domingo, 16 de agosto de 2020

PÁGINAS COMENTADAS DOS EVANGELHOS DOS DOMINGOS


'Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram. Com efeito, por um homem veio a morte e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos. Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão. Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda... O último inimigo a ser destruído é a morte(1Cor 15, 20-23.26)

sábado, 15 de agosto de 2020

GLÓRIAS DE MARIA: ASSUNÇÃO AO CÉU


A Assunção de Maria - Palma Vecchio (1512 - 1514)

"Pronunciamos, declaramos e de­finimos ser dogma de revelação divina que a Imaculada Mãe de Deus sempre Virgem Maria, cumprido o curso de sua vida terrena, foi assunta em corpo e alma à Glória celeste”.

                            (Papa Pio XII, na Constituição Dogmática  Munificentissimus Deus, de 1º de novembro de 1950)


A solenidade da Assunção da Virgem Maria existe desde os primórdios do catolicismo e, desde então, tem sido transmitida pela tradição oral e escrita da Igreja. Trata-se de um dos grandes e dos maiores mistérios de Deus, envolto por acontecimentos tão extraordinários que desafiam toda interpretação humana: 

1. Nossa Senhora NÃO PRECISAVA morrer, uma vez que era isenta do pecado original;

2. Nossa senhora QUIS MORRER para se assemelhar em tudo ao seu Filho, pela aceitação de sua condição humana mortal e para mostrar que a morte cristã é apenas uma passagem para a Vida Eterna;  

3. Nossa Senhora NÃO PODIA passar pela podridão natural da carne tendo sido o Sacrário Vivo do próprio Deus;

4. A morte de Nossa Senhora foi breve (é chamada de 'Dormição') e ela foi assunta ao Céu em corpo e alma;

5. Aquela que gerou em si a vida terrena do Filho de Deus foi recebida por Ele na glória eterna;

6. Nossa Senhora foi assunta ao Céu pelo poder de Deus; a ASSUNÇÃO difere assim da ASCENSÃO de Jesus, uma vez que Nosso Senhor subiu ao Céu pelo seu próprio poder.


Louvor a Ti, Filha de Deus Pai,
Louvor a Ti, Mãe do Filho de Deus,
Louvor a Ti, Esposa do Espírito Santo,
Louvor a Ti, Maria, Tabernáculo da Santíssima Trindade!

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

14 DE AGOSTO - SÃO MAXIMILIANO MARIA KOLBE

 

São Maximiliano Maria Kolbe (08/01/1894 - 14/08/1941)

Quando tinha apenas 10 anos, Raimundo Kolbe recebeu uma dura repreensão de sua mãe: 'Se aos dez anos você é tão mau menino, briguento e malcriado, como será mais tarde?' Estas palavras doeram fundo na alma da criança e, muito perturbado por tal admoestação, prostrou-se aflito diante da imagem de Nossa Senhora: 'Que vai acontecer comigo?' A Mãe de Deus apresentou-se, então, diante dele, trazendo nas mãos duas coroas, uma branca e outra vermelha e lhe perguntou, sorrindo, qual delas ele escolhia para a sua vida. O pequeno escolheu as duas. A coroa branca lhe assegurou a castidade; a coroa vermelha lhe outorgou a glória do martírio. Assim nascem os santos, assim se forjam os mártires.

Assumindo a sua vocação religiosa, decidiu ser capuchinho franciscano com o nome de Maximiliano e fez os solenes votos do sacerdócio em 01 de novembro de 1914, acrescentando o nome de Maria aos seu nome religioso. Quase 40 anos após a visão da Santa Virgem, ele receberia a coroa do martírio. Em fevereiro de 1941, o padre Kolbe foi levado à prisão de Pawiak, em Varsóvia para interrogatório, tornando-se em seguida o prisioneiro de número 16670 do campo de concentração de Auschwitz durante a II Grande Guerra Mundial. Mais do que nunca, exerceu ali o seu apostolado de oração e pela conversão daqueles condenados. No final de julho de 1941, foi transferido para o Bloco 14 do campo, cujos prisioneiros faziam trabalhos agrícolas. Numa dada oportunidade, ocorreu a fuga de um deles e, como castigo, dez outros foram sorteados para morrer de fome e de sede num abrigo subterrâneo. 

