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domingo, 2 de novembro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

'O Senhor é o pastor que me conduz, não me falta coisa alguma' (Sl 23)

Primeira Leitura (Jó 19,1.23-27) - Segunda Leitura (1Cor 15,20-24.25-28) - Evangelho (Lc 12,35-40)

  02/11/2025 - COMEMORAÇÃO DOS FIEIS DEFUNTOS

COM RINS CINGIDOS E AS LÂMPADAS ACESAS


No evangelho da missa deste domingo, a Igreja nos recorda que celebramos neste dia a vida e não a morte: 'Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais' (Jo 11,25 - 26). Embora peregrinos do Céu mergulhados nas penumbras da fé e nas vertigens das realidades humanas, vivemos na certeza de que, como Filhos de Deus e co-herdeiros de Cristo, somos peregrinos rumo ao Céu, na confiança absoluta de que seremos possuidores eternos da Plena Visão: 'Eu sei que o meu redentor está vivo e que, por último, se levantará sobre o pó; e depois que tiverem destruído esta minha pele, na minha carne, verei a Deus. Eu mesmo o verei, meus olhos o contemplarão, e não os olhos de outros (Jó 19,25 - 27).

As leituras do Evangelho de hoje podem variar bastante, contemplando textos de diferentes evangelistas. Tomando São Lucas como referência, o Evangelho nos recorda a necessidade da estrita vigilância diante a chegada do Senhor: 'Felizes os empregados que o senhor encontrar acordados quando chegar' (Lc 12,37) e ainda 'Ficai preparados! Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que menos o esperardes' (Lc 12,40). E, felizes de nós que tivermos os 'rins cingidos e as lâmpadas acesas' (Lc 12,35) porque seremos então, por inteiro, a Santa Igreja de Deus, o Corpo Místico de Cristo: nem mais peregrinos e nem mais sujeitos à Santa Justiça, mas tornados eleitos do Pai e herdeiros da Glória de Deus.

Nas leituras de São Mateus, por outro lado, o Evangelho nos conforta na certeza absoluta do que nos espera nesta Glória Celeste, vivendo a felicidade perfeita, e indescritível sob o ponto de vista das palavras e pensamentos humanos. Jesus nos fala dessa realidade transcendente na comunhão dos santos e na unidade da família de Deus: 'Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus' (Mt 5,12). Em contraponto à fidelidade e à fé dos que almejaram ser santos, Deus os recompensará com limites insondáveis de graça, pelas chamadas bem-aventuranças de Deus (Mt 5,3 -12).

Bem-aventurados os pobres de espírito, os simples de coração. Bem-aventurados os aflitos que anseiam por consolação. Bem-aventurados os mansos que se espelham no Coração de Jesus. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça. Bem-aventurados os misericordiosos, filhos prediletos da caridade. Bem-aventurados os puros de coração, transformados em novas manjedouras do Sagrado Coração de Jesus. Bem-aventurados os que promovem a paz e os que são perseguidos por causa da justiça. E bem-aventurados os que foram injuriados e perseguidos em nome da Cruz, do Calvário, dos Evangelhos e de Jesus Cristo porque serão os santos dos santos de Deus!

terça-feira, 28 de outubro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLIII/Final)

 

149. A vaidade consiste em um apetite desmedido por elogios e no desejo de que nossos méritos brilhem com glória, e essa glória pode ser considerada vaidosa e perversa de três maneiras diferentes.

Primeiro, quando buscamos ser elogiados por uma virtude ou qualquer outro dom do corpo ou da alma que não possuímos, ou então por alguma posse frágil e transitória que não é digna de elogios, como saúde, beleza e outros dons do corpo, riquezas, pompa e outros bens que são chamados de dons da fortuna. Segundo, quando, ao buscar elogios, valorizamos a estima e a aprovação de alguém cujo julgamento não é confiável. Em terceiro lugar, quando não usamos esse elogio para a honra de Deus ou para o bem do próximo, e isso é sempre pecar contra os ditames da Sagrada Escritura: 'Não nos tornemos desejosos de vaidade' [Fl 2,3] e pode ser um pecado mortal quando buscamos ser elogiados por algum mal que fizemos ou temos a intenção de fazer, ou por algum outro mal que nunca fizemos e não pensamos em fazer, ou ainda aceitar elogios por um bem que não fizemos e que queremos que os outros acreditem que fizemos; também pode ser um pecado mortal se fizermos o bem apenas por respeito humano, com a intenção de sermos vistos e elogiados.

Em resumo, este é sempre um pecado muito perigoso, não tanto por sua gravidade, mas por suas graves consequências e porque impede a alma de receber a ajuda da graça e a dispõe a vários pecados mortais: 'Diz-se que a vaidade é um pecado perigoso, não tanto por causa de sua gravidade, mas porque é uma disposição para pecados graves, na medida em que gradualmente dispõe o homem à perda de todo o bem interior' [D.Th. 2a 2æ,qu. cxxxii, art. 3].

Aquele que sofre de vaidade corre o risco de perder também a sua fé, de acordo com as palavras de Cristo: 'Como podeis crer, vós que recebeis a glória uns dos outros, e não buscais a glória que é só de Deus?' [Jo 5,44]. Santo Agostinho, refletindo sobre isto e sobre o quão pouco se conhece este grande mal, afirma que ninguém é mais sábio do que aquele que sabe que este amor pelo louvor é um vício: 'Vê melhor aquele que vê que o amor pelo louvor é um vício' [Lib. 5, De Civ. Dei., cap. xiii ]; ver também São Tomás [2a 2æ, qu. xxi, art. 4; et qu cccv, art. 1; et qu. cxxxi, per tot.; et qu. clxxviii, art. 2].

150. A vaidade é um vício pelo qual o homem, desejando ser supremamente honrado acima de todos os outros, começa a elogiar e exaltar a si mesmo, exagerando e ampliando as coisas de modo a fazer com que seu próprio mérito pareça maior do que é. Também é chamada de ostentação, autoelogio ou atrevimento; e Santo Agostinho a chama de 'a pior de todas as pragas' [Lib. 1 De Ord. cap. xi] e Santo Ambrósio a chama de rede lançada pelo diabo para capturar os mais fortes e espirituais: 'O diabo lança armadilhas que prendem os mais fortes' [Lib. in Luc.]. Este é um vício que não tem medida porque, ao nos vangloriarmos do que não temos, mentimos à nossa própria consciência e a Deus; e como Deus disse de Moab pelo profeta: 'Conheço-lhe a presunção – oráculo do Senhor – a jactância e a vaidade' [Jr 48,30].

Pode ser um pecado mortal quando nos gabamos de algum pecado que cometemos; quando nos elogiamos, desprezando os outros; ou ainda quando nos elogiamos e exaltamos por meio de um excesso de orgulho que nos inunda o coração. O Doutor Angélico observa que este é um caso comum e não raro, e que o hábito é facilmente formado [2a 2æ, qu. lxii, art. 1. Ver também 2a 2æ, qu. cx, art. 2; qu. cxii, art. 1; et qu. cxxxii, art. 5 ad 1; et qu. clxii, art. 4 ad 2].

151. A hipocrisia é um vício pelo qual fingimos demonstrar externamente uma virtude e uma santidade que não possuímos; e é realmente hipócrita aquele que, estando cheio de maldade por dentro, finge ser bom na sua aparência exterior.

