das crianças inocentes, são lançadas palavras que envenenam as suas almas. Caros cristãos, será isto dar testemunho de Cristo? Não fazem o mesmo os pagãos, que dão testemunho de Satanás?

III

1. Consideremos, para concluir, as obras do Senhor. São Bernardo descreve-as assim: 'Sob o nome de Jesus, imagino para mim um homem humilde e manso de coração, bondoso, temperante, casto, misericordioso, em suma, distinto em todas as virtudes e santidades'. O próprio ensinamento de Nosso Senhor é testemunha de que Ele foi perfeito na prática de todas as obras que ensinou. Ele diz: 'Bem-aventurados os pobres de espírito' e, desde o seu nascimento no estábulo até à sua morte na cruz, Ele próprio foi o mais pobre, pois não tinha onde reclinar a cabeça. 'Bem-aventurados os mansos', diz Ele, e Ele não só perdoa o mal que lhe foi feito, mas recompensa-o com o mais rico dos benefícios. 'Bem-aventurados os aflitos' - Ele expiou os nossos pecados em todo o seu corpo e chorou sobre eles lágrimas de sangue. 'Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça' - mas o seu alimento era fazer a vontade de Seu Pai. 'Bem-aventurados os misericordiosos' - Ele amontoou boas ações sobre os seus inimigos. 'Bem-aventurados os pacificadores' - Ele imprimiu a paz entre Deus e o homem. 'Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça' - Ele suportou o ódio e a perseguição por causa dos seus ensinamentos até a morte.

2. Mas como é que realizamos as nossas obras? Não amais desordenadamente o vosso corpo e o vosso conforto, e não aderis tão obstinadamente às máximas do mundo que quase vos envergonhais de ser cristãos? Ou amas o pecado, deixas que os teus vícios se tornem hábitos, e até deixaste de lado qualquer sentimento de vergonha por isso, ou só pensas no que é terreno, e vives como o animal irracional, perseguindo constantemente os prazeres e a sensualidade. Infeliz cristão, é assim que se dá testemunho de Cristo? Não fazem o mesmo os pagãos, que dão testemunho de Satanás? Não é de admirar que os hereges e os incrédulos não se convertam quando vêem que os católicos e os cristãos são piores do que eles?

3. Portanto, meus caros cristãos, olhai e portai-vos segundo o modelo que vos é mostrado. É vosso dever imitar a doutrina e o exemplo do Redentor e praticar diligentemente a perfeição cristã. Deveis servir a Deus e refletir noite e dia sobre as suas leis; deveis crucificar vossa carne com seus desejos perversos; não deveis ser vencidos pela adversidade, nem deslumbrados pela felicidade. É vosso dever praticar de tal modo as virtudes cristãs que até os incrédulos as admirem e digam que não são capazes de chegar a tão alta perfeição. Se isto pudesse ser dito de todos os cristãos, certamente o mundo inteiro seria cristão em curto tempo!

Não demoreis, caros cristãos, a conformar a vossa vida à vida de Jesus Cristo, e a dar assim testemunho dEle. Ouvi como o Apóstolo vos exorta: 'Levemos sempre em nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo' (II Cor 4,10). Pela mortificação, deveis fazer da vossa vida uma cópia da vida de Jesus. Os vossos olhos não devem ser demasiado curiosos, nem a vossa boca sem pudor, nem os vossos desejos sensuais ingovernáveis, como o são os dos pagãos; a vossa conduta não deve corresponder à vida do rico glutão. Pelo contrário, todos os que virem o vosso exemplo e a vossaconduta possam reconhecer que sois, não só de nome, mas de fato e de verdade, um cristão, um seguidor do Crucificado e um herdeiro do Reino dos Céus. Amém.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

107 ANOS DE FÁTIMA

Fátima é o acontecimento sobrenatural mais extraordinário de Nossa Senhora e a mais profética das aparições modernas (que incluíram a visão do inferno, 'terceiro segredo', consagração aos Primeiros Cinco Sábados, orações ensinadas por Nossa Senhora às crianças, consagração da Rússiamilagre do sol e as aparições do Anjo de Portugal), constituindo a proclamação definitiva das mensagens prévias dadas pela Mãe de Deus em Lourdes e La Salette. Por Fátima, o mundo poderá chegar à plena restauração da fé e da vida em Deus, conformando o paraíso na terra. Por Fátima, a humanidade será redimida e salva, pelo triunfo do Coração Imaculado de Maria. Se os homens esquecerem as glórias de Maria em Fátima e os tesouros da graça, serão também esquecidos por Deus.

'por fim, o meu Imaculado Coração triunfará'


Ver Postagem Especial na Biblioteca Digital do Blog:

FÁTIMA EM 100 FATOS E FOTOS

domingo, 12 de maio de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Por entre aclamações Deus se elevou, o Senhor subiu ao toque da trombeta' (Sl 46)

Primeira Leitura (At 1,1-11) - Segunda Leitura (Ef 1,17-23) -  Evangelho (Mc 16,15-20)
 
  12/05/2024 - SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR

23. 'IDE E ANUNCIAI O EVANGELHO'


Antes de subir aos Céus, Jesus manifesta aos seus discípulos (de ontem e de sempre) as bases do verdadeiro apostolado cristão, a ser levado a todos os povos e nações: 'Ide pelo mundo inteiro e anunciai o Evangelho a toda criatura! Quem crer e for batizado será salvo. Quem não crer será condenado'. (Mc 16, 15 - 16). Ratificando as mensagens proféticas do Antigo Testamento, Nosso Senhor imprime diretamente no coração humano os sinais da fé sobrenatural e da esperança definitiva na Boa Nova do Evangelho, que nasce, se transcende e se propaga com a Igreja de Cristo na terra.

