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segunda-feira, 28 de abril de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (C)

Capítulo C

Meios de se Evitar o Purgatório - Privilégios do Santo Escapulário: Preservação dos Tormentos do Inferno e Libertação do Primeiro Sábado - Exemplos do Cumprimento destas Promessas

De acordo com o que dissemos, a Santíssima Virgem anexou dois grandes privilégios ao Santo Escapulário; por sua vez, os Soberanos Pontífices acrescentaram a eles as mais ricas indulgências. Não falaremos aqui sobre as duas indulgências, mas consideramos útil dar a conhecer esses dois preciosos privilégios, um sob o nome de Preservação, o outro sob o nome de Libertação.

O primeiro é a isenção dos tormentos do inferno: In hoc moriens aeternum non patietur incendium - Aquele que morrer usando este hábito não sofrerá o fogo do inferno. É evidente que aquele que morrer em pecado mortal, mesmo usando o escapulário, não estará isento da condenação; e não é esse o significado da promessa de Maria. Essa boa Mãe prometeu misericordiosamente dispor todas as coisas de tal modo que aquele que morrer usando esse santo hábito receberá uma graça eficaz digna de confessar e lamentar as suas faltas; ou, se for surpreendido por uma morte súbita, terá tempo e vontade para fazer um ato de perfeita contrição. Poderíamos encher um volume com os eventos milagrosos que comprovam o cumprimento dessa promessa. Basta relatar alguns deles.

O Venerável [Santo] Padre de la Colombiere nos conta que uma jovem, que era muito piedosa e usava o santo escapulário, teve a infelicidade de se desviar do caminho da virtude. Em consequência da má literatura e de companhias perigosas, ela caiu nas maiores desordens e estava prestes a perder a sua honra. Em vez de se voltar para Deus e recorrer à Santíssima Virgem, que é o refúgio dos pecadores, ela se abandonou ao desespero. O demônio logo sugeriu um remédio para os seus males - o terrível remédio do suicídio, que poria fim às suas misérias temporais para mergulhá-la em tormentos eternos. Ela correu para um rio e, ainda usando o escapulário, jogou-se na água. Mas - ó maravilha de Deus! - ela flutuou em vez de afundar e, assim, não conseguiu encontrar a morte que procurava. Um pescador, que a viu, apressou-se em ajudá-la, mas a infeliz criatura o impediu: arrancando o escapulário, ela o jogou longe de si e afundou imediatamente. O pescador não conseguiu salvá-la, mas encontrou o escapulário e reconheceu que essa vestimenta sagrada, enquanto havia sido usada, havia impedido a pecadora de cometer suicídio.

No hospital de Toulon, havia um oficial, um homem muito ímpio, que se recusava a ver um padre. A morte se aproximava e ele caiu em uma espécie de letargia. Os assistentes aproveitaram esse fato para colocar um escapulário em seu pescoço, sem que ele soubesse. Ao se recuperar logo depois, ele gritou com fúria: 'Por que vocês colocaram fogo em mim, um fogo que me queima? Tirem-no daqui, tirem-no daqui!' Então, invocaram a Santíssima Virgem e tentaram novamente colocar nele o escapulário. Ele percebeu isso, arrancou-o com raiva, jogou-o longe de si e, com uma horrível blasfêmia nos lábios, expirou.

O segundo privilégio, o Sabatino ou da Libertação, consiste em ser liberado do Purgatório pela Santíssima Virgem no primeiro sábado após a morte. Para desfrutar desse privilégio, certas condições devem ser cumpridas. Primeiro, observar a castidade de nosso estado. Segundo, recitar o Pequeno Ofício da Santíssima Virgem. Aqueles que recitam o Ofício Canônico satisfazem essa condição. Aqueles que não sabem ler devem, em vez de rezar o Ofício, observar os jejuns prescritos pela Igreja e abster-se de carne em todas as quartas-feiras, sextas-feiras e sábados. Terceiro, em caso de necessidade, a obrigação de recitar o Ofício, a abstinência e o jejum podem ser comutados em outras obras piedosas, por aqueles que têm o poder de conceder tais dispensas. Esse é o privilégio Sabatino ou da Libertação, com as condições necessárias para desfrutá-lo. Se nos lembrarmos do que foi dito sobre os rigores do Purgatório e sua duração, veremos que esse privilégio é muito precioso e suas condições muito fáceis des erem aplicadas. Sabemos que foram levantadas dúvidas quanto à autenticidade da Bula Sabatina, mas, além da tradição constante e da prática piedosa dos fiéis, o grande Papa Bento XIV, cuja eminente erudição e moderação de opiniões são bem conhecidas, pronunciou-se a seu favor.

Em Otranto, uma cidade do reino de Nápoles, uma senhora de alta posição teve grande prazer em assistir aos sermões de um padre carmelita que era um grande promotor da devoção a Maria. Ele assegurava a seus ouvintes que todos os cristãos que usassem piedosamente o escapulário e cumprissem as condições pré-estabelecidas veriam a Mãe Divina em sua partida deste mundo, e que essa grande consoladora dos aflitos viria no sábado após a morte para libertá-los do Purgatório e levá-los para a morada dos bem aventurados. Impressionada com essas preciosas vantagens, essa senhora imediatamente vestiu a túnica da Santíssima Virgem, firmemente decidida a observar fielmente as regras da Confraria. Sua piedade progrediu rapidamente. Ela rezava a Maria dia e noite, depositava nela toda a sua confiança e lhe prestava todas as homenagens possíveis. Entre outros favores que pediu, implorou que morresse em um sábado, para que pudesse ser libertada mais cedo do Purgatório. 

Suas preces foram ouvidas. Alguns anos depois, tendo adoecido, apesar da opinião contrária de seu médico, ela declarou que sua doença a levaria ao túmulo. 'Eu bendigo a Deus' - acrescentou - 'na esperança de estar logo unida a Ele no Céu'. Sua doença progrediu tão rapidamente que os médicos declararam unanimemente que ela estava à beira da morte e que não conseguiria viver até o fim do dia, que era quarta-feira. 'Vocês estão novamente enganados' - disse a senhora doente - 'viverei mais três dias e não morrerei até sábado'. O evento justificou suas palavras. Considerando os dias de sofrimento que lhe restavam como um tesouro inestimável, ela os aproveitou para purificar sua alma e aumentar seus méritos. Quando chegou o sábado, ela entregou a sua alma nas mãos do Criador.

Sua filha, que também era muito piedosa, estava inconsolável em seu luto. Enquanto orava em seu oratório pela alma de sua querida mãe e derramava lágrimas abundantes, um grande servo de Deus, que era habitualmente favorecido com comunicações sobrenaturais, foi até ela e disse: 'Pare de chorar, minha filha, ou melhor, deixe que sua dor se transforme em alegria. Venho assegurar-lhe, da parte de Deus, que hoje, sábado, graças aos privilégios concedidos aos membros da Confraria do Escapulário, sua mãe foi para o céu e está entre os eleitos. Fiquem consolados e abençoem a Virgem Augustíssima, a Mãe da Misericórdia'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

domingo, 27 de abril de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Dai graças ao Senhor porque Ele é bom! Eterna é a sua misericórdia!' (Sl 117)

Primeira Leitura (At 5,12-16) - Segunda Leitura (Ap 1,9-11a.12-13.17-19) -  Evangelho (Jo 20,19-31)

  27/04/2025 - SEGUNDO DOMINGO DA PÁSCOA
DOMINGO DA MISERICÓRDIA

'MEU SENHOR E MEU DEUS!'


O segundo domingo do tempo pascal é consagrado como sendo o 'Domingo da Divina Misericórdia', com base no decreto promulgado pelo Papa João Paulo II na Páscoa do ano 2000. No Domingo da Divina Misericórdia daquele ano, o Santo Padre canonizou Santa Maria Faustina Kowalska, instrumento pelo qual Nosso Senhor Jesus Cristo fez conhecer aos homens o seu amor misericordioso: 'Causam-me prazer as almas que recorrem à minha misericórdia. A estas almas concedo graças que excedem os seus pedidos. Não posso castigar, mesmo o maior dos pecadores, se ele recorre à minha compaixão, mas justifico-o na minha insondável e inescrutável misericórdia'.