Não há vício contra o qual Jesus Cristo tenha protestado tanto em seu Evangelho quanto contra este [Mt 6, Mt 7, Mt 15, Mt 21], condenando-o com oito gritos de 'Ai de vós', que são oito maldições. E São Gregório observa que os hipócritas, cegos pelo orgulho e endurecidos em seus pecados, geralmente morrem impenitentes, sem nunca terem sido iluminados, por uma razão que talvez tenha sido tirada de São Pedro Crisólogo, porque, embora possamos ver que os remédios para a correção de outros vícios fazem bem, a doença da hipocrisia é tão pestilenta que afeta os próprios remédios, de modo que eles só servem para fomentar e aumentar o mal. 'Irmãos' - diz o santo - 'essa pestilência deve ser evitada, pois transforma remédios em doenças, medicamentos em enfermidades, santidade em vício, piedade em pecado'.

A hipocrisia é sempre um pecado mortal quando fingimos ser espirituais e santos e tentamos parecer assim, quando não o somos no coração, preocupando-nos mais com a opinião dos homens do que com a opinião de Deus; e é ainda pior quando afetamos santidade para promover nosso próprio avanço e adquirir crédito para alcançar e praticar o mal; ou então para obter alguma honra ou outro bem temporal.

Dessa forma, também pecamos gravemente por hipocrisia quando nos mostramos muito escrupulosos com obras ou com certas observâncias minuciosas, sem temer, ao mesmo tempo, transgredir os deveres essenciais da religião e do nosso próprio estado de vida, 'tendo abandonado as coisas mais importantes da lei', como aqueles escribas e fariseus que Cristo repreendeu, dizendo que 'filtram um mosquito e engolem um camelo' [Mt 23, 24]. Também quando, em todas as funções relacionadas com o serviço de Deus, fingimos ter uma intenção pura quando não a temos: 'E procuramos agradar não a Deus, mas aos homens; não a conversão, mas o favor do povo' [D. Th. 2a 2æ, qu. lxi, art. 2].

Os Padres da Igreja geralmente chamam a hipocrisia de perversidade, iniquidade, impiedade; e é fácil não apenas cair nesse pecado, mas também acostumar-se tanto a ele que nos leva ao ateísmo. Muitas vezes começamos servindo a Deus com um certo grau de fervor sagrado, mas quando este diminui, deixamos de servir a Deus e apenas fingimos servi-lo para manter as aparências: 'Ai de vós, hipócritas!' [São Tomás, 2a 2æ, qu. xi, per tot.].

152. A desobediência é um pecado pelo qual violamos a ordem de nossos superiores, tratando-os com desprezo, e pode ser um pecado mortal mesmo em pequenas coisas; porque, como diz São Bernardo, não devemos considerar a natureza da coisa ordenada nem a simples transgressão do preceito, mas o orgulho da vontade que não se submete quando deveria: 'Não é a simples transgressão do desejo, mas a contenda orgulhosa da vontade que cria a desobediência criminosa' [Lib. de Præcept et Dispens., cap xi] e a gravidade do pecado pode ser julgada sob três aspectos diferentes.

Primeiro, a posição do superior, porque quanto mais elevada for a posição de quem ordena, mais grave é a desobediência. É um pecado maior desobedecer a Deus do que desobedecer ao homem, um pecado maior desobedecer ao papa do que a um bispo, ou a um pai e a uma mãe do que a outros parentes; e é também um pecado maior desobedecer com desprezo pela pessoa que ordena do que apenas com desprezo pelo mandamento.

Em segundo lugar, em relação à natureza das coisas ordenadas, porque quando estas são de maior importância, especialmente nas leis de Deus, a desobediência é maior; portanto, é um pecado mais grave desobedecer aos preceitos que impõem o amor a Deus do que aqueles que nos ordenam amar o próximo.

Em terceiro lugar, no que diz respeito à forma da ordem, pela qual o superior expressa sua intenção de que deseja ser obedecido em tal ou tal assunto, mas é principalmente o orgulho que agrava a desobediência, pois a vontade se recusa a se submeter como deveria à lei divina [São Tomás, 2a 2æ, qu. lxix, art. 1; et qu. cv per tot.].

153. A discórdia é uma discrepância da vontade que a impede de se conformar à vontade de Deus em assuntos em que deveria se conformar para a glória de Deus e o bem do próximo; e é um pecado grave, porque São Paulo os inclui entre os pecados que excluem aqueles que os cometem do reino dos Céus [Gl 5,20]. E Deus declara seu ódio e repulsa por todos aqueles que disseminam discórdia entre seus pares [Pv 6,9]. As dissensões geralmente surgem do orgulho, que nos leva a nos superestimar e a colocar nosso próprio bem-estar e opiniões contra os dos outros, e disso surgem as brigas, litígios, obstinação, calúnias, facções, ódio, contendas e muitos outros males sem número e sem fim [São Tomás 22, qu. xxxvii, art. 1 et 2; et qu. xxxviii, art. 2; et qu. cxxxii, art. 5].

Recolha-se, pois, interiormente, examine-se e, tendo constatado que, sob um ou outro destes títulos, o orgulho realmente o domina, julgue quão necessário é lutar contra ele com humildade, porque, se o orgulho for vencido, uma série de outros pecados também serão vencidos. E, para se dar coragem, lembre-se disto: perante o tribunal de Deus, os orgulhosos serão condenados, e somente os humildes podem esperar encontrar misericórdia. Dizer que somos humildes é o mesmo que dizer que estamos entre os eleitos e seremos salvos; e dizer que somos orgulhosos é o mesmo que dizer que somos réprobos e perdidos, como afirma São Gregório: 'O orgulho é um sinal certo dos réprobos, assim como a humildade é o sinal dos eleitos' [Hom. 7 in Evang.; et lib. 3, Mor. cap xviii].

E, assim, concluímos esse trabalho. Louvado seja Jesus Cristo!

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

OS 10 PILARES DA DOUTRINA CATÓLICA


🕊️ 1. Amor a Deus e ao próximo

'Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo'
— Mateus 22,37-39

👉 Orientação: A base de toda vida católica é o amor a Deus e ao próximo. Tudo deve derivar desse duplo mandamento.

🙏 2. A importância da oração

'Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê o que está escondido, te recompensará'.
— Mateus 6,6

'Pai nosso que estais nos céus…'
— Mateus 6,9-13

👉 Orientação: O cristão é chamado a ter uma vida de oração pessoal e confiante, em intimidade com o Pai.

💞 3. A misericórdia e o perdão

'Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso'.
— Lucas 6,36

'Perdoai, e sereis perdoados'.
— Lucas 6,37

'Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete'.
— Mateus 18,22

👉 Orientação: O católico é chamado a perdoar sem limites e a viver a compaixão como reflexo do amor divino.

💧 4. A humildade e o serviço

'Quem quiser tornar-se grande entre vós, seja o vosso servo'.
— Mateus 20,26

'Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração'.
— Mateus 11,29

👉 Orientação: A verdadeira grandeza está no serviço e na humildade - valores centrais da vida cristã.

🕊️ 5. As Bem-aventuranças (caminho da santidade)

'Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus'.
— Mateus 5,3-12

👉 Orientação: As Bem-aventuranças são o 'retrato' do discípulo de Cristo, que indicam o caminho da felicidade e da santidade.