Antes de subir aos Céus, Jesus nos fez testemunhas da esperança. Pela ação de Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo, pela manifestação da 'Força do Alto', os apóstolos tornar-se-iam instrumentos da graça e da conversão de muitos povos e nações: 'recebereis o poder do Espírito Santo que descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra' (At 1,8). E os apóstolos assumiram de pronto a imensa tarefa a fazer, na missão a eles confiada por Jesus: 'Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam' (Mc 16, 20).

Na mesma certeza, somos continuadores dessa aliança de Deus com os homens, na missão de semear a Boa Nova do Evangelho nos terrenos áridos da humanidade pecadora para depois colher, a cem por um, os frutos da redenção nos campos eternos da glória. Como missionários da graça, 'Que ele abra o vosso coração à sua luz, para que saibais qual a esperança que o seu chamamento vos dá, qual a riqueza da glória que está na vossa herança com os santos' (Ef 1, 18). Neste propósito, nos anima e fortalece as divinas promessas da vitória antecipada da graça, na feliz espera de sermos partícipes de sua glória eterna.

Jesus se eleva diante dos seus discípulos e sobe para os Céus. Jesus vai primeiro porque é o Caminho que vai preparar, para cada um de nós, 'as muitas moradas da casa do Pai'. Na solenidade da Ascensão do Senhor, a Igreja comemora a glorificação final de Jesus Cristo na terra, como o Filho de Deus Vivo e, ao mesmo tempo, imprime na nossa alma o legado cristão que nos tornou, neste dia, testemunhas da esperança em Cristo e herdeiros da eternidade junto de Deus.

sábado, 11 de maio de 2024

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (II)


11. Não há santo, por mais santo e inocente que seja, que não se considere verdadeiramente o maior pecador do mundo. Basta que ele se conheça como homem para reconhecer que é suscetível de cometer todos os males de que o homem é capaz. Como homem, tenho na minha natureza corrupta uma propensão para todos os males; e, no que me diz respeito, sou perfeitamente capaz de cometer todos os tipos de pecado e, se não os cometo, é por uma graça especial de Deus que me preserva e os restringe.

Uma árvore não cai quando se dobra sob seu próprio peso e isso se atribui à força de sua sustentação; e, da mesma forma, se eu não caí em todo tipo de iniquidade, isso não deve ser atribuído à minha própria virtude inerente, mas apenas à graça divina que, por sua bondade, me sustentou. Portanto, como posso estimar-me mais do que outro, se somos todos iguais na fraqueza humana? 'Pois qual é a minha força?' [Jó 6,11]. Sou um filho de Adão como qualquer outro homem, nascido em pecado, inclinado ao pecado e sempre pronto a cair em pecado. Não preciso do demônio para me tentar a pecar; a minha própria concupiscência é uma tentação demasiado grande; e se Deus retirasse de mim a sua mão protetora e auxiliadora, sei que seria precipitado de mal a pior. 

Quando Santo Agostinho fazia o seu exame de consciência, nem sempre encontrava o suficiente para excitar dentro de si a tristeza e a contrição, pelo que se detinha nos pecados que poderia ou teria cometido, se não tivesse sido preservado deles pela infinita misericórdia de Deus; e entristecia-se e acusava-se a si próprio e implorava humildemente o perdão de Deus pela inclinação que tinha de cometer toda a espécie de pecados hediondos e ímpios. Nessa prática, encontra-se o exercício da verdadeira humildade.

12. Aconteceu muitas vezes que aqueles que eram mais perfeitos do que os outros caíram vergonhosamente, e isto depois de um longo período de boas e virtuosas obras, mostrando as fragilidades de que um homem é capaz ao se abandonar a si próprio e de se deixar levar pela fraqueza do seu livre arbítrio. Deus demonstrou a sua onipotência criadora, formando-me do nada e fazendo de mim um ser humano. Se Deus retirasse de mim a sua mão onipotente e protetora, eu mostraria imediatamente do que sou capaz quando abandonado a mim mesmo, voltando imediatamente ao meu nada. E, na ordem da graça, o nada em que me consumo quando abandonado a mim mesmo é o pecado. Quantas vezes 'sou levado ao nada, e não o sabia' [Sl 72,22]. E o que é que eu posso encontrar do que me orgulhar nesse nada?

13. Dai-me a graça, ó meu Deus, de me conhecer apenas o necessário para me manter humilde! Porque, se eu me apercebesse da insignificância do meu ser e da extensão da minha maldade, capaz de vos ofender de diversas maneiras inconcebíveis, receio que ficaria tão horrorizado comigo mesmo que me entregaria ao desespero! Temos dentro de nós, na nossa própria experiência e nos nossos sentimentos, o conhecimento de como a nossa natureza frágil e decaída está inclinada para o mal. Hoje vamos e confessamos algumas de nossas faltas, tomando a resolução de não cair nelas novamente, e amanhã, apesar disso, voltamos a cometê-las.