O sargento Franciszek Gajowniczek do exército polonês foi um dos dez escolhidos e suplicou pela sua vida, por ser pai de uma família ainda de pequenos. Padre Kolbe se ofereceu para substitui-lo no 'bunker da morte' e assim foi feito. Desnudos, os dez homens padeceram o suplício da fome e da sede no subterrâneo confinado. Pe. Kolbe lhes deu toda a assistência espiritual possível neste período de martírio. Ao final de três semanas, 4 ainda estavam vivos e receberam, então, injeções letais de ácido muriático. Era o dia 14 de agosto de 1941, véspera da Festa da Assunção de Nossa Senhora. Pe. Kolbe foi o último a morrer. Sua festa religiosa é celebrada em 14 de agosto. Foi canonizado pelo papa João Paulo II em 10 de outubro de 1982.



'Não tenham medo de amar demasiado a Imaculada; jamais poderemos igualar o amor que teve por Ela o próprio Jesus: e imitar Jesus é nossa santificação. Quanto mais pertençamos à Imaculada, tanto melhor compreenderemos e amaremos o Coração de Jesus, Deus Pai, a Santíssima Trindade'.


(o 'bunker da morte')

Mas o que aconteceu com Gajowniczek - o homem que Padre Kolbe salvou? Depois da guerra, retornou à sua cidade natal, reencontrando a sua esposa. Seus dois filhos tinham sido mortos durante a guerra. Todos os anos, no dia 14 de agosto, ele retornou à Auschwitz e divulgou durante toda a vida o ato heroico do Pe. Kolbe. Morreu aos 95 anos, em 13 de março de 1995, em Brzeg, na Polônia, quase 54 anos depois de ter sido salvo da morte por São Maximiliano Kolbe. 


(Franciszek Gajowniczek)

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

O PEIXE GRAÚDO


Em 1826, durante certa noite, ouviu-se um barulho que parecia lançar a casa do Cura d'Ars no chão. Enquanto o Pe. Benoit gritava que estavam matando o padre Vianney, todos se precipitaram em direção ao quarto do sacerdote. Mas, abrindo-se a porta, deram com o santo deitado tranquilamente no seu leito que, entretanto, tinha sido arrastado para o meio do quarto por mãos invisíveis. Diante do espanto geral, o padre disse a todos sorrindo: 'Não foi nada, é o demônio. Sinto muito não vos ter prevenido. É bom sinal… amanhã cairá um peixe graúdo'.

Quem seria esse peixe graúdo? Curiosos vigiaram o confessionário durante todo o dia seguinte. Lá pelas tantas, depois do sermão, viram um conhecido nobre, descuidado dos seus deveres religiosos durante muito tempo, atravessar toda a igreja e ir confessar-se com o padre Vianney. Era o tal peixe graúdo do dia, apanhado pela rede de graças lançada pelo Cura d'Ars durante toda a sua vida.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

A VIDA OCULTA EM DEUS: A ESPERANÇA QUE GERA O ABANDONO


Como não se ter uma esperança invencível no fundo de nossos corações? Todo o poder de Deus é colocado a nosso serviço para conquistar a Si mesmo. Quanto menos direitos eu tenho, mais espero. Não mereço nada, por isso espero tudo. Porque você, meu Deus, é bom. Nossa verdadeira felicidade está oculta no que Deus nos dá para fazer ou sofrer no momento presente; procurá-lo em outro lugar é condenar-se a nunca encontrá-lo.

O que Deus quer de nós é um abandono filial e confiante. Afaste do seu espírito toda preocupação com o presente e com o futuro e, portanto, tudo que pode impedi-lo de ocupar-se de Deus hoje, agora. Não tome as coisas pelo seu lado mais trágico; basta que você as considere com seriedade. Normalmente elas não são tão pretas ou brancas quanto parecem. Tenha medida de tudo. Considere que a Providência guia tudo in suaviter et fortiter [com suavidade e firmeza], confiando às vezes na primeira palavra e, às vezes, na segunda. Faça como ela; não temos modelo melhor.

Quanto a você, considere as coisas apenas como são, sem voltar atrás. Deixe o passado para o passado e  assuma de pronto os deveres presentes. Repita continuamente a frase de São Paulo: 'Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus' [Rm 8,28]. Portanto, ame a Deus, ou pelo menos tenha um desejo sincero de amá-lo; é o bastante. Mantenha a paz interior. 