No Evangelho deste domingo, Jesus já havia se revelado às santas mulheres, a Pedro e aos discípulos de Emaús. Agora, apresenta-se diante os Apóstolos reunidos em local fechado e, uma vez 'estando fechadas as portas' (Jo 20, 19), manifesta, assim, a glória da sua ressurreição aos discípulos amados. 'A paz esteja convosco' (Jo 20, 19) foi a saudação inicial do Mestre aos apóstolos mergulhados em tristeza e desamparo profundos. 'A paz esteja convosco' (Jo 20, 21) vai dizer ainda uma segunda vez e, em seguida, infunde sobre eles o dom do Espírito Santo para o perdão dos pecados: 'Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos' (Jo 20, 22-23), manifestação preceptora da infusão dos demais dons do Espírito Santo por ocasião de Pentecostes. A paz de Cristo e o Sacramento da Reconciliação são reflexos incomensuráveis do amor e da misericórdia de Deus.

E eis que se manifesta, então, o apóstolo da incredulidade, Tomé, tomado pela obstinação à graça: 'Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei' (Jo 20, 25). E o Deus de Infinita Misericórdia se submete à presunção do apóstolo incrédulo ao lhe oferecer as chagas e o lado, numa segunda aparição oito dias depois, quando estão todos novamente reunidos, agora com a presença de Tomé, chamado Dídimo. 'Meu Senhor e meu Deus!' (Jo 20, 28) é a confissão extremada de fé do apóstolo arrependido, expressando, nesta curta expressão, todo o tesouro teológico das duas naturezas - humana e divina - imanentes na pessoa do Cristo.

'Bem-aventurados os que creram sem terem visto!' (Jo 20, 29) é a exclamação final de Jesus Ressuscitado pronunciada neste Evangelho. Benditos somos nós, que cremos sem termos vistos, que colocamos toda a nossa vida nas mãos do Pai, que nos consolamos no tesouro de graças da Santa Igreja. E bem aventurados somos nós que podemos chegar ao Cristo Ressuscitado com Maria, espelho da eternidade de Deus na consumação infinita da Misericórdia do Pai.

terça-feira, 22 de abril de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (XII)

P. 25 - Ninguém é trazido à fé e à Igreja de Cristo senão aqueles que correspondem como devem às graças recebidas anteriormente?

Deus não permita; pois, embora seja certo que Deus nunca deixará de trazer à fé e à Igreja de Cristo todos aqueles que correspondem fielmente às graças que Ele lhes concede, ainda assim Ele não se obrigou em lugar algum a conceder essa singular misericórdia a nenhum outro. Se fosse esse o caso, quão poucos de fato a receberiam! Mas Deus, para mostrar as riquezas infinitas da sua bondade e misericórdia, concede-a a muitos dos mais indignos. Ele a concedeu até mesmo a muitos dos judeus endurecidos que crucificaram Jesus Cristo e aos sacerdotes que o perseguiram até a morte, embora eles tivessem se oposto obstinadamente a todos os meios que Ele havia usado anteriormente por meio da sua doutrina e milagres para convertê-los. 

Nisso, Ele age como Senhor e Mestre, e como um livre disponente dos seus próprios dons; Ele dá a todos os auxílios necessários e suficientes para o estado atual deles; àqueles que cooperam com esses auxílios, Ele nunca deixa de dar mais abundantemente; e, a fim de mostrar as riquezas da sua misericórdia, em um número dos mais indignos, Ele concede seus favores mais singulares para a conversão deles. Portanto, ninguém tem motivo para reclamar; todos devem ser solícitos em operar com o que têm; ninguém deve se desesperar por causa de sua ingratidão passada, mas ter a certeza de que Deus, que é rico em misericórdia, ainda terá misericórdia deles, se voltarem para Ele. Só devem temer e tremer aqueles que permanecem obstinados em seus maus caminhos, que continuam a resistir aos apelos da sua misericórdia e adiam sua conversão dia após dia. Pois, embora sua infinita misericórdia não conheça limites no perdão dos pecados, por mais numerosos e graves que sejam, se nos arrependermos, ainda assim as ofertas da sua misericórdia são limitadas e, se excedermos esses limites por nossa obstinação, não haverá mais misericórdia para nós. 

O tempo da misericórdia é determinado para cada um e, se deixarmos de aceitar suas ofertas dentro desse tempo, as portas da misericórdia se fecharão contra nós. Quando o noivo entra na câmara nupcial, as portas são fechadas, e as virgens tolas que não estavam preparadas são excluídas para sempre, com esta terrível reprovação de Jesus Cristo: 'Não vos conheço; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade'. Portanto, visto que nenhum homem sabe quanto tempo durará o tempo de misericórdia para ele, não deve demorar um momento sequer; se negligenciar a presente oferta, pode ser a última. Essa hora virá como um ladrão na noite, quando menos esperarmos, como o próprio Cristo nos assegura, e por isso Ele nos ordena que estejamos sempre prontos.

P. 26 - Que opinião, então, pode ser formada sobre a salvação de qualquer pessoa, em particular, que esteja fora da verdadeira Igreja de Cristo e viva em uma religião falsa?

Em resposta a isso, pode-se fazer outra pergunta: Que opinião você formaria sobre a salvação de alguém que esteja vivendo em estado aberto de pecado mortal, como adultério, roubo, impureza ou algo semelhante? Ninguém poderia presumir dizer que esse homem certamente se perderá; mas todos podem dizer que, se ele morrer nesse estado, sem arrependimento, não poderá ser salvo. Se for a vontade de Deus salvá-lo positivamente, Ele, antes que ele morra, lhe dará a graça do arrependimento sincero; porque o Deus Todo-Poderoso exige expressamente dos pecadores um arrependimento sincero como condição sem a qual eles não podem ser salvos: 'Se não vos arrependerdes, todos de igual modo perecereis' (Lc 13,3). 

O mesmo deve ser dito de uma pessoa que está fora da Igreja verdadeira e vive em uma religião falsa. Se ela morrer nesse estado, não poderá ser salva; e se for a vontade de Deus salvá-la de fato, Ele sem dúvida a trará para a verdadeira fé e a tornará membro da Igreja de Cristo antes que ela deixe este mundo; e a razão é a mesma que no outro caso. Deus, como vimos acima, exige que todos os homens estejam unidos à Igreja pela fé verdadeira como condição de salvação e, portanto, diariamente 'acrescenta à Igreja aqueles que serão salvos' (At 2,47). Agora, embora um homem seja um grande adversário da Igreja de Cristo no momento ou um grande pecador, embora seja membro da Igreja, ainda assim, como nenhum homem pode saber o que Deus pode querer fazer por qualquer um deles antes de morrer, então nenhum homem pode declarar e dizer que um ou outro estará perdido; pois, se Deus quiser, Ele pode dar a luz da verdadeira fé a um e a graça do verdadeiro arrependimento ao outro, mesmo em seus últimos momentos, e salvá-los.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

domingo, 20 de abril de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos!' (Sl 117)

Primeira Leitura (At 10,34a.37-43) - Segunda Leitura (Cl 3,1-4 ou 1Cor 5,6b-8) -  Evangelho (Jo 20,1-9)

  20/04/2025 - DOMINGO DE PÁSCOA

PÁSCOA DA RESSURREIÇÃO


Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos! A mão direita do Senhor fez maravilhas, a mão direita do Senhor me levantou. Não morrerei, mas, ao contrário, viverei para cantar as grandes obras do Senhor! Aleluia! Aleluia! Aleluia!

Eis o grande dia do Senhor, em que a vida venceu a morte, a luz iluminou as trevas, a glória de Deus se impôs aos valores do mundo. Jesus veio para fazer novas todas as coisas, abrir o caminho para o Céu, eternizar a glória de Deus na alma humana. Cristo Ressuscitado é a razão suprema de nossa fé, penhor maior de nossa esperança, causa de nossa alegria, plenitude do amor humano. Como filhos da redenção de Cristo, cantamos jubilosos a Páscoa da Ressurreição: 'Tende confiança! Eu venci o mundo' (Jo 16, 33).

O Triunfo de Cristo é o nosso triunfo pois o o Homem Novo tomou o lugar do homem do pecado. Mortos para o mundo, tornamo-nos herdeiros da ressurreição da nova vida em Deus: 'Se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres. Pois vós morrestes, e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus (Cl 3, 1-3).