Num momento, decidimos adquirir uma determinada virtude e, no momento seguinte, fazemos exatamente o contrário, caindo no vício oposto. No momento em que tomamos essas resoluções de emenda, imaginamos que nossa vontade é firme e forte, mas logo percebemos quão fraca e não confiável ela é, pois nos comportamos como se nunca tivéssemos proposto correção alguma. O nosso coração é como uma cana que se dobra a qualquer vento ou como um barco agitado por qualquer onda. Basta encontrar uma ocasião de pecado, um movimento de paixão, um sopro de tentação, para que a vontade ceda ao mal, mesmo quando, em certos momentos de fervor, parecemos mais firmemente enraizados no bem. Esta é uma razão forte para sermos humildes e não presumirmos nada de nós próprios, rezando continuamente a Deus para que Ele se digne confirmar nos nossos corações aquilo que opera pela sua graça: 'Confirma, ó Deus, o que tens feito em nós' [Sl 67, 29].

Alguns mestres da vida espiritual ensinam que é melhor desviar os nossos pensamentos de certas ações heróicas, nas quais a nossa fraqueza poderia levar-nos a duvidar se devemos ou não ser bem sucedidos; por exemplo: se um perseguidor viesse intimar-me a renunciar à fé ou a morrer, como deveria agir? Ou se eu recebesse um terrível insulto público, deveria praticar a paciência ou o ressentimento? Não, dizem eles, não é bom se empenhar em tais imaginações, porque a nossa fraqueza pode fazer-nos cair diante da ideia de uma tal provação.

14. Mas, se tais pensamentos surgirem, podemos transformá-los em nosso bem e usar a nossa própria fraqueza para praticar a humildade. Quando essas ideias surgem, seria bom dizer: Sei o que devo fazer em tal ou tal ocasião, mas não sei até que ponto posso confiar em mim mesmo, porque sei, por experiência própria, que 'a minha força se enfraquece com a pobreza' [Sl 30, 11] e aprendi, em várias ocasiões, como a minha razão fica cega, o meu juízo enfraquece e a minha vontade se perverte facilmente para o mal. Ó meu Deus, tudo posso, se me fortalece o vosso auxílio; mas, sem isso, nada posso e nem poderei jamais! Se tivesse de confessar-vos, negar-vos-ia miseravelmente; se tivesse de honrar-vos com paciência, daria lugar à vingança; se tivesse de obedecer-vos, ofender-vos-ia com a desobediência: Vós sois um forte ajudante; quando a minha força falhar, não me abandonets' [Sl 70, 7.9]. A vossa palavra é bem verdadeira, ó meu Deus: 'Sem mim nada podeis fazer' [Jo 15,5]. Não só sem Vós não posso fazer nenhum ato meritório de virtude, mas também não posso fazer nada; como me ensina Santo Agostinho: 'Quer algo seja pequeno ou grande, não pode ser feito sem Aquele sem o qual nada pode ser feito' [Trat 31].

15. Uma bela maneira de pedir humildade a Deus foi a seguinte, usada por um grande santo. Senhor, dizia ele, nem sequer sei o que é a humildade, mas sei que não a possuo e que não posso obtê-la por mim mesmo; e que, se não a tiver, não me salvarei; portanto, só me resta pedi-la a Vós, mas dai-me a graça de a pedir como devo. Prometestes, meu Deus, conceder-me todas as coisas que Vos pedir e que são necessárias para a minha salvação eterna; e sendo a humildade a coisa mais necessária para mim, a fé obriga-me a acreditar que Vós a concedereis a mim, se eu vos souber pedi-la. Mas aqui reside a dificuldade, porque não sei vos pedir como devo. Ensinai-me e ajudai-me para que eu vos peça como V´s quereis que eu peça e da maneira eficaz com que Vós mesmo sabeis que serei ouvido. E como Vós  me ordenastes ser humilde, estou pronto a obedecer; mas faz com que, com a vossa ajuda, eu possa na verdade tornar-me tal como Vós o desejais. Desejo ardentemente ser humilde, e de onde me vem este amor e desejo de humildade senão de Vós, que o puseste no meu coração pela vossa santa graça? Por vossa bondade, concedei-me, pois, o que me fizestes amar e desejar tanto. Espero-o e continuarei nesta confiança: 'Fortalecei-me, Senhor Deus, para que, como prometeste, eu possa realizar o que propus, acreditando que por Vós possa ser feito' [Jt 13,7].

16. Podemos persuadir-nos de que possuímos várias virtudes, porque temos dentro de nós uma prova tangível de que realmente as possuímos. Assim, podemos julgar-nos castos, porque nos sentimos realmente atraídos pela castidade; ou podemos considerar-nos abstêmios, porque o somos por natureza; ou obedientes, porque praticamos uma obediência pronta. Mas, por mais que um homem exercite a humildade, nunca poderá formar um juízo sobre o fato de ser realmente humilde, pois aquele que se julga humilde na verdade já não o é.