Não podemos fazer nada mais do que depender de Deus. A nossa felicidade e a nossa grandeza consistem em ter tudo dele. Costumo expressar a minha alegria por não ter qualquer direito sobre Ele, porque, se o tivesse, não ficaria muito a dever à sua misericórdia. Adoro pensar que Ele não me deve nada. Se eu tivesse algum direito, não poderia ser tão ousado, nem poderia ficar tranquilo.

Nosso Senhor há de nos dar o seu amor, mas talvez não da maneira como se imagina. É muito mais simples. Não espere nada sensível... Ele vai nos transformar aos poucos. Não se preocupe com os provações futuras e atente-se ao dia de hoje. Encontre a sua felicidade no que você tem que fazer ou suportar hoje. Verdadeiramente ela vai estar nisso, mesmo que você não a experimente.

Não se preocupe com a medida dos sofrimentos que você terá de suportar. Eles não passarão de sofrimento. Assuma os sacrifícios que se impõem hoje, os de amanhã, amanhã e assim por diante. 

Não busque a perfeição de um vez só. Deus não age assim. Ele quer de nós um esforço lento, paciente e progressivo. Esses esforços darão frutos como prova de amor a Nosso Senhor. Eles vão ser colhidos aos poucos, gradativamente. Não desanime com a imensidão do trabalho. Você não trabalha bem quando se está agitado sob o pretexto de que há muito o que se fazer.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte I -  O Esforço da Alma; tradução do autor do blog)

terça-feira, 11 de agosto de 2020

NO MEIO DE MUITOS CAMINHOS...

A caridade é a mãe de todas as virtudes, assim como a soberba é a raiz de todos os pecados. Sê humilde e pratica a caridade em tudo e com todos os teus irmãos, em todas as situações. Espelha-te no bom samaritano em todos os caminhos de tua vida! 


No meio de muitos caminhos... 

No meio de um caminho / havia um homem caído / Muitos passaram ao largo / sem socorrer o ferido / mas o bom samaritano / cuidou do desconhecido / curou-o, pagou seu repouso / resgatou quem estava perdido... 

No meio de nossos caminhos / há tantas pessoas perdidas / tantos homens que precisam / de curar suas feridas / e tantas pessoas que passam / fingindo-se desapercebidas / passam também pelo mundo / deixando pra trás suas vidas... 

Que eu não seja águas passadas / que não mais movem moinhos / e possa levar minha presença / a tantos que andam sozinhos / e semear ainda a caridade / por entre tantos espinhos / que eu possa ser samaritano / no meio de muitos caminhos... 

(Arcos de Pilares)

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

SOBRE O ANIQUILAMENTO INTERIOR

Quando nos falam de renunciarmos a nós mesmos, de aniquilar-nos; quando nos dizem ser esse o fundo da moral cristã, consistir nisso a adoração em espírito e verdade, tal palavra nos parece dura e até injusta: não queremos ouvi-la e repelimos quem no-lo prega da parte de Deus. Convençamo-nos, uma vez por todas, de que esse preceito nada de injusto encerra e na prática é mais suave do que pensamos. Em seguida, humilhemo-nos se nos faltar coragem para pô-lo em prática e, ao invés de condená-lo condenemos a nós mesmos.

Que nos pede o Senhor, ordenando que nos aniquilemos? Pede fazermos justiça a nós mesmos, colocarmo-nos em nosso lugar e reconhecermo-nos tais quais somos. Quando mesmo tivéssemos nascido e vivido sempre na inocência, quando jamais houvéssemos perdido a graça original, outra coisa não seríamos, por nós mesmos, senão nada; não poderíamos considerar-nos de outro modo sem nos desconhecermos e injustos seríamos pretendendo que diversamente Deus ou os homens nos tratassem. Que se pode dever ao que nada é? Que pode exigir o que nada é? Se a sua própria existência é uma graça, também e com razão maior é tudo quanto tem. Há, portanto, injustiça formal da nossa parte em recusarmos ser tratados e tratar-nos a nós mesmos como verdadeiros nadas.