Entremos com Pedro no sepulcro agora vazio de Jesus: 'Viu as faixas de linho deitadas no chão e o pano que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não posto com as faixas, mas enrolado num lugar à parte' (Jo 20, 6 -7). Este sepulcro vazio é a morte do pecado, a vitória da vida sobre a morte: 'Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?' (1 Cor 15, 55). Jesus ressuscitou! Bendito é o Senhor dos Exércitos que, com a sua Ressurreição, derrotou o mundo e nos fez herdeiros do Céu! Este é o dia da alegria suprema, do triunfo da vida, do gáudio eterno dos justos. Este é o dia que o Senhor fez para nós: alegremo-nos e nele exultemos!

segunda-feira, 14 de abril de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XXI)

 

97. É necessário discernir no Evangelho as coisas que são de conselho e as que são de preceito. Renunciar a tudo o que se tem e sofrer a pobreza por amor a Deus é só de conselho, mas renunciar a si mesmo e ser pobre de coração é de preceito. E, da mesma forma, certas humilhações exteriores podem ser apenas de conselho, mas a humildade de coração é sempre de preceito e, como não só é possível cumprir todos os preceitos de Deus, mas também, com a ajuda da sua graça, torna-se fácil e doce para nós praticá-los; até mesmo os leigos têm muitas grandes oportunidades de se tornarem santos simplesmente pelo exercício da humildade. Para fazer de um homem de mente mundana um santo, basta torná-lo um cristão.

Quando pensamentos como esses surgem nos recônditos secretos do coração: Eu fiz essa fortuna com meu conhecimento, com minha indústria; eu adquiri esse mérito, essa reputação por meu próprio valor, minha virtude, minha engenhosidade, é suficiente elevar o coração a Deus e dizer como o Homem Sábio: 'Como poderia subsistir qualquer coisa, se Vós não o tivésseis querido?' [Sb 11, 25]. Ó meu Deus, como eu poderia ter feito a menor coisa, se Vós não a tivésseis desejado? Essa é a verdadeira humildade e nela reside o verdadeiro conhecimento e a santidade. A alma é santa na medida em que é humilde, porque na mesma medida em que tem santidade, tem-se a graça, e na mesma medida em que tem a graça, tem-se a humildade, porque a graça só é dada aos humildes. Do fundo do meu coração, ó meu Deus, eu vos peço isso, e como o salmista eu exclamo: 'Renova em mim um espírito reto' [Sl 1, 12].

98. Mas o maior motivo que temos para nos obrigar a ser humildes é o exemplo de nosso Senhor Jesus Cristo, que desceu do céu para nos ensinar a humildade de que tanto necessitamos para curar nosso orgulho, a causa de todos os nossos males e o maior impedimento para nossa salvação eterna. 'Portanto, Cristo' - diz São Tomás - 'nos recomendou a humildade acima de tudo, porque por ela, mais especialmente, todos os obstáculos à salvação dos homens são removidos' [2a 2æ, qu. clxxi, art. 5 ad 3].

E, na verdade, Ele nos ensinou de forma excelente, não apenas por palavras, mas por ações. Meditemos sobre a vida de nosso Senhor na terra, desde a gruta de Belém até a cruz do Calvário; tudo respira humildade. Mais de uma vez, Ele declarou no Evangelho que veio não para cumprir a sua própria vontade, mas a do seu Pai celestial; não para buscar a sua própria glória, mas a do seu Pai celestial; e assim como pregou, assim viveu. Ele poderia ter glorificado a Majestade Divina de diversas outras maneiras, mas, em sua infinita sabedoria, escolheu o caminho da humildade como o mais adequado para render a Deus, por sua própria humildade, a honra da qual o orgulho do homem o privou.

Que humildade nascer em um estábulo... Aquele que era o Rei da Glória! Que humildade nele, que era a própria inocência, aparecer como pecador na circuncisão! Que humildade na fuga para o Egito para escapar da perseguição de Herodes, como se Ele fosse incapaz de se salvar de outra forma que não fosse pela fuga! Que humildade em sua sujeição a Maria e José, Ele que era o Rei de todo o universo! Que humildade em viver por trinta anos uma vida oculta de pobreza, Ele que poderia ter sido cercado por todo o esplendor do mundo! Com que humildade Ele suportou todos os insultos e calúnias que recebeu em troca das verdades que pregou e dos milagres que realizou, sem nunca reclamar ou lamentar os males que lhe foram feitos, nem a injustiça que lhe foi mostrada! Oh, se alguém pudesse olhar em seu coração, veria que a sua humildade não era obrigatória, mas voluntária, 'porque era a sua própria vontade' [cf Is 53,7].

Ele desejou humilhar-se dessa forma para que pudéssemos torná-lo nosso modelo, e Ele diz a cada um de nós: 'Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também' [Jo 13,15], o que significa que Ele nos deu esse exemplo para que pudéssemos aprender a nos humilhar, assim como Ele se humilhou de coração. Ah, será que esses exemplos de um Deus que se tornou homem e se humilhou não são suficientes para despertar em nós o desejo de nos tornarmos humildes também? 'Que o homem tenha vergonha de ser orgulhoso' - diz Santo Agostinho - 'por causa de quem um Deus se tornou humilde' [Enarr. in Ps. xviii].

99. E que lições de humildade não podemos aprender com a sagrada Paixão de nosso Senhor? São Pedro nos diz que Jesus Cristo sofreu por nós, deixando-nos o seu exemplo para que pudéssemos imitá-lo: 'Também Cristo sofreu por nós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos' [1Pd 2,21]. Ele não pretende que devamos imitá-lo sendo açoitados, coroados de espinhos ou pregados na cruz. Não; mas em toda a sua vida, e especialmente durante a sua Paixão, Ele repete a importante exortação de que devemos aprender com Ele a ser humildes: 'Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração' [Mt 11,29].

Que a nossa alma possa contemplar o Crucificado, 'que suportou a cruz, desprezando a vergonha' [Hb 12,2] e, ao confrontar assim a sua humildade com o nosso orgulho, ficaremos cheios de vergonha e confusão. E aprendamos ainda outra lição. Parece-lhe bem adorar a humildade de Jesus Crucificado e não desejar imitá-lo? Professar seguir Jesus Cristo em sua religião, que se baseia na humildade, e ainda assim sentir aversão e até mesmo ódio por essa mesma humildade? Mas quando tantas vezes ouvimos dizer e pregar que todo aquele que deseja ser salvo deve imitar o Salvador, em que imaginamos que essa imitação, que nos é ordenada e que é necessária para nossa salvação, deveria consistir senão na humildade? É muito bom dizer que devemos imitar Jesus, mas em que devemos imitá-lo senão nessa humildade que é o resumo de toda a doutrina e dos exemplos da sua vida?

Pois aquele Humilde na Cruz será o nosso Juiz e sua humildade será o padrão pelo qual se verá se seremos predestinados por tê-la imitado ou eternamente condenados por tê-la rejeitado. É necessário que estejamos firmemente convencidos dessa verdade. Deus não nos propõe que todos nós imitemos o seu Filho encarnado em todos os mistérios da sua vida. A solidão e a austeridade que Ele suportou no deserto são reservadas apenas para a imitação dos anacoretas. Em seus ensinamentos, Ele deve ser imitado apenas pelos apóstolos e pregadores do seu Evangelho. Na realização de milagres, só podem imitá-lo aqueles que foram escolhidos por Ele para serem coadjutores no firmamento da fé. Nos sofrimentos e na agonia do Calvário, ninguém pode imitá-lo, a não ser aqueles a quem Ele concedeu o privilégio do martírio.

Mas a humildade de coração praticada por Jesus Cristo em todas as horas da sua vida na Terra é dada a todos nós como um exemplo que somos obrigados a seguir e, a essa imitação, Deus uniu a nossa salvação eterna: 'A menos que você se converta e se torne como uma criancinha' [Mt 18,3]. Podemos acreditar que Jesus Cristo estava comparando-se com uma criancinha que tinha diante de si quando disse então: 'se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos Céus' [Mt 18,3].

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

domingo, 13 de abril de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?' (Sl 21)
 
Primeira Leitura (Is 50,4-7) - Segunda Leitura (Fl 2,6-11) -  Evangelho (Lc 19,28-40)

  13/04/2025 - DOMINGO DE RAMOS E DA PAIXÃO DO SENHOR

HOSANA AO FILHO DE DAVI!