Da mesma forma que reconhecer que se é orgulhoso é o começo da humildade, também se lisonjear de que se é humilde é o começo do orgulho e, quanto mais humildes nos julgamos, maior é o nosso orgulho. Essa autocomplacência que o coração sente, fazendo-nos imaginar que somos humildes em consequência de algumas reflexões agradáveis que tivemos a nosso respeito, é uma espécie de vaidade; e como pode existir vaidade com a humildade que se funda unicamente na verdade? A vaidade não é senão uma mentira, e é precisamente da mentira que nasce o orgulho. Roguemos a Deus como o profeta: 'Não me calque o pé do orgulhoso' [Sl 35, 12]. Concedei-me, ó meu Deus, que eu seja humilde, mas que não saiba que sou humilde. Faz-me santo, mas ignorante da santidade; porque se eu aprendesse a saber ou mesmo a imaginar-me santo, tornar-me-ia vaidoso; e pela vaidade, perderia toda a humildade e santidade.

 17. Do que acaba de ser exposto, é possível que surja uma dúvida tormentosa no espírito de alguém que diga: 'Se me julgo carente de humildade, devo concluir que estou perdido, e tal julgamento me levaria ao desespero'. Mas não percebeis o erro? Para falar com sabedoria, deveríeis dizer: 'Sei que me falta a humildade; portanto, devo procurar obtê-la, porque sem humildade sou um réprobo, e é necessário ser humilde para estar entre os eleitos'.

De fato, seria motivo de desespero se, por um lado, a humildade fosse necessária para a salvação e, por outro, fosse inatingível. Mas nada é mais natural para nós do que a humildade, porque somos atraídos para ela pela nossa própria miséria; e nada é mais fácil, pois basta abrirmos os olhos e conhecermo-nos a nós próprios; não é uma virtude que tenhamos de ir procurar longe, pois podemos sempre encontrá-la dentro de nós, e temos uma infinidade de boas razões para o fazer. No entanto, enquanto a vida durar, devemos esforçar-nos por adquirir a humildade, sem nunca imaginar que a adquirimos; e mesmo que a tenhamos obtido em certa medida, devemos continuar a esforçar-nos como se não a possuíssemos, a fim de a podermos conservar. Tenhamos um verdadeiro desejo de sermos humildes; não deixemos de implorar a Deus que nos dê a graça de sermos humildes; e estudemos frequentemente os motivos que podem ajudar a tornar-nos humildes de coração; e não duvidemos da bondade divina, mas conformemo-nos com os conselhos que nos são dados na Sagrada Escritura: 'Pensai no Senhor com bondade'  [Sb 1,1].

18. Embora sintamos profundamente uma humilhação quando somos insultados, perseguidos ou caluniados, isso não significa que não possamos sofrer tais provações com sentimentos de verdadeira humildade, submetendo a natureza à razão e à fé e sacrificando o ressentimento do nosso amor-próprio ao amor de Deus. Não somos feitos de pedra, de modo que precisemos ser insensíveis ou insensatos para sermos humildes. De alguns mártires, lemos que se contorciam sob seus tormentos; de outros, que se alegravam mais ou menos com eles, segundo o maior ou menor grau de unção que recebiam do Espírito Santo; e todos foram recompensados com a coroa da glória, pois não é a dor ou o sentimento que faz o mártir, mas o motivo sobrenatural da virtude. Do mesmo modo, algumas pessoas humildes sentem prazer em serem humilhadas, e outras sentem tristeza, especialmente quando sobrecarregadas com calúnias; e, no entanto, todas elas pertencem à esfera dos humildes, porque não é a humilhação nem o sofrimento por si só que torna a alma humilde, mas o ato interior pelo qual essa mesma humilhação é aceita e recebida por motivos de humildade cristã e especialmente pelo desejo de se assemelhar a Jesus Cristo que, embora com direito a todas as honras que o mundo lhe podia oferecer, suportou a humilhação e o desprezo para a glória do seu Pai eterno: 'Por amor de Vós, ó Deus de Israel, suportei o opróbrio'  [Sl 68,8].

A doutrina de São Bernardo é digna de nossa atenção: uma coisa é ser humilhado, e outra é ser humilde. Acontece muitas vezes que o orgulhoso é humilhado e, no entanto, continua orgulhoso, recebendo as humilhações com raiva e desprezo, fazendo tudo o que pode para escapar delas com impaciência. Acontece também, por vezes, que o orgulhoso se torna humilde; a humilhação ensina-o a conhecer-se tal como é e, com esse conhecimento, aprende a amar essa mesma humilhação: É humilde aquele que converte todas as suas humilhações em humildade e diz a Deus: 'É bom para mim que me tenhas humilhado' [D. Bern, serm. 34, in Cant.].

19. Na vida espiritual, não posso prometer nada a mim mesmo sem a ajuda especial de Deus; e é muito verdadeiro o ensinamento do Espírito Santo: 'quem poderá te socorrer?' [Os 13,9]. De um momento para outro posso cair em pecado mortal; consequentemente, mesmo que eu tenha trabalhado muitos anos na aquisição de virtudes, posso num instante perder todo o bem que fiz, perder todo o meu mérito para a eternidade e perder até a própria eternidade abençoada. Como pode um rei governar com arrogância, quando é cercado pelos seus inimigos e corre todo dia o risco de perder o seu reino e deixar de ser rei? E um santo não tem razões de sobra para, pensando na sua própria fraqueza, viver sempre num estado de grande humildade, quando sabe que de uma hora para outra pode perder a graça de Deus e o reino dos Céus que mereceu com anos de virtudes laboriosamente adquiridas? 'Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam' [Sl 126,1].