🕯️ 6. A fé e a confiança em Deus

'Não andeis preocupados com a vossa vida... Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo'.
— Mateus 6,25-33

👉 Orientação: O católico é chamado a confiar na providência de Deus, sem se deixar dominar pela ansiedade.

🍞 7. A Eucaristia e a comunhão com Cristo

'Eu sou o pão vivo que desceu do céu; quem comer deste pão viverá eternamente'.
— João 6,51

👉 Orientação: Jesus institui a Eucaristia como fonte de vida espiritual e centro da vida sacramental católica.

✝️ 8. Tomar a cruz e seguir Jesus

'Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me'.
— Mateus 16,24

👉 Orientação: A vida cristã inclui sacrifício e fidelidade; seguir Cristo implica carregar a cruz com amor.

🌍 9. Ser luz e sal do mundo

'Vós sois o sal da terra... Vós sois a luz do mundo'.
— Mateus 5,13-14

👉 Orientação: O católico é chamado a testemunhar a fé com a própria vida, sendo exemplo e esperança no mundo.

💗 10. Ter Nossa Senhora como Mãe

'Eis aí tua mãe'
— João 19,27

👉 Orientação: Amar Nossa Senhora como nossa mãe, e como ela amou e sob a sua intercessão, amar Jesus de todo o coração, com amor sacrificial e despojado de interesses.

domingo, 26 de outubro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'O pobre clama a Deus e Ele escuta: o Senhor liberta a vida dos seus servos(Sl 33)

Primeira Leitura (Eclo 35,15b-17.20-22a) - Segunda Leitura (2Tm 4,6-8.16-18) -  Evangelho (Lc 18,9-14)

  26/10/2025 - TRIGÉSIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM

O VALOR DA ORAÇÃO HUMILDE


Jesus falou muitas vezes sobre o valor da oração. Do valor da oração humilde e confiante, pautada no arrependimento sincero e na dor pelos pecados cometidos. Falou sobre a necessidade de orar sempre, com contrição e perseverança nas súplicas dirigidas à Divina Misericórdia. Mas, todas as vezes que Jesus falou sobre a oração, destacou sempre a premissa essencial do seu valor e ponderação: a humildade. A oração humilde é tangida pela Verdade porque emana da gratuidade da vida em comunhão com Deus.

No Evangelho deste domingo, outros dois personagens são trazidos à realidade das digressões humanas: um fariseu e um cobrador de impostos. Investidos de suas atribuições cotidianas, são apenas homens cumprindo metas e obrigações. Diante de Deus, duas almas, fruto de escolhas singulares da Infinita Sabedoria. Na vida de ambos, certamente o fariseu parecia ter escolhido a melhor parte, pelo menos até o dia em que ambos, vivendo vidas tão opostas, 'subiram ao Templo para rezar' (Lc 18, 10).

E ali, diante de Deus, as realidades humanas se consumiram no nada. O fariseu, eivado de orgulho e auto-suficiência, proferiu a oração despropositada e inútil: 'Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos. Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda’ (Lc 18, 11-12). No ato desonesto de louvar a si mesmo com desmedida jactância e julgar o próximo pela ótica dos valores humanos, arruinou a própria súplica. O cobrador de impostos, ao contrário, sabedor de suas fraquezas e misérias, prostrou-se em humilde recato e contrição, na sua súplica por clemência e perdão: 'Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!' (Lc 18,13).

O primeiro homem se viu em luz, e se banhou com desmedido orgulho nesta própria luz, mortiça e inútil, forjada tão somente por ações humanas. E saiu do templo com a concessão irrisória das alegrias humanas. O segundo homem, porém, apagou primeiro em si toda vaidade e interesses profanos e mergulhou, com inteira confiança e despojamento, na luz de Cristo. E, iluminado pela graça de Deus, alcançou misericórdia e experimentou a consoladora e definitiva paz daqueles que são plenamente justificados em Cristo: 'Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado' (Lc 18, 14).

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (V)

   

PARTE I - SOBRE A MORTE

V. Sobre o Julgamento

Além de tudo o que até agora consideramos como contribuindo para tornar a morte terrível para nós, está o pensamento de que devemos comparecer perante o tribunal de Deus e prestar contas de tudo o que fizemos e deixamos de fazer. Quão terrível é esse julgamento, aprendemos com estas palavras de São Paulo: 'É coisa terrível cair nas mãos do Deus vivo' (Hb 10, 31). Pois, se é muito alarmante cair nas mãos de um homem irado, quanto mais terrível não será cair nas mãos de um Deus onipotente! 

Todos os santos tremiam antecipando a sentença que Deus lhes aplicaria, pois sabiam muito bem como são severos os seus julgamentos. O salmista real diz: 'Não entres em juízo com o teu servo, ó Senhor, pois diante de ti nenhum homem vivo será justificado' (Sl 142,2). E o santo Jó exclama: 'O que farei se Deus se levantar para me julgar? Quando me interrogar, o que responderei? ' (Jó, 31,14).

Mais uma vez, São Paulo diz: 'Não tenho consciência de nada contra mim, mas não estou por isso justificado; mas aquele que me julga é o Senhor' (1Cor 4,4). Lemos também nas vidas dos Padres que o santo abade Agatão ficou dominado pelo medo quando o seu fim se aproximava. Os seus irmãos disseram-lhe: 'Por que temes, reverendo pai, tu que levaste uma vida tão piedosa?' Mas ele respondeu-lhes: 'Os julgamentos de Deus são muito diferentes dos julgamentos dos homens'. O santo abade Elias costumava dizer: 'Há três coisas que temo. Primeiro, temo o momento em que minha alma terá que deixar meu corpo; segundo, o momento em que terei que comparecer perante o tribunal de Deus; terceiro, o momento em que a sentença será proferida sobre mim'. 

Ninguém pode deixar de concordar com as palavras desse homem santo, pois, de fato, além do julgamento geral, não há nada tão temível quanto essas três coisas. Todos os homens bons e santos as temeram, todos as temem. Aqueles que não as temem provam que sabem muito pouco sobre elas ou que quase não meditaram sobre elas. Para o benefício de alguém que possa ser tão pouco esclarecido, darei uma breve instrução sobre o assunto.

Considere, em primeiro lugar, que sensação estranha e nova será para a sua alma quando ela se encontrar separada do corpo, em um mundo desconhecido. Até então, ela não conhecia nenhuma existência separada do corpo; agora, de repente, está separada dele. Até então, ela estava no tempo; agora, passou para a eternidade. Agora, pela primeira vez, seus olhos se abrem e ela vê claramente o que é a eternidade, o que é o pecado, o que é a virtude, quão infinito é o ser da Divindade e quão maravilhosa é sua própria natureza.

Tudo isso lhe parecerá tão maravilhoso que ela ficará quase petrificada de espanto. Após o primeiro instante de admiração, ela será conduzida perante o tribunal de Deus, para que preste contas de todas as suas ações; e o terror que então se apoderará da alma infeliz ultrapassa nossa capacidade de compreensão. Não é de se admirar que o infeliz pecador recue diante de comparecer a um tribunal onde será condenado por todos os seus erros e severamente punido por eles! Não preferiria ele ser jogado em um calabouço escuro e alimentado com pão e água, a ter que comparecer diante desse tribunal e ser exposto à vergonha pública?