No Domingo de Ramos, tem início a Semana Santa da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Jesus entra na cidade de Jerusalém para celebrar a Páscoa judaica com os seus discípulos e é recebido como um rei, como o libertador do povo judeu da escravidão e da opressão do império romano. Mantos e ramos de oliveira dispostos no chão conformavam o tapete de honra por meio do qual o povo aclamava o Messias Prometido: 'Hosana ao Filho de Davi: bendito seja o que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel; hosana nas alturas'.

Jesus, montado em um jumento, passa e abençoa a multidão em polvorosa excitação. Ele conhece o coração humano e pode captar o frenesi e a euforia fácil destas pessoas como assomos de uma mobilização emotiva e superficial; por mais sinceras que sejam as manifestações espontâneas e favoráveis, falta-lhes a densidade dos propósitos e a plena compreensão do ministério salvífico de Cristo. Sim, eles querem e preconizam nele o rei, o Ungido de Deus, movidos pelas fáceis tentações humanas de revanche, libertação, glória e poder. Mas Jesus, rei dos reis, veio para servir e não para reinar sobre impérios forjados pelos homens. '... meu reino não é deste mundo' (Jo 18, 36). Jesus vai passar no meio da multidão sob ovações e hosanas de aclamação festiva; Jesus vai ser levado sob o silêncio e o desprezo de tantos deles, uns poucos dias depois, para o cimo de uma cruz no Gólgota.

Neste Domingo de Ramos, o Evangelho evoca todas as cenas e acontecimentos que culminam no calvário de Nosso Senhor Jesus Cristo: os julgamentos de Pilatos e Herodes, a condenação de Jesus, a subida do calvário, a crucificação entre dois ladrões e a morte na cruz... 'Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito' (Lc 23,46). E desnuda a perfídia, a ingratidão, a falsidade e a traição dos que se propõem a amar com um amor eivado de privilégios e concessões aos seus próprios interesses e vantagens.

A fé é forjada no cadinho da perseverança e do despojamento; sem isso, toda crença é superficial e inócua e, ao sabor dos ventos, tende a se tornar em desvario. Dos hosanas de agora ao 'Crucifica-o! Crucifica-o!' (Lc 23, 20) de mais além, o desvario humano fez Deus morrer na cruz. O mesmo desvario, o mesmo ultraje, a mesma loucura que se repete à exaustão, agora e mais além no mundo de hoje, quando, em hosanas ao pecado, uma imensa multidão, em frenesi descontrolado, crucifica Jesus de novo em seus corações!

quinta-feira, 10 de abril de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCIX)

Capítulo XCIX

Meios de se Evitar o Purgatório - Devoção Especial à Santíssima Virgem - O Uso Cotidiano do Escapulário do Carmo

Um Servo de Deus resume estes meios e os reduz a dois, dizendo: 'Purifiquemos as nossas almas pela água e pelo fogo'; isto é, pela água das lágrimas e pelo fogo da caridade e das boas obras. De fato, podemos classificá-los todos nestes dois exercícios, e isto é conforme à Sagrada Escritura, onde vemos que as almas são limpas das suas manchas e purificadas como o ouro no crisol. Mas como devemos procurar acima de tudo ser práticos, sigamos o método que indicamos e que foi praticado, com tanto sucesso, pelos santos e por todos os cristãos fervorosos.

Em primeiro lugar, para obter uma grande pureza de alma e, por conseguinte, ter poucos motivos para temer o Purgatório, devemos nutrir uma grande devoção para com a Santíssima Virgem Maria. Esta boa Mãe ajudará de tal modo os seus queridos filhos a purificar as suas almas e a abreviar o seu Purgatório, que eles poderão viver com a maior confiança. Ela deseja mesmo que eles não se preocupem com este assunto e que não se deixem desanimar por um medo excessivo, como ela própria se dignou declarar ao seu servo Jerônimo Carvalho, de quem já falamos. 'Tem confiança, meu filho' - disse-lhe ela - 'Eu sou a Mãe de Misericórdia para os meus queridos filhos no Purgatório, assim como para os que ainda vivem na terra'. Nas Revelações de Santa Brígida, lemos algo semelhante: 'Eu sou' - disse-lhe a Santíssima Virgem - 'a Mãe de todos aqueles que estão no lugar de expiação; as minhas orações mitigam os castigos infligidos a eles por suas faltas' (Livro 4, cap. 1).

Aqueles que usam o santo escapulário têm um direito especial à proteção de Maria. A devoção do santo escapulário, ao contrário da do Rosário, não consiste na oração, mas na prática piedosa de usar uma espécie de hábito, que é como a veste da Rainha do Céu. O escapulário de Nossa Senhora do Carmo, de que aqui falamos, tem a sua origem no século XIII, e foi pregado pela primeira vez pelo Beato (São) Simão Stock, quinto Geral da Ordem do Carmo. Este célebre servo de Maria, nascido em Kent, na Inglaterra, no ano de 1165, quando ainda era jovem, retirou-se para uma floresta solitária para se dedicar à oração e à penitência. Escolheu como morada o oco de uma árvore, ao qual fixou um crucifixo e uma imagem da Santíssima Virgem, a quem honrava como sua Mãe e não cessava de invocar com o mais terno afeto. Durante doze anos, suplicou-lhe que lhe dissesse o que poderia fazer de mais agradável ao seu Divino Filho, quando a Rainha do Céu lhe disse que entrasse na Ordem do Carmo, que era particularmente dedicada ao seu serviço. Simão obedeceu e, sob a proteção de Maria, tornou-se um religioso exemplar e o ornamento da Ordem do Carmo, da qual foi eleito Superior Geral em 1245.

Um dia - era o dia 16 de julho de 1251 - a Virgem Santíssima apareceu-lhe rodeada por uma multidão de espíritos celestes e, com o rosto radiante de alegria, apresentou-lhe um escapulário de cor castanha, dizendo: 'Recebe, meu querido filho, este escapulário da tua Ordem; é o distintivo da minha Confraria e o penhor de um privilégio que obtive para ti e para os teus irmãos do Carmo. Aqueles que morrerem devotamente vestidos com este hábito serão preservados do fogo eterno. É o sinal da salvação, uma salvaguarda no perigo, um penhor de paz e de proteção especial, até ao fim dos tempos'. O feliz ancião divulgava por toda a parte o favor que recebera, mostrando o escapulário, curando os doentes e fazendo outros milagres em prova da sua maravilhosa missão. Imediatamente, Eduardo I, rei de Inglaterra e Luís IX, rei de França e, depois do seu exemplo, quase todos os soberanos da Europa, bem como um grande número dos seus súditos, receberam o mesmo hábito. A partir desse momento começa a célebre Confraria do Escapulário, que pouco depois foi erigida canonicamente pela Santa Sé.

Não contente com a concessão deste primeiro privilégio, Maria fez outra promessa em favor dos membros da Confraria do Escapulário, assegurando-lhes uma rápida libertação dos sofrimentos do Purgatório. Cerca de cinquenta anos após a morte do Beato Simão, o ilustre Pontífice João XXII, quando estava a rezar de manhã cedo, viu a Mãe de Deus aparecer rodeada de luz e com o hábito do Monte Carmelo. Entre outras coisas, ela lhe disse: 'Se entre os Religiosos ou membros da Confraria do Carmo houver alguns que, por causa das suas faltas, estejam condenados ao Purgatório, eu descerei para o meio deles como uma terna Mãe no sábado depois da sua morte; livrá-los-ei e conduzi-los-ei ao monte santo da vida eterna'. São estas as palavras que o Pontífice coloca nos lábios de Maria na sua célebre Bula de 3 de março de 1322, vulgarmente chamada Bula Sabatina. Ele conclui com estas palavras: 'Aceito, pois, esta santa indulgência; ratifico-a e confirmo-a na terra, como Jesus Cristo graciosamente a concedeu no céu pelos méritos da Santíssima Virgem'. Este privilégio foi depois confirmado por um grande número de Bulas e Decretos dos Soberanos Pontífices.