Por mais espiritual e santo que seja um homem, ele não pode considerar-se absolutamente seguro. Os próprios anjos, enriquecidos de santidade, não estavam seguros no Paraíso. O homem, dotado de inocência, não estava seguro no seu paraíso terrestre. Que segurança pode haver, portanto, para nós, com a nossa natureza corrupta, no meio de tantos perigos e tantos inimigos, que dentro e fora de nós procuram insidiosamente minar a nossa salvação eterna? Para ser eternamente condenado, basta que eu siga os ditames da natureza, mas para ser salvo é necessário que a graça divina me previna e acompanhe, me siga e ajude, me vigie e nunca me abandone. Como estava certo São Paulo ao exortar-nos a 'trabalhar pela nossa salvação'... 'que é para toda a eternidade'... 'com temor e tremor'! [Fp 2,12].

20. Estar contente e satisfeito consigo mesmo, levar uma vida tranquila e fácil, cumprindo apenas o que o dever prescreve, não é um bom sinal. Depois de termos feito tudo o que a nossa profissão cristã exige de nós, o Senhor quer, no entanto, que nos consideremos servos inúteis da sua Igreja: 'Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi mandado, dizei: Somos servos inúteis' [Lc 17,10]. Quanto mais inúteis nos devemos considerar, se vivemos na tibieza e na preguiça, que nos afastam da perfeição a que estamos obrigados!

Quando faço o meu exame de consciência, verifico se cumpro todos os meus deveres diante de Deus? Que virtude adquiri até agora? Pode-se dizer que adquirimos o hábito de tal ou qual virtude, quando passamos a praticá-la de boa vontade e com facilidade; mas, quando me examino, que virtude posso encontrar que habitualmente pratico com prazer e facilidade? Não encontro uma só. Sou um servo muito inútil na terra; e se eu fosse agora chamado perante o tribunal do meu Juiz eterno, temo muito que me seria dito: 'servo mau' [Mt 18,32] e não: 'muito bem, servo bom e fiel' [Mt 25, 21].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)


sexta-feira, 10 de maio de 2024

QUANDO O ESPÍRITO SANTO NÃO VEM...


Como é possível que muitas pessoas, depois de terem vivido quarenta ou cinquenta anos em estado de graça e recebido com frequência a Santa Comunhão, quase não dêem sinal da presença dos dons do Espírito Santo na sua conduta e nos seus atos, que se irritam por tudo e por nada e levam uma vida completamente longe do sobrenatural?

Tudo isto provém dos pecados veniais que com frequência cometem sem nenhuma preocupação; estas faltas e as inclinações que daí derivam tornam estas almas inclinadas à terra e mantêm como que atados os dons do Espírito Santo, como asas que não se podem abrir.

Tais almas não guardam nenhum recolhimento; nem estão atentas às inspirações do Espírito Santo, que passam inadvertidas; por isso permanecem na escuridão, não das coisas sobrenaturais e da vida íntima de Deus, mas na escuridão inferior que se enraíza na matéria, nas paixões desordenadas, no pecado e no erro; aí está a explicação de sua inércia espiritual.

A estas almas se dirigem as palavras do salmista: Hodie si vocem eius audieritis, nolite obdurare corda vestra - 'Hoje se ouvirdes a sua voz, não fecheis os vossos corações' (Sl 94,7-8).

(Excertos da obra 'Las Tres Idades de La Vida Interior', do Pe. Reginald Garrigou-Lagrange)

quinta-feira, 9 de maio de 2024

ORAÇÃO DO AMOR A DEUS DE TODA ALMA E MENTE


Ó Senhor, não me priveis de vossos abençoados dons celestiais.
Ó Senhor, defendei-me e livrai-me dos tormentos eternos.
Ó Senhor, se eu pequei com minha mente, com meus pensamentos, com minhas palavras ou minhas ações, perdoai-me e curai a minha alma.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, livrai-me da ignorância, esquecimento, da covardia e do tédio.
Ó Senhor, não me deixeis cair e me livreis de toda tentação.
Ó Senhor, iluminai o meu coração obscurecido pelos desejos do maligno.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, como homem que sou, pequei, mas Vós, como Deus amado e benevolente, tende piedade da minha alma, vendo as fraquezas do meu coração.
Ó Senhor, enviai a vossa misericórdia em meu auxílio, para que eu possa glorificar vosso Santo Nome.
Ó Senhor Jesus Cristo, inscrevei-me como vosso servo no Livro da Vida e concedei-me uma morte em paz.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó, meu Deus! Embora eu não tenha feito nada de bom, estendei vossa mão, auxiliai-me com a vossa graça para começar a fazer todo o bem.
Ó Senhor, cobri o meu coração fraco com o orvalho do vosso amor.
Ó Senhor do céu e da terra, lembrai-vos de mim, vosso servo pecador, impuro e frio de coração, em vosso reino.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, aceitai meu sincero arrependimento.
Ó Senhor, pelo bem da minha alma, não me abandoneis.
Ó Senhor, guardai-me apartado das tentações.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, concedei-me pensamentos nobres e puros.
Ó Senhor, concedei-me as lágrimas do arrependimento, a memória da morte e a sensação de paz.
Ó Senhor, concedei-me humildade, caridade e obediência para agir em vosso Santo Nome.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, concedei-me a confissão e o perdão dos meus pecados.
Ó Senhor, concedei-me paciência, magnanimidade e doçura.
Ó Senhor, tornai-me a fonte de todas as vossas bênçãos e inspirai vosso santo temor em meu coração.
Ó Senhor, concedei-me amar-vos com toda a minha alma e mente.