Se é tão odioso para um criminoso ser levado perante um magistrado terreno, bem pode a pobre alma tremer de medo quando for apresentada à presença de Deus, o Juiz rigoroso e onisciente, e for obrigada a prestar contas com a maior precisão de todos os pensamentos, palavras, ações e omissões de sua vida passada. O santo Jó reconhece isso quando diz: 'Quem me concederá isso, que Tu me protejas no inferno e me escondas até que a Tua ira passe' (Jó 14,13). Observe que mesmo o paciente Jó prefere ficar deitado em um poço escuro e ficar escondido em uma caverna sombria e lúgubre do que aparecer diante da face de um Deus irado.

Há seis coisas que causam terror na alma, quando ela é chamada ao julgamento particular.

(i) A alma teme porque sabe que seu Juiz é onisciente; que nada pode ser ocultado dele, nem Ele pode ser enganado de forma alguma.

(ii) Porque seu Juiz é onipotente; nada pode resistir a Ele, e ninguém pode escapar dele.

(iii) Porque seu Juiz não é apenas o mais justo, mas o mais rigoroso dos juízes, para quem o pecado é tão odioso que Ele não permitirá que a menor transgressão passe impune.

(iv) Porque a alma sabe que Deus não é apenas seu juiz, mas também seu acusador; ela provocou a sua ira, ofendeu-o, e Ele defenderá a sua honra e vingará cada insulto oferecido a ela.

(v) Porque a alma está ciente de que a sentença, uma vez proferida, é irrevogável; não há recurso para ela em um tribunal superior, é inútil que ela reclame da sentença. Ela não pode ser revertida e, seja ela adversa ou favorável, ela precisa aceitá-la.

(vi) A razão mais poderosa de todas pelas quais a alma teme comparecer perante o tribunal é porque ela não sabe qual será a sentença do Juiz. Ela tem muito mais motivos para temer do que para ter esperança. E todo pensamento de ajuda agora acabou. Uma vez perdida para sempre, é para sempre; uma vez condenada para sempre, é para sempre!

Esses seis pontos enchem a alma de uma angústia e um terror tão indescritíveis que, se ela fosse mortal em vez de imortal, estaria disposta a morrer da morte mais cruel e violenta como forma de escapar.

Considera, além disso, de que forma aparecerás diante do teu Juiz e como ficarás confuso por causa dos teus pecados. Se um homem, em punição por suas más ações, fosse condenado a ser despido até ficar nu na presença de toda uma multidão, quão envergonhado ele se sentiria! Mas se alguma ferida repugnante e nojenta em seu corpo fosse assim revelada à vista, ele ficaria ainda mais envergonhado. Assim será contigo, quando estiveres diante do teu Juiz na presença de muitas hostes de Anjos. Não apenas todas as tuas más ações, pensamentos, palavras e obras serão revelados, mas todas as tuas propensões malignas serão manifestadas a ti, e tu serás exposto a uma vergonha terrível por causa delas.

Não podes negar que essas inclinações malignas se apegam a ti, pois não és dado à ira, à impaciência, à vingança, ao ódio, à inveja, ao orgulho, à vaidade, à sensualidade, à preguiça, à ganância, ao amor próprio, à avareza, à mundanidade e a toda malícia? Essas e outras tendências ruins se apegam à tua alma e a desfiguram de forma tão terrível que, após a morte, ficarás alarmado ao ver a tua própria alma e sinceramente envergonhado de todas as manchas presentes nela.

Em seguida, considera de que maneira o teu santo Juiz te receberá, quando apareceres diante dele não apenas carregado com uma multidão incontável de pecados, mas em um estado de impureza indescritível. Tu ficarás diante dele na maior confusão, sem saber para onde olhar. Sob teus pés está o inferno; acima de ti está o rosto irado do teu Juiz. Ao teu lado, tu vês os demônios que estão lá para te acusar. Em teu interior, tu contemplas todos os teus pecados e más ações. É impossível te esconderes; e, no entanto, essa exposição é intolerável.

Este seria um momento oportuno para explicar como o inimigo maligno irá acusá-lo, como ele trará todos os seus pecados à luz e invocará sobre eles a vingança de Deus; e também como o Deus justo exigirá o relato mais preciso de todas as suas ações. Mas isso tem sido tema tão frequente dos pregadores que, por uma questão de brevidade, não vou me alongar sobre essa parte do meu assunto, mas concluirei com a seguinte historieta.

Dois amigos íntimos combinaram que aquele que morresse primeiro apareceria ao sobrevivente, desde que Deus lhe permitisse fazê-lo. Quando finalmente um deles foi levado pela morte, fiel à sua promessa, ele apareceu ao seu amigo, mas com um aspecto triste e abatido, dizendo: 'Ninguém sabe! Ninguém sabe! Ninguém sabe!' 'O que é que ninguém sabe?', perguntou seu amigo. E o espírito respondeu: 'Ninguém sabe quão rigorosos são os julgamentos de Deus e quão severos são os seus castigos!'

Sendo assim, o que devemos fazer para não cair nas mãos de um Juiz tão irado? Não posso dar-te melhor conselho do que este: arrepende-te dos teus pecados, faz uma confissão sincera, corrige os teus caminhos e começa a pensar seriamente na tua salvação eterna. Enquanto ainda estás de boa saúde, pensa às vezes na morte e prepara-te para ela. Não adie isso até que a velhice chegue ou uma doença mortal o alcance. Não há arte maior nem mais importante na terra do que a arte de ter uma boa morte. Toda a sua eternidade depende disso: uma eternidade de felicidade incomparável ou de tormento indescritível.

Apenas uma prova lhe é concedida; se você não passar por essa única prova, tudo estará perdido, e uma eternidade de miséria estará diante de você. E se você não aprendeu essa arte tão importante durante sua vida, quando estava bem e forte, como poderá praticá-la para seu ganho eterno quando estiver em seu leito de morte? Será totalmente impossível para você fazer isso, a menos que Deus faça um milagre de misericórdia em seu favor. Você não pode contar com isso; Deus não prometeu isso, nem você mereceu um favor tão grande. Portanto, deixe-me implorar que siga meu conselho amigável e se prepare frequentemente para a morte enquanto estiver com plena saúde e força; pois este é o único meio pelo qual você pode esperar tornar-se proficiente na arte de morrer bem e passar com sucesso pela única provação que o espera, e pela qual o seu destino eterno será determinado.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

VERSUS: A HERESIA DO ARREBATAMENTO


Origem e Proposição: heresia de natureza protestante que prega que, pouco antes da grande tribulação descrita no Livro do Apocalipse, os cristãos fieis serão 'arrebatados' por Cristo antes do julgamento final e, assim, ficarão livres dos castigos e eventos terríveis da grande tribulação [o chamado arrebatamento pré-tribulação].

'Assim será no dia em que se manifestar o Filho do Homem. Naquele dia, quem estiver no terraço e tiver os seus bens em casa não desça para os tirar; da mesma forma, quem estiver no campo não torne atrás. Lembrai-vos da mulher de Ló. Todo o que procurar salvar a sua vida irá perdê-la; mas todo o que a perder irá encontrá-la. Digo-vos que naquela noite dois estarão em uma cama: um será tomado e o outro será deixado; duas mulheres estarão moendo juntas: uma será tomada e a outra será deixada. Dois homens estarão no campo: um será tomado e o outro será deixado' (Lc 17, 30-36).