Tal é a devoção do santo escapulário. É sancionada pela prática das almas piedosas em todo o mundo cristão, pelo testemunho de vinte e dois papas, pelos escritos de um número incalculável de autores piedosos, e por milagres multiplicados durante os últimos 600 anos; de modo que, como nos diz o ilustre Bento XIV: 'aquele que ousa por em causa a validade da devoção do escapulário ou negar os seus privilégios, seria um orgulhoso desdenhador da religião'.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (XI)

P. 23 -  Mas suponhamos que uma pessoa esteja nas regiões selvagens da Tartária ou da América, onde o nome de Cristo nunca foi ouvido; suponhamos também que essa pessoa atenda aos ditames da consciência, iluminada pelas graças que Deus se agrada em lhe conceder, e os cumpra constantemente; ainda assim, como é possível que ela seja levada ao conhecimento e à fé em Jesus Cristo?

Esse caso é certamente possível; e, se isso acontecer, não se deve duvidar de que Deus Todo-Poderoso, dos tesouros da sua infinita sabedoria, providenciaria algum meio de levar essa pessoa ao conhecimento da verdade, mesmo que Ele enviasse um anjo do céu para instruí-la. A mão do Senhor não está recolhida, para que Ele não possa salvar uma pobre alma, em quaisquer dificuldades que possa estar; Ele fez, em tempos passados, coisas maravilhosas em casos desse tipo e Ele não é menos capaz de fazer o mesmo novamente. Uma vez que Ele ordenou tão claramente que, fora da verdadeira Igreja e sem a verdadeira fé em Cristo, não há salvação, não pode haver dúvida de que, no caso proposto, Ele cuidaria efetivamente de trazer tal pessoa para essa felicidade.

P. 24 - Existe alguma autoridade nas Escrituras para provar isso?

Não pode haver prova mais forte nas Escrituras do que alguns fatos ali relatados. Temos nas Escrituras dois belos exemplos de Deus agindo dessa maneira em casos semelhantes, o que mostra que Ele faria o mesmo novamente, se algum caso o exigisse. O primeiro é o caso do eunuco de Candace, rainha da Etiópia. Ele, seguindo as luzes que Deus lhe deu, embora vivendo a uma grande distância de Jerusalém, familiarizou-se com a adoração do verdadeiro Deus e estava acostumado a ir de tempos em tempos a Jerusalém para adorá-lo. Quando, porém, o Evangelho começou a ser publicado, a religião judaica não pôde mais salvá-lo; mas estando bem disposto, por fidelidade às graças que havia recebido até então, ele não foi abandonado pelo Deus Todo-Poderoso; pois quando ele estava voltando de Jerusalém para seu país, o Senhor enviou uma mensagem por um anjo a São Filipe para encontrá-lo e instruí-lo na fé de Cristo, e batizá-lo (At 8,26).

O outro exemplo é o de Cornélio, que era um oficial do exército romano do grupo itálico e foi criado na idolatria. No decorrer dos acontecimentos, quando seu regimento chegou à Judéia, ele viu ali uma religião diferente da sua, a adoração de um único Deus. A graça moveu o seu coração, ele acreditou nesse Deus e, seguindo os movimentos posteriores da graça divina, deu muitas esmolas aos pobres e orou fervorosamente a esse Deus para que o orientasse sobre o que fazer. Deus o abandonou? De modo algum; Ele enviou um anjo do céu para lhe dizer a quem se dirigir a fim de ser totalmente instruído no conhecimento e na fé de Jesus Cristo e ser recebido em sua Igreja pelo batismo. 

O que Deus fez nesses dois casos, Ele não é menos capaz de fazer em todos os outros, e tem mil maneiras em ua sabedoria de conduzir as almas que estão realmente empenhadas no conhecimento da verdade e na salvação. E ainda que tal alma estivesse nas mais remotas regiões selvagens do mundo, Deus poderia enviar um Filipe ou um anjo do céu para instruí-la, pela superabundância da sua graça interna ou por inúmeras outras maneiras desconhecidas para nós, poderia infundir em sua alma o conhecimento da verdade. O mais importante é que façamos cuidadosamente a nossa parte, cumprindo o que Ele nos dá, pois temos certeza de que, se não lhe faltarmos, Ele nunca faltará a nós, mas, assim como começou a boa obra em nós, também a aperfeiçoará, se tivermos o cuidado de corresponder e não colocar obstáculos aos seus desígnios.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

domingo, 6 de abril de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Maravilhas fez conosco o Senhor, exultemos de alegria!' (Sl 125)

Primeira Leitura (Is 43,16-21) - Segunda Leitura (Fl 3,8-14) -  Evangelho (Jo 8,1-11)

  06/04/2025 - QUINTO DOMINGO DA QUARESMA

JESUS E A MULHER ADÚLTERA 


Neste Quinto Domingo da Quaresma, o Evangelho ratifica, mais uma vez, o testamento da misericórdia infinita de Deus. Deus, sendo Amor e Misericórdia infinitos, quer a salvação do homem e espera, com imensos tesouros da graça e paciência, a volta do filho pródigo ou a conversão da mulher adúltera, a floração da figueira ainda estéril, o encontro da dracma perdida ou o reencontro com a ovelha desgarrada.

Jesus está no templo, depois de uma noite de orações no Monte das Oliveiras, pregando sabedoria e misericórdia ao povo reunido à sua volta. E eis que, de repente, é interrompido pela entrada súbita de um bando de fariseus que trazem consigo uma mulher apanhada em adultério. Os fariseus interrogam Jesus, então, com malícia diabólica: 'Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?' (Jo 8, 4-5). O dilema impetrado pela iniquidade era sórdido: Jesus, condenando a pecadora à morte, violaria a lei romana ou salvando-lhe a vida, desconsideraria a Lei de Moisés. Qualquer que fosse a sua decisão, manifestada publicamente no Templo, Jesus estaria exposto às violações e sanções das leis romanas ou às do Sinédrio.

Diante da investida maliciosa, 'Jesus, inclinando-se, começou a escrever com o dedo no chão' (Jo 8, 6). Trata-se da única referência a Jesus escrevendo nas Escrituras. O que teria Jesus escrito no chão? Palavras ou uma frase inteira? Os nomes ou a relação dos pecados dos homens à sua volta? Com o dedo no chão...seria o piso de uma das áreas internas do Templo de terra solta ou areia? Num piso de pedra, como entender a escrita do dedo de Jesus? Perguntas sem respostas ecoando pelos tempos. Mas, certamente, foi algo que lhes dissipou o frêmito. Por que diante ainda de questionamentos de outros e ante a resposta contundente de Jesus: 'Quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra' (Jo 8, 7), começaram a sair em silêncio, um a um, a começar dos mais velhos. Não ficou nenhum dos acusadores e a mulher adúltera se viu, então, sozinha diante de Jesus. E Jesus manifesta à mulher pecadora a imensa misericórdia de Deus e a graça do perdão: 'Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais' (Jo 8, 11).

Naquele dia, no templo, os fariseus transtornados de orgulho tornaram-se réus de sua própria malícia e suspeição; a mulher, exposta à execração pública pelo pecado cometido, obteve a graça do perdão. Naquele dia, no templo, não sabemos exatamente o que Jesus escreveu no chão, mas foi algo que marcou indelevelmente o tesouro das graças divinas, numa mensagem gravada a ferro e a fogo no coração humano: 'Quero a misericórdia e não o sacrifício...' (Mt 12, 7).

segunda-feira, 31 de março de 2025

QUESTÕES SOBRE A DOUTRINA DA SALVAÇÃO (X)

P. 21 - Como se demonstra que se um homem resistir ou negligenciar as graças de Deus, elas lhe serão tiradas? E ainda: se ele se perder, que a culpa é sua?

Isto também é manifesto em toda a Escritura, mas para que este ponto possa ser completamente compreendido, devemos considerar as diferentes consequências fatais que fluem de um abuso obstinado destas graças.

(i) Estas graças são retiradas deles; não, de fato, de uma só vez, pois Deus, em sua infinita misericórdia, espera pacientemente pelos pecadores, e repete os seus esforços para sua conversão; mas se eles ainda resistem ou abusam de suas graças, estas são diminuídas e dadas mais raramente. Assim diz o nosso Salvador do servo inútil: 'Tirai-lhe a moeda... porque ao que não tem, até o que tem lhe será tirado' (Lc 19,24.26). Como assim? Se ele não tem, como é que alguma coisa lhe pode ser tirada? O sentido é: aquele que não melhorou o que tem, até o que tem lhe será tirado. O mesmo é repetido em várias outras ocasiões.