Ó Senhor, concedei que eu possa vos amar com todo o meu coração e toda a minha alma, e que eu sempre obedeça vossa palavra.
Ó Senhor, protegei-me dos provocadores, dos demônios, das paixões corporais e de tudo o que não leva a Vós.
Ó Senhor, eu sei que agis como desejais; assim, que seja feito em mim, pecador, a vossa vontade, porque Abençoado sois para todo o sempre. 
Amém.

(São João Crisóstomo)

quarta-feira, 8 de maio de 2024

VERSUS: A GRANDE TRIBULAÇÃO

Eis os tempos da grande tribulação, em que somos, mais do nunca, chamados para a provação. Uma provação que tem os contornos da própria humanidade e afeta a todos sem distinção, bons e maus, justos e ímpios. Quem haverá de perseverar até o fim em tempos tão tremendos? Quem permanecerá firme na justiça e no temor de Deus? Quem será capaz de seguir sem vacilar a sã doutrina e os ensinamentos de Jesus Cristo? Quem permanecerá de joelhos diante da Cruz sem se embebedar do esgoto do mundo cão? Quem? Quantos? 

(inundação devastadora no RS/Brasil)

'Feliz o homem que suporta a tentação. Porque, depois de sofrer a provação, receberá a coroa da vida que Deus prometeu aos que o amam' (Rm 8,18)


(show de Madonna no RJ/Brasil)

'Mortificai, pois, os vossos membros no que têm de terreno: a devassidão, a impureza, as paixões, os maus desejos, a cobiça, que é uma idolatria. Dessas coisas provém a ira de Deus sobre os descrentes (Cl 3,5-6)

terça-feira, 7 de maio de 2024

TESOURO DE EXEMPLOS (326/330)

 

326. DOIS ANÉIS

Santo Edmundo de Cantuária, ao terminar seus estudos, consultou sobre a sua vocação a um doutor da Universidade de Oxford, célebre por sua ciência e piedade. Este, conhecedor da virtude de seu discípulo, aconselhou-o a consagrar-se a Deus com o voto de castidade perpétua. Edmundo mandou então confeccionar dois anéis, gravando nêles as palavras: 'Ave Maria'; em seguida, diante da imagem de Maria pronunciou o seu voto e, tomando os anéis, colocou um no dedo da estátua da Virgem e outro em seu dedo, manifestando que não queria outra esposa senão Maria Santíssima. Toda a sua vida conservou o anel como lembrança do seu juramento.

327. TERRÍVEL TESTAMENTO

Uma jovem, pouco antes de morrer, escreveu: 'Tenho 18 anos; sou a criatura mais desgraçada e, por isso, vou morrer. Aos 15 anos eu era inocente. Maldito o dia em que meu tio me abriu a biblioteca e me disse: 'Leia!' Melhor fôra que, dando-me um punhal, me dissesse: 'Mate-se!' Eu não teria percorrido o caminho da desgraça'.

328. TERRÍVEL CASTIGO

O imperador Leão IV retirou da catedral de Constantinopla uma coroa de ouro adornada com brilhantes que o imperador Heráclito dera àquela igreja. Apenas a pôs na cabeça, cobriu-se de pústulas e chagas repugnantes. Três dias depois morria no meio de atrozes sofrimentos, recebendo assim o castigo de seu roubo sacrílego.

329. UMA COROA DE OURO E DIAMANTES

Na igreja de Poli, próxima de Roma, venera-se uma imagem maravilhosa de Nossa Senhora. Possui muitas jóias e uma coroa de ouro e diamantes que custou 25 mil liras e que foi doada pelo papa Pio IX. Um ladrão entrou, na noite de 23 de dezembro de 1911, para roubar as jóias e as pedras preciosas. Para conseguir o seu intento sacrílego, subiu ao pedestal da imagem, o qual cedeu e caíram ambos pesadamente ao solo, ficando o ladrão sacrílego esmagado pela estátua. Encontraram-no morto na manhã seguinte.

330. ACHO-O ENCANTADOR

Duas damas num teatro assistiram à atuação de um afamado ator. Uma delas disse à outra:
➖ Não sei como podem aplaudir tanto esse homem repugnante. Não acho graça no seu modo de trajar.
➖ Eu, ao contrário, acho-o encantador - respondeu a outra.
➖ Será possível?
➖ Certamente, porque é meu marido.
A primeira corou de vergonha e não se atreveu a dizer nem uma palavra a mais.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

segunda-feira, 6 de maio de 2024

DO AMOR ÀS ALMAS AO ÓDIO À HERESIA

Amemos as almas por amor de Jesus e não Jesus por amor das almas. Há ocasiões nas quais temos de passar deste instinto de amor divino para um outro, do amor às almas ao ódio à heresia. Este último sentimento ofende o mundo de modo particular, pois é tão contrário ao espírito do mundo que, mesmo no coração do bom fiel, o pouco de mundano que ele ainda conserva se levanta contra o ódio da heresia.