Contraposição Católica: O texto bíblico refere-se diretamente à Segunda Vinda de Jesus, enfatizando a necessidade de se estar vigilante e preparado para o dia em que o Filho do Homem se manifestar em sua vinda gloriosa. E o texto alerta que esta Segunda Vinda ocorrerá de forma súbita e inesperada, como nos tempos de Noé e Ló, quando tudo parecia seguir sem sobressaltos a rotina dos tempos. Quando o Filho do Homem se manifestar então, a humanidade será dividida em dois destinos antagônicos e irremediáveis: 'um será levado e o outro deixado'.

A heresia do arrebatamento nasce da livre interpretação do texto: 'um será levado e o outro deixado': neste contexto, de duas pessoas próximas, uma seria arrebatada ao Céu e a outra seria deixada para trás, como personagens parceiras, mas como testemunhas completamente distintas dos eventos da grande tribulação (os arrebatados estariam seguros e isentos deste período singular da humanidade). Essa interpretação é absurda, porque o próprio Senhor nos alertou que este tempo de provação extremada seria imposto a todos os homens, sem distinção alguma entre 'mulheres grávidas' ou 'criaturas':

Ai das mulheres que estiverem grávidas ou amamentarem naqueles dias! Rogai para que vossa fuga não seja no inverno, nem em dia de sábado; porque então a tribulação será tão grande como nunca foi vista, desde o começo do mundo até o presente, nem jamais será. Se aqueles dias não fossem abreviados, criatura alguma escaparia; mas, por causa dos escolhidos, aqueles dias serão abreviados (Mt 24,19-22).

Mais ainda: exatamente por causa dos escolhidos, os dias da tribulação serão diminuídos para que os escolhidos possam se salvar [durante e sob os tremendos eventos da grande tribulação e não por meio de um arrebatamento prévio]. Os justos não serão salvos antes da tribulação, mas estes tempos serão abreviados para que possam ser salvos. Ou seja, todos os homens e mulheres serão igualmente testemunhas destes eventos espantosos, porém, com destinos finais muito distintos: aqueles que perderam as suas vidas pelo evangelho [contra o mundo] serão salvos e aqueles que tentarem salvar suas vidas [sem o evangelho] perderão a vida eterna.

'Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra a aflição e a angústia irão apoderar-se das nações pelo bramido do mar e das ondas. Os homens definha­rão de medo, na expectativa dos males que devem sobrevir a toda a terra. As próprias forças dos céus serão abaladas. Então, verão o Filho do Homem vir sobre uma nuvem com grande glória e majestade. Quando começarem a acontecer essas coisas, reani­mai-vos e levantai as vossas cabeças; porque se aproxima a vossa libertação' ( Lc 21, 27-28).

A Igreja Católica professa que Cristo voltará para julgar os vivos e os mortos, no fim dos tempos, de forma visível e gloriosa, mediante a ressurreição dos cristãos já falecidos e pela transformação gloriosa dos fieis em vida, sendo só então todos levados - arrebatados - ao encontro do Senhor para com Ele desfrutar da vida eterna. Ou seja, a comunhão visível da humanidade fiel com Cristo é o último capítulo do fim dos tempos e este 'arrebatamento' é o fruto final da ressurreição [dos justos falecidos de todos os tempos] e da transfiguração [dos escolhidos vivos do fim dos tempos].

'Eis o que vos declaramos, conforme a palavra do Senhor: por ocasião da vinda do Senhor, nós que ficamos ainda vivos não precederemos os mortos. Quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá do céu e os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro. Depois nós, os vivos, os que estamos ainda na terra, seremos arrebatados juntamente com eles sobre nuvens ao encontro do Se­nhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor' (1Ts 4,15-17).

terça-feira, 21 de outubro de 2025

A BÍBLIA EXPLICADA (XXX) - PARA BEM INTERPRETAR AS SAGRADAS ESCRITURAS

A ignorância da natureza das coisas dificulta a interpretação das expressões figuradas, quando estas se referem aos animais, pedras, plantas ou outros seres citados frequentemente nas Escrituras e servindo como objeto de comparações. Assim, é fato notório que a serpente, para preservar a cabeça, expõe seu corpo todo aos que a espancam. O quanto esse gesto nos esclarece sobre o sentido das palavras do Senhor ao nos mandar ser prudentes como a serpente! (Mt 10,16). Isto é, devemos saber apresentar nosso corpo aos que nos perseguem, de preferência a expor nossa cabeça que é Cristo. Assim, não deixar morrer em nós a fé cristã, renegando a Deus, ao poupar o nosso corpo. 

Sabe-se ainda, a propósito da serpente que, por instinto, penetra em passagens estreitas da caverna para aí despojar-se da antiga pele e receber forças novas. Quanto essa transformação nos incita a imitar sua astúcia, a nos despojar do homem velho e nos revestir do novo, conforme a palavra do Apóstolo! (Ef 4,22.24; Cl 3,9.10). Despojar-nos assim através da via estreita, conforme a palavra do Senhor: 'Entrai pela porta estreita' (Mt 7,13). Do mesmo modo, como o conhecimento das propriedades da serpente nos esclarece muitas comparações que a Escritura costuma apresentar sobre esse animal, assim também a ignorância das características de outros animais, sobre os quais ela igualmente faz menção, muito embaraça a quem procura entender.

Semelhante embaraço é produzido pela ignorância das pedras, das plantas e de tudo o que se mantém pelas raízes. Por essa razão, até o conhecimento das pedrinhas (carbunculi) que brilham nas trevas esclarece, por sua vez, várias obscuridades dos Livros santos, onde quer que estejam empregadas como figuras. O desconhecimento do berilo ou do diamante igualmente fecha, por vezes, as portas à compreensão. Ser-nos-á fácil compreender por que o ramo de oliveira, trazido pela pomba em seu regresso à arca (Gn 8,11) simboliza a paz perpétua, ao estudarmos que o contato untuoso do óleo não pode facilmente ser alterado por líquido estranho e que a própria árvore da oliveira está sempre coberta de folhas. Muitos, por não conhecerem o hissopo, nem a virtude que ele possui de purificar os pulmões pelo fato de se enraizar nas rochas e ser erva miúda e rasteira, são incapazes de compreender por que está dito: 'Tu me borrifarás com o hissopo, e serei purificado' (Sl 51,9).

A ignorância dos números também impede compreender quantidade de expressões empregadas nas Escrituras sob forma figurada e simbólica. Certamente, um espírito bem nascido sente-se levado a se perguntar o significado do fato de Moisés, Elias e o Senhor terem jejuado por quarenta dias (Ex 24,18; 1Rs 19,8; Mt 4,2). Ora, esse acontecimento propõe um problema simbólico que só é resolvido por exame atento desse número. Compreende o número 40 quatro vezes 10 e, por aí, como que envolve o conhecimento de todas as coisas incluídas no tempo. Pois é num ritmo quaternário que prossegue o curso do dia e do ano. Divide-se o dia em espaços horários da manhã, do meio-dia, da tarde e da noite. O ano estende-se nos meses da primavera, do verão, do outono e do inverno. Ora, enquanto vivemos no tempo, devemos nos privar por abstinência e jejum dos prazeres que o tempo nos proporciona. 