Diz-se nada custar e ser justa essa confissão em relação a Deus; mas que assim não é a respeito dos homens, porquanto estes, nada sendo, como nós, não têm título algum para obrigar-nos a tal confissão e às suas consequências. A confissão nada custa em relação a Deus, se nos limitamos a fazê-la de boca; porém, quando faz-se mister procedermos de acordo com ela, deixarmos que Ele se arrogue e exerça sobre nós todos os direitos que lhe pertencem, consentirmos em que disponha ao seu talante de nosso coração, de todo o nosso coração, de todo o nosso ser, custa-nos infinitamente e com grande dificuldade não chamamos ser injustiça. Ele, todavia, poupa a nossa fraqueza, não usa dos seus direitos com todo o rigor, jamais nos expõe a certas provas aniquiladoras, sem ter obtido o nosso consentimento.

Quanto aos homens, concordo não terem por si mesmos domínio algum sobre nós e que injusto é da sua parte qualquer desprezo, humilhação ou ultraje. Mas nem por isso temos direito de nos queixarmos dessa injustiça, porque no fundo não é injustiça a nós, que nada somos, a quem nada é devido, mas para com Deus, cujo mandamento violam desprezando-nos, humilhando-nos, ultrajando-nos. É, pois, o Senhor quem deve ressentir-se da injúria que lhe fazem maltratando-nos e não nós, que em tudo quanto nos acontece não devemos ser sensíveis senão à injúria feita a Deus. Meu próximo despreza-me; não tem razão, porque não é mais do que eu e Deus lhe proíbe. Mas não terá ele razão porque eu sou verdadeiramente digno de estima, porque em mim nada há merecedor de desprezo? Não, porque se ele arrebata meus bens, mancha a minha reputação, atenta contra a minha vida, é certamente culpado e muito culpado para com Deus; mas será também para comigo? Estarei autorizado a querer-lhe mal, a vingar-me?

Não; porque tudo quanto possuo, tudo quanto sou, não pertence propriamente a mim; que só tenho de meu o nada e a quem nada se pode tirar. Se assim encarássemos, sempre do lado de Deus e jamais do nosso, tudo que nos acontece, não seríamos tão melindrosos, tão sensíveis e tão sujeitos a nos queixarmos e irritarmos. Toda a desordem vem sempre de supormos que somos alguma coisa, de nos arrogarmos direitos que não temos, de em tudo começarmos sempre por nos considerarmos diretamente e não prestarmos atenção aos direitos e aos interesses de Deus, os únicos lesados no que nos concerne. Confesso que isso é de prática muito difícil e, para consegui-lo, faz-se mister renunciarmos, absoluta e completamente, a nós mesmos. Mas, em suma, é justo e a razão coisa alguma pode opor. Deus, portanto, nada exige de nós que não seja razoável, quando a seu respeito e a respeito do próximo quer que nos portemos como nada sendo, nada tendo, nada pretendendo.

Isto como já se disse, seria justo, quando mesmo tivéssemos conservado a nossa primeira inocência. Mas, se nascemos culpados, se estamos inteiramente cobertos de pecados pessoais, se contraímos infinitas dívidas para com a justiça divina, se merecemos não sei quantas vezes a condenação eterna, não é para nós castigo demasiado brando só sermos tratados como nadas? E não deve o pecador colocar-se infinitamente abaixo do que nada é? Se qual for a provação imposta a ele por Deus, sejam quais forem os maus tratos suportados do próximo, terá direito de se queixar? Poderá acusar de rigor excessivo a Deus ou de injustiça os homens? Não deve, antes, considerar-se muito feliz em resgatar, com alguma pena temporal, tormentos eternos? Se a religião não é uma ilusão, se é verdade o que a fé nos ensina acerca do pecado e dos suplícios que lhe estão reservados, como pode entrar no espírito de um pecador - a quem Deus se dispõe a perdoar - que não merece tudo quanto se possa suportar de males neste mundo, embora dure sua vida milhões de séculos? 

Sim, é injustiça soberana, é monstruosa ingratidão de quem ofendeu a Deus (e quem de nós não O ofendeu?) não aceitar de boa vontade, em reconhecimento, por amor, por dedicação aos interesses de Deus, tudo quanto de sofrimentos, se essas humilhações aprouver à divina bondade enviar-lhe. E que será se tais sofrimentos, se essas humilhações passageiras são, não só a compensação do inferno, mas o preço de uma felicidade eterna, o preço da posse eterna de Deus; se no céu seremos glorificados na proporção do nosso aniquilamento aqui na terra? Teremos ainda horror a nos aniquilarmos? Pensaremos que é nos fazer mal, quando, por sermos pecadores e para emergirmos do nada, exige-se a renúncia completa do nosso eu, com a promessa de uma recompensa que sempre durará?