É um fermento que irrita mesmo os temperamentos mais doces. Muitos convertidos, com os quais Deus queria fazer grandes coisas, caminham para o túmulo como um 'aborto espiritual', visto que não quiseram odiar a heresia. O coração que hesita em odiar a heresia ainda não se converteu. Nele Deus ainda não reina com uma soberania indivisa, e os caminhos que levam à mais elevada santidade estão fechados àquele coração. Conforme o parecer do mundo e dos cristãos mundanos, o ódio à heresia é exagero, aspereza, indiscrição, está fora de moda, absurdo, retrógrado, estreito, estúpido, imoral. Que podemos dizer em sua defesa? Nada que esses possam compreender! O melhor que podemos fazer, portanto, é calar-nos.

Se entendemos a Deus e Ele nos compreende, não é assim tão difícil percorrer a estrada, suspeitos, incompreendidos e até odiados. A opinião adocicada de certa gente boa, sem discernimento espiritual, adota a opinião do mundo e condena-nos, porque a bondade tímida tem uma segurança e uma aparência de doçura que estão longe de Deus e os seus instintos de caridade inclinam-se de preferência para aqueles que são menos corajosos por Deus, enquanto que a sua timidez é bastante ousada para censurar sem piedade.

Não se pode, se se está na plena posse das próprias faculdades, pôr-se a demonstrar ao mundo, a este inimigo de Deus, que um ódio completo e católico da heresia é próprio de um espírito reto. Poderíamos, porventura, obrigar um cego a escolher entre diversas cores? O amor divino põe-nos num outro nível de vida, de motivos, de princípios que não apenas não são deste mundo, mas inimigos jurados dele.

(Excerto da obra 'Ao Pé da Cruz', do Pe. Frederick William Faber)

domingo, 5 de maio de 2024

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Senhor fez conhecer a salvação 
e revelou sua justiça às nações' (Sl 97)

Primeira Leitura (At 10,25-26.34-35.44-48) - Segunda Leitura (1Jo 4,7-10) -  Evangelho (Jo 15,9-17)
 
  05/05/2024 - SEXTO DOMINGO DA PÁSCOA

23. 'PERMANECEI NO MEU AMOR' 


Neste Sexto Domingo da Páscoa, somos chamados a vivenciar em plenitude o amor de Deus. Jesus encontra-se no Cenáculo, pouco antes de sua ida até o Horto das Oliveiras e da sua prisão e morte na cruz. E acaba de revelar aos seus discípulos amados, mais uma vez, a identidade do amor divino entre o Pai e o Filho: 'Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor' (Jo 15, 9). 'Permanecei no meu amor'; sim, porque o Amor precisa ser amado e é na reciprocidade deste amor que procede do Pai e do Filho, por intermédio do Espírito Santo, que se vive em plenitude a graça de sermos Filhos de Deus. E a posse dessa graça suprema se dá no despojamento do eu e na estrita observância aos mandamentos do Senhor: 'Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor' (Jo 15, 10).

O maior tributo da graça divina é o mandamento do amor. 'Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei' (Jo 15, 12). Sim, como Cristo nos amou. Na nossa impossibilidade humana de amar como Cristo nos ama, isso significa amar sem rodeios, amar sem vanglória, amar sem zelos de gratidão, amar de forma despojada e sincera aos que nos amam e aos que não nos amam, a quem não conhecemos, a quem apenas tangenciamos por um momento na vida, a todos os homem criados pelos desígnios imensuráveis do intelecto divino, à sombra e imersos na dimensão do infinito amor de Cristo por nós.

Ainda que na nossa proposição distorcida e acanhada do amor divino, o amor humano se projeta a alturas inimagináveis de santificação, quando expressa a sua identificação de forma incisiva no projeto de redenção de Cristo: 'Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos' (Jo 15, 13). Eis aí a essência do novo mandamento: amar, com igual despojamento, toda a dimensão da humanidade pecadora, a exemplo de um Deus que se entregou à morte de cruz para nos redimir da morte e mostrar que o verdadeiro amor não tem limites nem medida alguma.

O mandamento do amor é fundamentado num conceito inteiramente novo, cujo significado vai muito além dos sentimentos efêmeros deste mundo e que exclui quaisquer padrões de interesses desordenados e subterfúgios: a amizade sincera com Jesus. Neste amor, já não somos servos, mas amigos do Senhor e co-participantes de sua glória, escolhidos desde toda a eternidade: 'Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai. Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça' (Jo 15, 15 - 16). Eis o princípio fundamental do mandamento do amor: amar ao próximo como se ama a Cristo, e sermos frutos de salvação para muitos e arrastar conosco almas, muitas almas, às moradas eternas do Pai, como instrumentos silentes e perfeitos do puro amor de Deus.

sábado, 4 de maio de 2024

O DOGMA DO PURGATÓRIO (LXXX)

 

Capítulo LXXX

Razões e Exemplos para a Devoção às Santas Almas - São Pedro Damião e o seu Pai - O Exemplo da Jovem Anamita - O Velho Porteiro de um Seminário e a Propagação da Fé

Os exemplos de uma generosa caridade para com os defuntos não são raros, e é sempre útil recordá-los. Não podemos deixar de mencionar o belo e comovente exemplo de São Pedro Damião, bispo de Óstia, cardeal e doutor da Igreja, um exemplo que nunca se cansa de repetir. Ainda jovem, Pedro teve a infelicidade de perder a sua mãe e, pouco depois, o seu pai casou-se de novo, ficando ele entregue aos cuidados de uma madrasta. Apesar de ter demonstrado todo o afeto possível por ela, esta mulher era incapaz de retribuir o amor deste querido filho; tratou-o com uma severidade bárbara e, para se livrar dele, mandou-o para junto do irmão mais velho, que o empregou a tratar dos porcos. 