É certo, aliás, que o próprio curso do tempo ensina-nos a menosprezar o tempo e a desejar a eternidade. Por outro lado, o número 10 simboliza o conhecimento do Criador e da criatura, pois 3 designa a Trindade do Criador e 7, a criatura, considerada em sua alma e em seu corpo. Com efeito, na alma, há três movimentos que levam a amar a Deus de todo o coração, de toda a alma e de todo o espírito (Mt 22,37). E no corpo, estão bem manifestos os quatro elementos que os constituem. Consequentemente, este número denário move-nos à cadência do tempo. Isto é, voltando quatro vezes, adverte-nos para vivermos na castidade e na continência, desapegados dos deleites temporais, e prescreve-nos jejuar quarenta dias. Eis o que nos explica a Lei personificada em Moisés; eis o que mostra a profecia, representada por Elias; eis o que nos ensina o próprio Senhor. Apoiando-nos no testemunho da Lei e dos Profetas, ele apareceu em plena luz, entre essas duas personagens, sob os olhos dos três discípulos tomados de espanto (Mt 17,2.3).

Em seguida, pode-se perguntar, do mesmo modo, como do número quarenta vem o número cinquenta, eminentemente sagrado em nossa religião devido a Pentecostes (At 2). E ainda, como esse número cinquenta multiplicado por três por causa das três épocas: aquela antes da lei, a época sob a lei e a sob a graça; e somando de modo ainda mais eminente a mesma Trindade, refere-se ao mistério da Igreja já purificada, representada nos cento e cinquenta e três peixes que, depois da Ressurreição do Senhor, são recolhidos nas redes arremessadas à direita (Jo 21,11). É assim que, por vários outros agrupamentos numéricos, encontram-se escondidas nos Livros santos certas figuras que, devido à ignorância de muitos, ficam impenetráveis aos leitores. 

A ignorância de certas noções musicais é, em numerosas passagens das Escrituras, barreira e véu. De fato, estudando a diferença entre o saltério e a cítara, um autor explicou engenhosamente certos símbolos. E entre os doutos, não é disputa fora de propósito indagar se há alguma lei musical que obrigue o saltério constar de dez cordas, esse tão grande número de cordas! Ora, na ausência dessa lei, é preciso reconhecer nesse número dez significado mais misterioso, relacionado, seja com os dez preceitos que se referem ao Criador e à criatura, seja com as considerações que expusemos acima, sobre o número denário. Quanto ao número relatado pelo Evangelho que mede a duração do templo, isto é, o número quarenta e seis (Jo 2,20), há nele não sei que tonalidade musical. Aplicado, porém, em referência à formação do corpo do Senhor, a propósito do qual foi feita a menção ao templo reconstruído, esse número obrigou certos hereges a reconhecerem que o Filho de Deus revestiu não um corpo fictício, mas um corpo real e humano. Deparamos, assim, a música e os números colocados em lugar de honra em muitas passagens da santa Escritura.

(Excertos da obra 'A Doutrina Cristã', de Santo Agostinho)

domingo, 19 de outubro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Do Senhor é que me vem o meu socorro,
do Senhor que fez o céu e fez a terra' (Sl 120)

Primeira Leitura (Ex 17,8-13) - Segunda Leitura (2Tm 3,14-4,2) -  Evangelho (Lc 18,1-8)

  19/10/2025 - VIGÉSIMO NONO DOMINGO DO TEMPO COMUM

O JUIZ INÍQUO E A VIÚVA IMPERTINENTE


No evangelho deste domingo, Jesus nos exorta, uma vez mais, à oração frequente, confiante, perseverante e colocada no coração de infinito amor do Deus de Misericórdia. À oração despojada de contrapartidas favoráveis aos apelos intrinsecamente humanos, mas entregue aos desígnios do Pai para o bem maior de nossa alma e do nosso semelhante. E vai enfatizar, de forma cristalina, que a obscuridade e as trevas da perda de fé são engendradas na forja da falta de oração. Santo Afonso de Ligório, doutor da Igreja, já nos alertava: 'Quem reza, se salva; quem não reza, se condena'.

Na parábola do mau juiz e da viúva impertinente, deparam-se duas realidades humanas antagônicas: de um lado, o homem privilegiado pelas leis humanas e detentor do poder de decisão sobre as ações e contendas dos outros homens; de outro lado, a mulher exposta e fragilizada pela perda do marido, sob o peso de novas e doloridas realidades e indefesa pelas dramáticas circunstâncias do momento. Cabe a ela, portanto, pedir, pedir uma vez mais e muitas vezes enfim e mesmo implorar a intervenção do juiz em sua causa e defesa. Ao juiz, homem iníquo, ao qual a soberba do cargo tinha imposto sempre decisões rápidas e inquestionáveis, a insistência da viúva é ocasião de incômodo, transtorno, desvario. Eis o cenário que Jesus montou para falar do valor incomensurável da oração.

Diante de apelos tão inoportunos e persistentes, até o juiz iníquo se rendeu: 'Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!' (Lc 18, 4-5). Se até um homem iníquo e injusto é complacente com os rogos repetidos da viúva inconsolável a qual desdenha, o que Deus de infinita misericórdia não iria fazer por nós em oração confiante e perseverante nas suas graças? E Jesus é taxativo ao dizer: 'Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa' (Lc 18,8).

E, no mesmo versículo, Jesus encerra a parábola com uma frase extremamente preocupante: 'Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?' (Lc 18, 8). Jesus não precisaria se expressar assim se não profetizasse uma terrível apostasia dos homens dos tempos da Segunda Vinda do Senhor, fomentada pela perda dos valores espirituais, submissão aos valores mundanos e, principalmente pela perda da oração confiante e perseverante aos desígnios de Deus. E, de repente, ao se ter em conta as realidades de agora, não parece que Jesus está falando para nós?

terça-feira, 14 de outubro de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XLII)

 

145. O santo papa São Gregório percebeu o orgulho em todos os tipos de pessoas e descreveu suas características. Alguns, diz ele, orgulham-se de seus bens, outros de sua eloquência, alguns orgulham-se de coisas mundanas e outros de coisas da Igreja e dos dons de Deus de tal forma que, cegos pela vaidade, somos incapazes de discernir isso; quer nos exaltemos acima dos outros por causa da glória mundana ou dos dons espirituais, o orgulho nunca saiu do nosso coração porque está domiciliado ali e, para se disfarçar, assume uma aparência falsa.

É bom saber também que o orgulho não tenta superiores e inferiores da mesma maneira. Ele tenta os grandes, fazendo-os entender que alcançaram sua posição por seu próprio mérito e que nenhum de seus inferiores poderia ser comparado a eles; ele tenta seus subordinados, desviando sua atenção de suas próprias falhas e fazendo-os observar e julgar as ações de seus superiores; eles falam, no entanto, de seus superiores com uma certa liberdade, e como esse orgulho é chamado de independência legítima neles, assim também no superior é chamado de zelo e decoro.