(ii) Quanto mais as graças de Deus são enfraquecidas ou retiradas dos pecadores por seu repetido abuso delas, mais suas paixões são fortalecidas em seus corações, adquirindo maior domínio sobre eles, até que finalmente se tornam seus miseráveis escravos; 'Meu povo não ouviu minha voz' - diz o Deus Todo-Poderoso - 'Israel não me ouviu: então eu os deixei ir de acordo com os desejos de seu coração; eles andarão em suas próprias invenções (Sl 80,12). E São Paulo assegura-nos que, embora os sábios entre as nações pagãs, pela luz da própria razão, chegaram a um claro conhecimento da existência de Deus e do seu poder e divindade, mas 'porque, conhecendo a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, extraviaram-se em seus vãos pensamentos, e se lhes obscureceu o coração insensato... Por isso, Deus os entregou aos desejos dos seus corações, à imun­dície' (Rm 1,21.24).

(iii) Se a obstinação deles ainda aumenta, e eles continuam a fechar os olhos para a luz da verdade que Deus lhes oferece, Ele então permite que eles sejam seduzidos pela falsidade, por 'dar ouvidos a espíritos de erro e doutrinas de demônios' (1Tm 4,1). Assim, 'Ele usará de todas as seduções do mal com aqueles que se perdem, por não terem cultivado o amor à verdade que os teria podido salvar. Por isso, Deus lhes enviará um poder que os enganará e os induzirá a acreditar no erro. Desse modo, serão julgados e condenados todos os que não deram crédito à verdade, mas consentiram no mal' (2T 2,10-12). 10. Este texto forte mostra claramente duas grandes verdades; primeiro, que Deus oferece a verdade a todos; e, segundo, que a fonte da condenação deles é inteiramente deles mesmos, ao se recusarem a recebê-la.

(iv) Se, portanto, eles ainda continuarem em sua perversidade, e morrerem em seus pecados, uma terrível condenação será sua porção para sempre; para eles 'Por isso, jurei na minha cólera: não hão de entrar no lugar do meu repouso (Sl 94,11). Sobre eles, Ele pronuncia aquela terrível sentença: 'Uma vez que recusastes o meu chamado e ninguém prestou atenção quando estendi a mão, uma vez que negligenciastes todos os meus conselhos e não destes ouvidos às minhas admoestações, também eu rirei do vosso infortúnio e zombarei, quando vos sobrevier um terror, quando vier sobre vós um pânico, como furacão; quando se abater sobre vós a calamidade, como a tempestade; e quando caírem sobre vós tribulação e angústia. Então me chamarão, mas não responderei; eles me procurarão, mas não atenderei. Porque detestam a ciência sem lhe antepor o temor do Senhor, porque repelem meus conselhos com desprezo às minhas exortações; comerão do fruto dos seus erros e se saciarão com seus planos, porque a apostasia dos tolos os mata e o desleixo dos insensatos os perde' (Pv 1, 24-32). 

A condenação deles é prefigurada na de Jerusalém, que havia sido rebelde a todos os apelos de Deus, e sobre cujo destino nosso Salvador lamenta com estas palavras tocantes: 'Jerusalém, Jerusalém! Que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados; quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste! Eis que a tua casa te será deixada deserta' (Mt 23,37-38). 'Eu quis, e tu não quiseste!' Este é o grande crime cometido por eles. 'Enviei-vos os meus profetas e servos, as minhas graças, luzes e intenções sagradas, mas vós os matastes e destruístes, e não lhes destes ouvidos!' O destino miserável de todos esses infelizes pecadores, prefigurado em Jerusalém, arrancou lágrimas dos olhos de Jesus, quando Ele chorou sobre aquela cidade e disse: 'Se também tu, ao menos neste dia que te é dado, conhecesses o que te pode trazer a paz! Mas não, isso está oculto aos teus olhos. Virão sobre ti dias em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras, te sitiarão e te apertarão de todos os lados; eles destruirão a ti e a teus filhos que estiverem dentro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra, porque não conheceste o tempo em que foste visitada' (Lc 19,42-44). São aqueles que, tendo sido convidados para a ceia nupcial do grande Rei, rejeitaram o seu convite e mataram os seus servos; por isso 'Ele enviou os seus exércitos e destruiu aqueles assassinos, e queimou a sua cidade' (Mt 22,7), declarando depois que 'o banquete está pronto, mas os convidados não foram dignos' (Mt 22,8).

P. 22 - Qual é a consequência de todas essas verdades?

A consequência é muito clara, a saber: embora Deus Todo-Poderoso tenha se agradado em ordenar que ninguém será salvo uma vez que não tenha a verdadeira fé em Jesus Cristo, e não esteja em comunhão com a sua santa Igreja, ainda assim isso não é de forma alguma inconsistente com a infinita bondade de Deus, porque Ele dá a todos as graças suficientes, pelas quais eles podem, se corresponderem a elas, ser trazidos para a verdadeira fé e Igreja de Cristo; e que, se alguém se perde, não é devido a qualquer falta de bondade em Deus, mas ao seu próprio abuso das graças que lhes foram concedidas. A alguns, na verdade, Ele concede essas graças mais abundantemente, dando-lhes cinco talentos; a outros, Ele dá mais parcimoniosamente, dois talentos e a outros apenas um; mas Ele dá a todos o suficiente para suas necessidades atuais, e dará mais se estas forem melhoradas, até que finalmente Ele os leve ao conhecimento da verdade e à salvação.

(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)

domingo, 30 de março de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Provai e vede quão suave é o Senhor!' (Sl 33)

Primeira Leitura (Js 5,9a.10-12) - Segunda Leitura (2Cor 5,17-21) -  Evangelho (Lc 15,1-3.11-32)

  30/03/2025 - QUARTO DOMINGO DA QUARESMA

PAI DE MISERICÓRDIA


Neste Quarto Domingo da Quaresma, São Lucas nos mostra uma das páginas mais belas dos Evangelhos, que é a parábola do filho pródigo. Que poderia muito bem ser a parábola da verdadeira conversão. Ou, com muito mais correção e sentido espiritual, a parábola do pai de misericórdia. Três personagens: o filho mais velho e o filho mais novo que, em meio às dolorosas experiências da vida humana, se reencontram no grande abraço da misericórdia do pai.

Com a parte da herança que lhe cabe, o 'filho mais novo' opta pelo caminho fácil e tortuoso dos prazeres e vícios humanos, dos instintos insaciados, do vazio do mal. E esbanja, na via dolorosa do pecado, os bens que possuía: a alma pura, o coração sincero, os nobres sentimentos, a fortuna da graça. E, a cada passo, se afunda mais e mais no lodo das paixões humanas desregradas, da vida consumida no nada. Mas, eis que chega o tempo da reflexão madura, da conversão sincera, do caminho de volta ao Pai: 'Pequei contra ti; já não mereço ser chamado teu filho' (Lc 15, 18-19).

O pai nem ouve as palavras do filho pródigo; no abraço da volta, somente ecoa pelos tempos a misericórdia de Deus: 'Haverá maior alegria no Céu por um pecador que fizer penitência que por noventa e nove justos que não necessitem de arrependimento' (Lc 15, 7). Diante do filho que volta, um coração de misericórdia aniquila a justiça da razão: 'Trazei depressa a melhor túnica para vestir o meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés' (Lc, 15, 22). Como as talhas de água que se tornam vinho, a conversão verdadeira apaga e aniquila o mal desejado e consumido outrora: na reconciliação de agora desfaz-se em pó as misérias passadas de uma vida de pecado.