O pai, que deveria tê-lo protegido, abandonou-o à sua infeliz sorte. Mas o menino ergueu os olhos para o Céu, onde viu outro Pai, em quem depositava toda a sua confiança. Aceitou tudo o que acontecia como vindo das suas mãos divinas, e resignou-se às dificuldades da sua situação. 'Deus' - disse ele - 'tem os seus desígnios em tudo o que faz, e são desígnios de misericórdia; temos apenas que nos abandonar em suas mãos e Ele dirigirá todas as coisas para o nosso bem'. Pedro não se deixou enganar; foi nesta dolorosa provação que o futuro Cardeal da Igreja, aquele que iria surpreender a sua época pela extensão da sua erudição e que edificaria o mundo com o brilho das suas virtudes, lançou as bases da sua futura santidade. Mal coberto de trapos, o seu biógrafo conta-nos que nem sempre tinha o suficiente nem para aplacar a sua fome, mas rezava confiante  a Deus e aceitava tudo isso.

Entretanto, aconteceu que o seu pai morreu. O jovem santo esqueceu a dureza com que tinha sido tratado e, como um bom filho, rezava continuamente pelo descanso da alma do pai. Um dia, encontrou na estrada uma peça de ouro, que a Providência parecia ter colocado ali para ele. Era uma grande fortuna para o pobre menino. Mas, em vez de a usar para aliviar a sua própria miséria, o seu primeiro pensamento foi levá-la a um sacerdote e pedir-lhe que celebrasse o Santo Sacrifício da Missa pela alma do seu falecido pai. A Santa Igreja considera este sinal de devoção filial tão tocante que o inseriu por inteiro no Ofício da festa deste santo.

'Permitam-me' - dizia o missionário Padre Louvet - 'acrescentar mais um fato da minha experiência pessoal. Quando eu pregava a fé em Cochinchina, uma pobre menina anamita, que acabava de ser batizada, perdeu a mãe. Aos quatorze anos, viu-se obrigada a prover ao seu sustento e ao dos seus dois irmãos mais novos com os seus parcos rendimentos, que mal chegavam a sete cêntimos [do franco] por dia. Qual não foi a minha surpresa quando, no fim da semana, a vi trazer-me o ganho de dois dias, para que eu rezasse uma missa pelo repouso da alma da sua querida mãe. Aquelas pobres pequeninas tinham jejuado durante uma parte da semana para conseguir este humilde sufrágio para a sua falecida mãe. Ó santa esmola dos pobres e dos órfãos! Se o meu próprio coração foi tão profundamente tocado por ela, quanto mais o coração do nosso Pai Celestial, e que bênçãos ela terá trazido para aquela mãe e para os seus filhos!

Eis aí a generosidade dos pobres! Que exemplo e reprovação para tantos ricos, extravagantes no luxo e nos prazeres, mas avarentos quando se trata de dar uma esmola para mandar celebrar missas pelos seus parentes defuntos. Embora, antes de todas as outras intenções, incluindo a de se dedicar uma parte das esmolas para mandar celebrar missas pelas suas próprias almas ou pelas almas dos seus parentes e amigos, é conveniente empregar uma parte para o alívio dos pobres, ou para outras boas obras, como em benefício das escolas católicas, serviços de pregação da sã doutrina e outros fins, segundo as circunstâncias. Esta é uma santa liberalidade, conforme ao espírito da Igreja, e muito proveitosa para as almas do Purgatório'.

O Abade Louvet, de cuja obra destacamos o texto acima, relata um outro evento que serve para ser mencionado aqui. Trata-se de um homem de condição humilde que fez um sacrifício generoso em favor da Propagação da Fé, mas em circunstâncias que tornaram esse ato particularmente valioso para as necessidades futuras de sua alma no Purgatório. Um pobre porteiro de um seminário, durante a sua longa vida, tinha juntado, centavo a centavo, a soma de oitocentos francos. Não tendo família, destinou essa soma à celebração de missas após a sua morte. 

Mas o que é que a caridade não pode fazer, quando faz inflamar um coração com o seu fogo sagrado? Um jovem padre estava prestes a deixar o seminário para partir para as missões estrangeiras. O velho sentiu-se inspirado a entregar-lhe o seu pequeno tesouro para a bela obra da Propagação da Fé. Deu o dinheiro ao missionário e disse a ele: 'Caro senhor, peço-lhe que aceite esta pequena esmola para o ajudar na obra da difusão do Evangelho. Guardei-a para mandar rezar missas depois da minha morte, mas prefiro ficar um pouco mais no Purgatório para que o nome do bom Deus seja glorificado'. O jovem padre comoveu-se até às lágrimas. Não quis aceitar a oferta demasiado generosa do pobre homem, mas este insistiu com tanta veemência que não teve coragem de o recusar.

Poucos meses depois, o bom velho morreu. Nenhuma aparição revelou o seu destino no outro mundo. Mas será que ele está necessitado? Não sabemos que o Coração de Jesus não pode deixar-se ultrapassar em generosidade? Não compreendemos que um homem que foi suficientemente generoso para se entregar às chamas do Purgatório, a fim de que Jesus Cristo fosse dado a conhecer às nações infiéis, não terá certamente encontrado abundante misericórdia perante o Soberano Juiz?

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.