Às vezes, nosso orgulho nos obriga a falar alto, outras vezes a preservar um silêncio amargo. O orgulho é dissoluto em suas alegrias, sombrio e delirante em sua melancolia; parece honroso na aparência, mas não tem honra; é cheio de valor ao ofender, mas covarde ao ser ofendido; é lento para obedecer, importuno em suas exigências para determinar seu dever, mas negligente em cumpri-lo; embora seja rápido para se intrometer e interferir em tudo o que não lhe diz respeito, não há possibilidade de incliná-lo em qualquer direção, a menos que ele próprio se incline para isso por seu próprio gosto. Por outro lado, é astuto, e finge ser indiferente em relação a qualquer cargo ou dignidade que cobiça, para que possa ser forçado a aceitá-los, amando ter aquelas coisas que mais deseja como se impostas violentamente sobre si, por medo de ser considerado com desprezo se seu desejo por elas fosse revelado. Tudo isso é ensinamento de São Gregório.

146. Depois de considerar o orgulho em si mesmo, resta-nos observar seus efeitos, e especialmente oito dos vícios mais comuns e familiares que ele produz, que são a presunção, a ambição, a inveja, a vaidade, a ostentação, a hipocrisia, a desobediência e a discórdia. Vamos examiná-los com São Tomás.

A presunção é um vício pelo qual nos consideramos capazes de realizar coisas além de nossas forças, esquecendo a necessidade da ajuda divina. O pecador é culpado de presunção quando acredita que pode se converter a Deus quando quiser e escolher, como se a conversão fosse obra apenas de seu livre arbítrio; vivendo mal, ainda confia em ter uma boa morte; quando peca e continua pecando, confiando em obter o perdão final; quando acredita que pode, por si mesmo e sem a ajuda da graça, resistir à tentação, evitar o pecado e observar os mandamentos de Deus, ou então que pode realizar algum ato sobrenatural de fé, esperança, caridade ou contrição, ou realizar algum ato meritório para o seu bem-estar eterno e salvar-se perseverando no bem.

Tudo isso está além de nossas próprias forças, e pensar que podemos fazer essas coisas sem a ajuda especial de Deus, e sem estar dispostos a pedir essa ajuda a Deus, é um pecado de presunção - um pecado grave de orgulho pelo qual acreditamos que possuímos uma virtude quando não a temos: 'Ó presunção perversa' - diz a Sagrada Escritura - 'de onde vieste?' [Eclo 37,3]. E São Gregório, explicando qual era o pecado que Jó chamava de 'grande iniquidade' [Jó 31,28], afirmou que era a presunção, que é um insulto ao autor de toda a graça, 'pela qual o homem atribui a si mesmo todo o mérito de uma boa obra' [Lib. xxii, Mor., cap. x].

147. A ambição é um vício que nos leva a buscar nossa própria honra com avidez desmedida [São Tomás, 2a 2æ, qu. cxxxi, art. 2]. Ora, como essa honra é um sinal de respeito e estima, concedido à virtude meritória e àquele que é de grau superior, e como é certo que não temos mérito algum por nós mesmos, porque tudo o que recebemos vem de Deus, não é a nós mesmos, mas somente a Deus que tal honra é inteiramente devida.

Além disso, como essa honra foi ordenada por Deus como um meio para nos tornar capazes de ajudar o próximo, é certo que toda essa honra deve ser usada por nós para cumprir esse fim. Portanto, duas coisas são necessárias para nos permitir fugir da ambição. A primeira é que não devemos nos apropriar do mérito da honra, e a segunda é que devemos confessar que essa mesma honra é devida inteiramente a Deus e só nos é querida na medida em que pode servir ao nosso próximo. Se, portanto, nos faltar uma dessas duas coisas, cometemos o pecado da ambição. É ambicioso, portanto, aquele que busca ter algum cargo ou posição, seja no mundo ou na Igreja, quando não tem a virtude e o conhecimento necessários para mantê-lo, e que trama e conspira para ser colocado à frente de outros que são mais dignos do que ele.

É ambicioso aquele que deseja ser estimado, honrado e reverenciado mais do que sua posição merece, e como se fosse de posição superior à que realmente ocupa, para ser honrado como um pregador eloquente ou um escritor inteligente, ou em qualquer profissão à qual pertença, embora na realidade só possa ser classificado entre os indiferentes e medíocres.

É ambicioso aquele que, sem um único pensamento pela glória de Deus ou por servir ao próximo, deseja ou busca algum cargo mundano ou eclesiástico, simplesmente com vistas ao seu próprio bem-estar temporal e ao avanço de sua família, ou deseja ganhar a honra de algum cargo elevado ou bispado, 'pelo amor ao poder' - como diz Santo Agostinho - 'e pelo orgulho da posição' [Lib. xix, De Civ. Dei., cap. xiv].

Jesus Cristo demonstra um ódio especial por esse vício em vários trechos do seu evangelho [Mt 18, 20. 23; Lc 9,12] e os Padres argumentam, a partir disso, que o homem ambicioso está em estado de pecado mortal; e é fácil para as pessoas mais espirituais cometerem esse pecado, como diz Santo Ambrósio: 'A ambição muitas vezes torna criminosos aqueles que nenhum vício poderia deleitar, que nenhuma luxúria poderia mover, que nenhuma avareza poderia enganar' [Lib. 4 in Luc.]. O pior da ambição é que poucas pessoas têm escrúpulos a respeito dela, e a razão é que, por esse vício, a consciência se deprava, porque se une a essa paixão e raramente recupera a sua integridade [São Tomás, 2a 2æ, qu. cxxxi, art. 1 et 2; qu. clxxxv, art. 2].

148. A inveja é uma tristeza que surge da contemplação do bem-estar do nosso próximo, quando imaginamos que o bem que lhe acontece deve ser em nosso detrimento, prejudicial à nossa própria glória e interesse; mas dos seus bens, só invejamos aqueles que nos trazem estima aos olhos do mundo -riquezas, dignidade, a amizade e os favores dos grandes, ciência, elogios, fama e tudo o que nos parece contribuir para o nosso crédito e nos trazer honra.

E é assim que a inveja nasce dentro de nós, quando vemos alguém mais rico, mais culto do que nós, outro mais sábio e mais virtuoso do que nós, outro que tem mais talento e habilidade, e a quem, portanto, gostaríamos de ver privado desses dons, para que também fosse privado dos elogios, da honra e de quaisquer outras vantagens que imaginamos ser mais devidas a nós do que a ele. Ora, o pecado consiste nisto: que, quando deveríamos, por caridade, regozijar-nos com a prosperidade do nosso próximo, ficamos apenas tristes com ela, desejando, em nosso orgulho, que ela fosse nossa, para que pudéssemos ser superiores ao nosso próximo em mérito; e este pecado é o pecado especial do diabo, como diz o Sábio: 'a inveja do diabo' [Sb 2,24]. O Espírito Santo nos ordena com toda justiça, por meio de São Paulo, que nos guardemos contra ele: 'Não nos invejemos uns aos outros' [Gl 5,26], pois é fácil pecar mortalmente de uma forma ou de outra. Mas, no entanto, quão comum é esse vício nas famílias, nas comunidades, em todos os estados de vida, entre altos e baixos, ricos e pobres, entre os seculares e até mesmo entre os próprios religiosos!