O 'filho mais velho' não se move por igual misericórdia e se atém aos limites difusos da justiça humana. Na impossibilidade absoluta de compreender o júbilo do pai com o filho que volta, faz-se vítima e refém da soberba e do orgulho humano: 'tu nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos' (Lc, 15,29). O filho mais novo, que estava tão longe, está lá dentro outra vez. E o filho mais velho, que sempre lá esteve, recusa-se agora a entrar na casa do pai. Tal como no caso do primeiro filho, o pai de misericórdia vem, mais uma vez, buscar a ovelha desgarrada no filho mais velho que está fora e não quer entrar. Porque Deus, pura misericórdia, quer salvar a todos os seus pobres filhos afastados de casa e espera, com paciência e amor infinitos, a volta dos filhos pródigos e a volta dos seus filhos que creem apenas na justiça dos homens.

sexta-feira, 28 de março de 2025

TRATADO SOBRE A HUMILDADE (XX)


93. Esforcemo-nos com todas as nossas forças para adquirir esta santa humildade; e se, com a ajuda de Deus, conseguirmos possuí-la apenas na medida em que o nosso estado de vida o exija, então ou alcançaremos impercetivelmente todas as outras virtudes ou esta humildade, por si só, bastará para compensar todas as nossas deficiências. Muitas pessoas desejam possuir a castidade ou a caridade, a doçura ou a paciência, ou qualquer outra virtude de que sejam mais necessitadas, e estão muito ansiosas por saber como devem adquiri-la; consultam vários diretores espirituais para saber que meios devem tomar, mas muito poucos exercem a devida prudência na escolha desses meios.

Desejais conhecer os meios mais eficazes para adquirir essas virtudes? Começai então por procurar adquirir a humildade; impregnai-vos de humildade, e vereis que todas as outras virtudes se seguirão sem qualquer esforço da vossa parte, e exclamareis com grande alegria 'com ela me vieram todos os bens' [Sb 7,11]. E mesmo quando, devido à fragilidade da tua própria natureza, fores deficiente em alguma virtude particular, humilha-te e essa humildade compensará plenamente as tuas outras deficiências.

Há quem se perturbe porque as suas orações estão cheias de distrações. Isso provém do orgulho, que é bastante presunçoso para se espantar com a fraqueza e a impotência do espírito. Quando perceberdes que o vosso pensamento está a divagar, fazei um ato de humildade e exclamai: 'Ó meu Deus, que criatura abjeta sou eu, não podendo fixar o meu pensamento em Vós, nem sequer por alguns instantes'. Renovai este ato de humildade todas as vezes que estas distrações ocorrerem e, se está escrito sobre a caridade que 'ela cobre uma multidão de pecados' (1Pd 4,8), o mesmo se aplica à humildade e contribui grandemente para a nossa perfeição. 'O próprio conhecimento da nossa imperfeição' - diz Santo Agostinho - 'tende ao louvor da humildade' [Lib. 3 ad Bonif., c. vii].

94. Temos mais oportunidades de praticar a humildade do que qualquer outra virtude. Quantas ocasiões temos de nos humilhar secretamente, em todos os lugares, em todos os momentos, em todas as ocasiões: para com Deus, para com os nossos semelhantes e até para conosco mesmos! Em relação a Deus: de quanto nos devemos envergonhar na nossa ignorância e ingratidão para com Ele, recebendo como recebemos contínuos benefícios da sua infinita bondade. Conhecendo a sua suprema e infinita majestade, merecedora de todo o temor; a sua infinita bondade, digna de todo o amor; quanto nos devemos humilhar ao pensar no pouco temor e amor que lhe temos! Em relação ao nosso próximo: se ele for mau, podemos humilhar-nos, pensando que somos capazes de nos tornarmos subitamente piores do que ele, e que, de fato, podemos considerar-nos já piores, se o orgulho predominar em nós. Se ele for bom, devemos humilhar-nos pensando que ele corresponde melhor do que nós à graça de Deus e é melhor do que nós por causa da sua humildade de coração. Em relação a nós mesmos, nunca nos faltam ocasiões de humildade quando recordamos os nossos pecados passados, ou consideramos as faltas que cometemos atualmente na nossa vida cotidiana, ou ainda quando refletimos sobre as nossas boas obras, todas elas manchadas de imperfeição, ou quando pensamos no futuro tão cheio de tremendas incertezas: 'Sei viver na penúria, e sei também viver na abundância' [Fp 4,12], diz São Paulo. É necessário que criemos o bom hábito de renovar frequentemente estes atos interiores de humildade. A humildade não é mais do que um hábito virtuoso, mas como adquiri-lo sem fazer repetidos atos de humildade? Como o hábito da humildade, o hábito do orgulho é adquirido pela repetição frequente de seus atos e, à medida que o hábito da humildade se fortalece, o hábito contrário do orgulho se enfraquece e diminui.

95. Lúcifer só pecou uma vez por orgulho de pensamento. Não deveríamos, pois, considerar-nos piores do que Lúcifer, uma vez que o nosso orgulho tornou-se habitual pela repetição frequente de seus atos? Não nos consideramos orgulhosos porque não nos parece que sejamos suficientemente imprudentes em nossas mentes para acreditar que nos assemelhamos a Deus ou para nos rebelarmos contra Deus; mas este é o maior erro que podemos cometer, porque estamos cheios de orgulho e não reconheceremos que somos orgulhosos. Mesmo que não tenhamos orgulho suficiente para nos revoltarmos, para pensarmos ou falarmos contra Deus, devemos estar plenamente conscientes de que o orgulho que nos leva a agir é muito pior do que o orgulho do pensamento, e é aquele orgulho que é tão condenado por São Paulo: 'Eles professam que conhecem a Deus, mas em suas obras o negam' [Tt 1,16].

Como é grande o nosso amor-próprio! Será que alguma vez mortificamos as nossas paixões por amor de Deus, como Ele próprio ordenou? Quantas vezes preferimos seguir a nossa própria vontade em vez da vontade de Deus, e como a sua vontade é contrária à nossa, colocamo-nos em oposição a Ele e desejamos obter a nossa própria vontade em vez de cumprir a sua, valorizando mais a satisfação dos nossos desejos do que a obediência que devemos a Deus! Não será este um orgulho pior do que o de Lúcifer? Pois Lúcifer só queria igualar-se a Deus, ao passo que nós queremos elevar a nossa vontade acima da de Deus. Deves humilhar-te, ó minha alma, até abaixo de Lúcifer, e confessar que és mais orgulhosa do que ele!

96. Podemos comparar-nos àqueles que, sofrendo de mau hálito em consequência de alguma doença, tornam-se desagradáveis aos que deles se aproximam, embora eles próprios não o saibam. Da mesma forma, quando estamos corrompidos pelo orgulho interior, exalamos os sinais exteriores dele em nossas palavras, olhares e gestos e de mil outras maneiras, conforme a ocasião e, no entanto, embora nosso orgulho seja visível para todos os que se aproximam de nós, nós mesmos o ignoramos. Os que me conhecem consideram-me orgulhoso, e não se enganam, pois demonstro isso pela minha vaidade, arrogância, petulância e altivez. Só eu não me conheço tal como sou e se me questiono: sou orgulhoso? 'Não', respondo, oferecendo a mim próprio um incenso que é mais nauseabundo do que qualquer outra coisa.

('A Humildade de Coração', de Fr. Cajetan (Gaetano) Maria de Bergamo, 1791, tradução do autor do blog)

domingo, 23 de março de 2025

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'O Senhor é bondoso e compassivo' (Sl 102)

Primeira Leitura (Ex 3,1-8a.13-15) - Segunda Leitura (1Cor 10,1-6.10-12) -  Evangelho (Lc 13,1-9)

  23/03/2025 - TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA

A FIGUEIRA ESTÉRIL

Neste Terceiro Domingo da Quaresma, o Evangelho nos exorta a viver contínua e decididamente o caminho da plena conversão. E a busca da conversão exige de nós o afastamento incondicional do pecado e a via da santificação plena, como receptáculos abertos a toda a graça de Deus. Entre a retidão de nossos propósitos e a misericórdia do Pai, encontra-se o nosso lugar no portal da eternidade.

E Jesus nos fala primeiro que a grande tragédia humana é o pecado: 'Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa?' (Lc 13,2). Jesus falava dos galileus que tinham sido assassinados no templo por ocasião da Páscoa, a mando de Pilatos. Ele mesmo responderia que não, da mesma forma que não eram mais pecadores as 18 pobres vítimas da queda da torre de Siloé. A justiça divina não é amalgamada pelo castigo em si, mas pela resistência persistente e obstinada aos tesouros da graça. Não são desgraçados os que morrem em tragédias humanas, são miseráveis os que perdem a alma e a vida eterna consumidos na tragédia pessoal de apenas querer ganhar o mundo. 'Se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo' (Lc 13, 5).