Acrescento que semelhante forma de aniquilamento, contra a qual a natureza tanto se insurge e clama, ao invés de tão penosa como imaginamos, é até suave, porque antes de tudo Jesus Cristo a declarou tal: 'Tomai sobre vós o meu jugo', disse Ele; 'é doce e leve'. Por mais pesado que seja esse jugo, Deus o suaviza para os que o tomam de boa vontade e consentem em carregá-lo por seu amor. O amor não nos impede de sofrer, mas faz como que amemos o sofrimento e torna-o preferível e a todos os prazeres. A recompensa presente do aniquilamento é a paz do coração, a calma das paixões, a cessação de todas as agitações do espírito, das murmurações, das revoltas interiores.

Vejamos, em pormenores, a prova disto. Qual é o maior mal do sofrimento? Não é a própria dor, é a revolta, a sublevação interior que a acompanha. A alma aniquilada sofreria todos os males imagináveis sem perder o repouso conexo ao seu estado: é fato de experiência. Custa-nos conseguir o nosso aniquilamento, temos que fazer grandes esforços sobre nós mesmos: mas também gozamos da paz na proporção das vitórias alcançadas. O hábito de renunciarmos a nós mesmos, de não atendermos ao nosso eu, torna-se cada dia mais fácil; admiramo-nos de que não nos faça mais sofrer, no fim de certo tempo, aquilo que nos parecia intolerável, assustava a imaginação, sublevava as paixões e punha a natureza em estado violento.

Nos desprezos, nas calúnias e humilhações, o que no-las torna tão duras de suportar é o nosso orgulho; é o nosso desejo de ser estimados, considerados, tratados com certas atenções; é o pavor que temos das zombarias e do desprezo do próximo. Eis o que nos agita e enche de indignação, o que nos torna a vida amarga e insuportável. Trabalhemos com afinco para aniquilar-nos; não demos alimento nenhum ao orgulho, deixemos caírem todos os artifícios de estima e amor próprio, aceitemos interiormente as pequenas mortificações que se apresentarem. Pouco a pouco chegaremos a não mais nos inquietarmos com o que se pensa e diz de nós, nem com o modo pelo qual nos tratam. Um morto nada sente; para ele não há honra nem reputação; os louvores e as injúrias lhe são indiferentes.

A maior parte dos sofrimentos e desgostos por que passamos no serviço de Deus provém de não estarmos bastante aniquilados em sua presença, de conservarmos certa vida própria no meio dos nossos exercícios, de imiscuir-se um secreto orgulho em nossa devoção. E por isso não somos indiferentes às consolações e à sua falta; sofremos quanto Deus parece afastar-se de nós; esgotamo-nos em desejos e esforços tendentes a fazê-lo voltar; ficamos abatidos e desolados, se o afastamento perdura muito. Por isso também temos falsos alarmes a respeito do nosso estado. Afigura-se-nos estarmos mal com Deus, porque Ele nos priva de algumas doçuras sensíveis. Julgamos más as nossas comunhões, porque as fazemos sem gosto, a mesma coisa acontecendo quanto às nossas leituras, orações e outras práticas. 

Sirvamos a Deus com espírito de aniquilamento; sirvamo-lo por Ele e não em atenção a nós; sacrifiquemos os nossos interesses à sua glória e ao seu bel-prazer; então, estaremos sempre contentes com o seu modo de tratar-nos, persuadidos de que nada merecemos e de ser imensa a bondade de sua parte, não digo aceitando, porém suportando os nossos serviços. Nas grandes tentações contra a pureza, a fé, a esperança,o que há de mais penoso para nós não é precisamente o temor de ofender a Deus, senão o medo de perder-nos, ofendendo-o. É o nosso interesse que nos ocupa muito mais do que a sua glória. Eis a razão de ter um confessor tanta dificuldade em tranquilizar-nos e reduzir-nos à obediência. Cremos que ele nos engana, transvia e perde, porque nos obriga a deixar de lado as nossas vãs apreensões. Aniquilemos o nosso conceito; não julguemos por nós mesmos... Encontraremos a paz e paz perfeita, no esquecimento total de nós mesmos. Nada há no céu, na terra, nem do inferno, capaz de perturbar a alma verdadeiramente aniquilada.

(Excertos da obra 'Manual das Almas Interiores', do Pe. Grou, 1932)