Todo esse mal provém de uma falsa consciência, que nos leva a acreditar que a inveja não é um grande pecado e, portanto, embora seja um mal grave, não é temida, nem evitada, nem nos esforçamos para nos corrigir dela. Esta reflexão é de São Cipriano: 'A inveja parece uma ofensa pequena, de modo que, enquanto nos parece leve, não é temida; enquanto não é temida, é desprezada; enquanto é desprezada, não é facilmente evitada e, assim, torna-se uma fonte secreta de ruína' [São Tomás, 2a 2æ, qu. xxxiv, art. 6; et qu. xvi, art. 1 et 2 etc.; et qu. clviii, art. 11 et 14].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

domingo, 12 de outubro de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Escutai, minha filha, olhai, ouvi isto: que o Rei se encante com vossa beleza!' (Sl 44)

Primeira Leitura (Est 5,1b-2;7,2b-3) - Segunda Leitura (Ap 12,1.5.13a.15-16a) -  Evangelho (Jo 2,1-11)

  12/10/2025 - SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA APARECIDA

'FAZEI TUDO O QUE ELE VOS DISSER'


Neste dia da solenidade de Nossa Senhora Aparecida, nós a encontramos junto com Jesus, como convidados de certas bodas em Caná. Não sabemos detalhes do evento, os nomes dos noivos ou do mestre de cerimônia, o tempo da celebração. Mas a presença de Jesus e de Maria naquela ocasião em Caná da Galileia são o testemunho vivo da santidade e das graças associadas àquela união matrimonial. Muitos teólogos manifestam inclusive que foi, neste enlace de santa vocação e harmonia, que Jesus elevou o casamento à condição de sacramento, imagem de suas núpcias eternas com a Santa Igreja.

E o vinho veio a faltar. Nossa Senhora tem a clara percepção da situação constrangedora e aflitiva dos noivos e de suas famílias, porque faltou o vinho. É a Mãe que roga, que intercede, que suplica ao Filho Amado: 'Eles não têm mais vinho' (Jo 2, 3). Medianeira e intercessora de nossas aflições e angústias, de Caná até os confins da terra, Nossa Senhora leva a Jesus as súplicas de todos os seus filhos e filhas de todos os tempos. É ela que nos abre as portas da manifestação da glória de Jesus para a definitiva aliança dos céus com a humanidade pecadora, mediante a sua súplica de Mãe face à angústia humana: 'Fazei tudo o que Ele vos disser' (Jo, 2,5).

E eis que havia ali seis talhas de pedra, que foram 'enchidas até a boca' (Jo, 2,7). E a água se fez vinho, nas mãos do Salvador. Da angústia, faz-se a alegria; da aflição, tem-se o júbilo; da ansiedade, nasce o alívio e a serenidade. Alegria, júbilo, alívio e serenidade que são os doces frutos da plena santificação. Este vinho nos traz a libertação do pecado e nos coloca nas sendas do céu, pois nos deleita com as graças da virtude, do santo juízo, da sabedoria de Deus. Mas nos cabe encher nossas talhas de água até a boca, prover os nossos corações do mais pleno amor humano, para que a santificação de nossas almas seja completa no coração de Deus.

'Este foi o o início dos sinais de Jesus' (Jo, 2,11). Em Caná da Galileia e por Maria, mais que o primeiro milagre, a glória de Jesus foi manifesta à humanidade pecadora. O firme propósito pessoal em busca da virtude e da superação das nossas vicissitudes humanas é a água que será transformada no vinho pela graça e pela misericórdia de Deus em nossos corações aflitos e inquietos, enquanto não repousados na glória eterna. Enchei, portanto, as vossas talhas de água e fazei tudo o que Ele vos disser, com a intercessão de Maria. Eis aí a pequena e a grande via em direção ao Coração de Deus, que nos foi legada um dia em Caná da Galileia.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

SOBRE AS ÚLTIMAS QUATRO COISAS (IV)

   

PARTE I - SOBRE A MORTE

IV. Sobre o Medo do Inferno

A morte ainda se torna mais amarga para nós pelo medo do inferno e pela visão clara da eternidade diante de nós. Pois quando estamos gravemente doentes e a morte nos encara, o terror que nos invade diante da perspectiva da eternidade é tão avassalador que ficamos cheios de medo. Pois vemos claramente que, em poucos dias, talvez poucas horas, devemos entrar na eternidade, e não sabemos o que nos espera lá. O medo de nos perdermos para sempre é tão grande que nos faz estremecer.

Além disso, o alarme que nos tortura é aumentado pela lembrança dos pecados pelos quais muitas vezes merecemos o inferno; pois nenhum homem pode ter certeza se fez penitência corretamente e se realmente obteve o perdão. Isso é explicado por uma passagem dos escritos do já mencionado Papa São Gregório, que descreve esse medo com as seguintes palavras: 'O homem justo que se preocupa verdadeiramente com sua salvação eterna pensará de tempos em tempos em seu futuro Juiz. Ele meditará, antes que a morte o alcance, sobre o relato que terá de fazer de sua vida. Se não houver grandes pecados pelos quais sua consciência o repreenda, ele ainda terá motivos para se alarmar por causa dos pecados diários aos quais talvez dê pouca atenção. Pois quantas vezes não pecamos em pensamento? É relativamente fácil evitar más ações, mas é muito mais difícil manter o coração livre de pensamentos desordenados. No entanto, lemos na Sagrada Escritura: Ai de vós, que concebeis o que é inútil e praticais o mal em vossos pensamentos (Mq 2,1) ou ainda: 'Em vosso coração praticais iniquidades' (Sl 62,3).

'Por isso, os justos estão sempre com medo dos terríveis julgamentos de Deus, pois estão conscientes de que todos esses pecados secretos serão levados a julgamento, como diz São Paulo: 'Naquele dia, Deus julgará os segredos dos homens' (Rm 2,16). E embora durante toda a sua vida um homem bom ande com medo do julgamento, esse medo aumentará notavelmente à medida que ele se aproxima do fim de seus dias. Diz-se de Nosso Senhor que, quando se aproximava a hora desua morte, Ele começou a ficar triste e com medo e, estando em agonia, orou por mais tempo. Não foi isso para nos ensinar como seria conosco no nosso fim, e que angústia e aflição nos dominariam?

Tais são as palavras do Papa São Gregório, calculadas para inspirar não só os pecadores, mas também os justos com medo, pois, como diz o santo, mesmo aqueles que não têm consciência de ter cometido pecados graves, estão cheios de apreensão em relação à sentença que lhes será imposta. Se os justos não estão isentos de alarme, o que podemos fazer nós, pobres pecadores, que sabemos ser culpados de muitas e múltiplas transgressões e que todos os dias acrescentamos pecado ao pecado? O que será de nós? O que podemos fazer? Não há nenhum meio que possamos empregar para obter a misericórdia de Deus? Não conheço melhor conselho do que aquele que o próprio Cristo nos dá nas palavras: 'Vigiai, pois, orando em todo o tempo, para que sejais considerados dignos de escapar de todas estas coisas que hão de acontecer, e de estar diante do Filho do homem' (Lc 21,36).

Visto que Cristo nos indica a oração como o melhor e mais fácil meio, que cada um siga fielmente esta exortação e invoque diligentemente o Deus Todo-Poderoso e sua Santíssima Mãe, e todos os santos, implorando-lhes dia após dia que o protejam e confiando-lhes o seu fim último.

(Excertos da obra 'The Four Last Things - Death, Judgment, Hell and Heaven', do Pe. Martin Von Cochem, 1899; tradução do autor do blog)