Jesus ratifica estes ensinamentos com a parábola da figueira estéril, que não produz bons frutos, ano após ano, símbolo da alma fechada a todas as graças recebidas. Mas o Senhor busca incessantemente a volta da ovelha desgarrada e a espera e a consome de favores e bênçãos, porque o 'Senhor é indulgente, é favorável, é paciente, é bondoso e compassivo' (Sl 102). É como o vinhateiro que nunca descuida da planta bruta, cultiva o solo, dispõe o adubo, rega a terra, acompanha ciosa e pacientemente os seus primeiros frutos. No nosso caminho de vida espiritual, o vinhateiro é o próprio Cristo, é Nossa Senhora, é a Santa Igreja, são os santos intercessores, é o nosso próprio Anjo da Guarda. Um derramamento abundante de graças à espera de nosso arrependimento sincero, de nossa dor ao pecado, de nossa conversão definitiva.

Mas o Evangelho termina também com uma determinação explícita: 'Se (a figueira) não der (fruto), então tu a cortarás’ (Lc 13,9). Assim, uma vez desprezados todos os limites da graça e tornados vãos todos os esforços do vinhateiro, a figueira torna-se inútil e a tragédia humana se consome na perda eterna das almas criadas para a glória de Deus.

sábado, 22 de março de 2025

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XCVIII)

 

Capítulo XCVIII

Vantagens e Recompensas pela Devoção às Santas Almas - Estímulo à Devoção e Probabilidade do Purgatório - Meios de se Evitar o Purgatório - Conselho de Santa Catarina de Gênova

Se os santos religiosos passam pelo Purgatório, embora não fiquem retidos nele, não devemos temer que não só passemos por ele, mas também permaneçamos por mais ou menos tempo? Podemos viver numa segurança que seria, para dizer o mínimo, muito imprudente? A nossa fé e a nossa consciência dizem-nos que o nosso medo do Purgatório é bem fundamentado. Vou ainda mais longe, caro leitor, e digo que, com um pouco de reflexão, tu mesmo deves reconhecer que é muito provável, e quase certo, que irás para o Purgatório. Não é verdade que, ao deixar esta terra, a tua alma entrará numa dessas três moradas que a fé nos indica: Inferno, Céu ou Purgatório? Ireis para o Inferno? Não é provável, porque tendes horror ao pecado mortal, e por nada no mundo o cometeríeis, nem o teríeis na consciência depois de o terdes cometido. Ireis para o Céu? Respondeis imediatamente que vos julgais indignos de tal favor. Resta, então, o Purgatório; e deveis reconhecer que é muito provável, quase certo, que ireis para esse lugar de expiação.

Ao colocar esta grave verdade diante dos vossos olhos, não penseis, caro leitor, que queremos assustar-vos, ou tirar-vos toda a esperança de entrar no Céu sem o Purgatório. Pelo contrário, esta esperança deve permanecer sempre profundamente impressa nos nossos corações, pois é o espírito de Jesus Cristo, que não deseja de modo algum que os seus discípulos tenham necessidade de uma expiação futura. Ele até instituiu sacramentos e estabeleceu todos os tipos de meios para nos ajudar a fazer plena satisfação neste mundo. Mas esses meios são muitas vezes negligenciados; e é especialmente por um temor salutar que somos estimulados a fazer uso deles.

Ora, quais são os meios que devemos empregar para evitar, ou pelo menos abreviar, o nosso Purgatório e atenuar o seu rigor? São, evidentemente, os exercícios e as boas obras que mais nos ajudam a satisfazer as nossas faltas neste mundo e a encontrar misericórdia diante de Deus, a saber: a devoção à Santíssima Virgem Maria e a fidelidade no uso do seu escapulário; a caridade para com os vivos e os mortos; a mortificação e a obediência; a piedosa recepção dos sacramentos, especialmente quando se aproxima a morte; a confiança na Divina Misericórdia; e, finalmente, a santa aceitação da morte em união com a morte de Jesus na cruz.

Estes meios são suficientemente poderosos para nos preservar do Purgatório, mas é preciso fazer uso deles. Ora, para empregá-los seriamente e com perseverança, uma condição é necessária: formar uma firme resolução de satisfazer [o purgatório pessoal] neste mundo e não no outro. Essa resolução deve ser baseada na fé, que nos ensina quão fácil é a satisfação nesta vida, quão terrível é o Purgatório. Enquanto estiveres no caminho com o teu adversário, diz Jesus Cristo, faze um acordo com ele, para que, porventura, o teu adversário não te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e sejas lançado na prisão. Em verdade vos digo que não sairás dali até que pagueis o último ceitil (Mt 5,25).

Reconciliarmo-nos com o nosso adversário no caminho significa, na boca de Nosso Senhor, apaziguar a Justiça Divina, e satisfazermo-nos no caminho da vida, antes de chegarmos àquele fim imutável, àquela eternidade onde toda a penitência é impossível, e onde teremos de nos submeter a todos os rigores da Justiça. Não é este conselho do nosso Divino Salvador muito sábio?

Poderemos comparecer diante do tribunal de Deus, carregados de uma dívida enorme, que poderíamos tão facilmente ter saldado com algumas obras de penitência, e que depois teremos de pagar com anos de tormento? 'Aquele que se purifica de suas faltas na vida presente' - diz Santa Catarina de Gênova - 'satisfaz com um centavo uma dívida de mil ducados; e aquele que espera até a outra vida para saldar suas dívidas, consente em pagar mil ducados por aquilo que antes poderia ter pago com um centavo'. Devemos, portanto, começar com a firme e eficaz resolução de dar satisfação neste mundo; essa é a pedra fundamental. Uma vez lançado esse alicerce, devemos empregar todos os meios acima enumerados.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog.

sexta-feira, 21 de março de 2025

SOBRE A ATIVIDADE HUMANA NO MUNDO

Por seu trabalho e inteligência, o homem procurou sempre desenvolver mais a sua vida. Hoje em dia, porém, ajudado antes de tudo pela ciência e pela técnica, ele estendeu continuamente o seu domínio sobre quase toda a natureza; e, principalmente, graças aos meios de transporte de toda espécie entre as nações, a família humana pouco a pouco se regulariza e se constitui como uma só comunidade no mundo inteiro. Por isso, muitos bens que o homem esperava antigamente obter sobretudo de forças superiores, hoje os conseguem pelos seus próprios meios.

Diante deste enorme esforço, que já penetra em toda a humanidade, surgem muitas perguntas entre os homens. Qual é o sentido e o valor desta atividade? Como todas essas coisas devem ser usadas? Quais são esses esforços, sejam eles individuais ou coletivos? A Igreja, guardiã do depósito da palavra de Deus, que é a fonte dos seus princípios de ordem religiosa e moral, embora ainda não tenha uma resposta imediata para todos os problemas, deseja no entanto unir a luz da revelação à competência de todos, para iluminar o caminho no qual a humanidade entrou recentemente.

Para os fiéis é pacífico que a atividade humana individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decorrer dos séculos, buscaram melhorar suas condições de vida, consideradas em si mesmo, correspondem ao plano de Deus. Com efeito, o homem, criado à imagem de Deus, recebeu a missão de dominar a terra com tudo o que ela contém e de governar o mundo na justiça e na santidade, isto é, confirmando a Deus como Criador de todas as coisas, orientando para ele o seu ser e todo o universo; assim, com todas as coisas impostas ao homem, o nome de Deus seja glorificado na terra inteira.

Isto diz respeito também aos trabalhos cotidianos. Pois os homens e as mulheres que, ao procurarem o sustento para si e suas famílias, exercem suas atividades de maneira a bem servir à sociedade, têm razão para ver no seu trabalho um prolongamento da obra do Criador, um serviço aos seus irmãos e uma contribuição pessoal para a realização do plano de Deus na história.

Portanto, bem longe de pensar que as obras produzidas pelo talento e esforço dos homens se opõem ao poder de Deus, ou consideram a criatura racional como rival do Criador, os cristãos, pelo contrário, são reforçados de que as vitórias do gênero humano são um sinal da grandeza de Deus e fruto dos seus inefáveis ​​​​desígnios. Quanto mais, porém, cresce o poder dos homens, tanto mais aumenta a sua responsabilidade, seja pessoal seja comunitária. Conclui-se, pois, que a mensagem cristã não afasta os homens da tarefa de construir o mundo nem os leva a negligenciar o bem de seus semelhantes; mas, antes, os impele a sentir esta obrigação como um verdadeiro dever.

(Excertos da Constituição Pastoral Gaudium et Spes)