quarta-feira, 19 de junho de 2019

COMPÊNDIO DE SÃO JOSÉ (XIV)


66. Como os fiéis viram o seu poder de intercessão? 

Numerosos escritores josefinos e santos defenderam o grande poder de intercessão de São José, justamente por reunir em si um tesouro de riquezas, concentrando os esplendores de todos os santos. O grande teólogo São Tomás de Aquino ensina que 'alguns santos receberam o privilégio de nos proteger em casos especiais; a São José, porém, foi conferido o encargo de nos socorrer em todas as necessidades'. Santa Tereza de Ávila diz que: 'no céu é feito tudo o que São José pede'. De fato, depois de Maria, São José ocupa o primeiro lugar no coração de Deus; assim, ninguém depois de Maria e do Salvador pode nos conceder mais graças que São José. Gerson diz que: 'No céu São José não pede, mas manda; não impetra, mas impera'. Afirmou Santa Tereza ser uma grande devota de São José: 'que nunca me lembro de haver pedido uma graça a São José sem que a tenha recebido imediatamente'. O fundador da Congregação dos Oblatos de São José, o Bem-Aventurado José Marello, confiava tanto no poder de intercessão de São José que afirmava: 'Se São José não concedesse graças, não seria mais São José'. Para Santa Tereza, as graças que São José concede são: a busca do perdão dos pecados, o amor a Jesus e Maria, uma vida interior e uma boa morte. É diante de tamanho poder de intercessão que o Papa Bento XV considerou que os devotos de São José têm o caminho mais breve para a santidade e Pio XI, grande devoto do pai de Jesus, afirmou que ele tem diante de Deus uma intercessão 'onipotente'. 

67. Se São José é intercessor, é também protetor? 

A devoção a São José teve um desenvolvimento surpreendente, culminando na sua proclamação como Patrono da Igreja Universal, com o decreto Quemadmodum Deus de Pio IX, em 08 de dezembro de 1870. Neste decreto, o papa afirma de José, como pai de Jesus, que Deus 'constituiu como senhor de sua casa e de suas propriedades, e como guarda de seus tesouros mais queridos. A Jesus ele abraçou-o com afeto paterno e nutriu-o com solicitude especialíssima'. O Papa Leão XIII em sua encíclica Quamquam Pluries, de 15 de agosto de 1889, explica o porquê do patrocínio de São José sobre toda a Igreja Católica com estas palavras: 'As causas e razões especiais pelas quais São José foi proclamado Patrono da Igreja e em virtude das quais ela se colocou repetidas vezes sob a sua proteção, são estas: porque ele foi o esposo de Maria e pai, como era reconhecido, de Jesus Cristo. Daí derivam sua dignidade e graça, santidade e glória'. Sendo ele protetor de toda Igreja, o é também de todos os fiéis, particularmente das famílias. Na verdade, a família de Nazaré, da qual ele é o chefe, torna-se o modelo mais sublime para todas as famílias. Por isso, todas as famílias devem tê-lo como seu protetor. São José é tido também como protetor dos sacerdotes, em virtude de sua específica missão de cuidar do tesouro divino do Pai aqui na terra, vivendo intimamente com Ele, tocando-o, sustentando-o, defendendo-o e educando-o. Na verdade, o mesmo corpo que nasceu de Maria e que José protegeu é aquele que o sacerdote segura no momento da consagração na missa. 'São José nutriu', como nos ensina Pio IX, 'aquele que os fiéis deviam comer como pão da vida eterna'. Portanto, existe uma relação profunda entre o ministério sacerdotal e a missão de São José. Ele é também o protetor da boa morte, justamente por ter morrido ao lado de Jesus e de Maria. 

68. Ele é também o protetor das famílias religiosas? 

As Congregações Religiosas, os Institutos de vida consagrada, as Sociedades de vida apostólica que têm São José como protetor e trazem o seu nome são inumeráveis e encontram-se espalhadas em todo mundo. Da mesma forma as Confrarias, as Associações e Instituições intituladas ao nosso santo são numerosíssimas e disseminadas em todos os lugares. Disto podemos deduzir a grande consideração que São José possui entre os cristãos. 

69. Dentre as muitíssimas Congregações e Institutos religiosos que escolheram São José como Patrono, poderia ser citada uma e o porquê da escolha? 

Assim como Pio IX diante das tribulações que angustiavam a Igreja do seu tempo buscou a proteção de São José, da mesma forma também o Fundador da Congregação dos Oblatos de São José, o Bem-Aventurado José Marello, atraído pelo exemplo de São José, do seu serviço por amor aos interesses de Jesus com a dedicação completa de sua vida, em 1872, aos 28 anos, idealizava uma 'Companhia de São José' que fosse a 'promotora dos interesses de Jesus', onde cada membro tivesse suas próprias inspirações de seu modelo São José, que foi na terra o primeiro a cuidar dos interesses de Jesus. Esta sua inspiração inicial ganhou corpo quando, em 1877, no esboço da regra para a Companhia, ele declara que esta estava aberta para quem desejasse 'seguir de perto o Divino Mestre com a observância dos Conselhos Evangélicos', retirando-se na casa de São José com 'o propósito de permanecer escondida e silenciosamente operoso na imitação daquele grande modelo de vida pobre e escondida'. De fato, em 1878 fundava a Congregação, tendo como patrono São José e os seus membros chamados 'Oblatos de São José', com a intenção especial de honrá-lo e amá-lo, imitando suas virtudes e propagando a sua devoção. Desta forma, esta Congregação, espalhada pelo mundo inteiro com os seus mais de quinhentos religiosos, empenha-se em 'reproduzir na própria vida as virtudes características de São José, na união com Deus, na humildade, no escondimento, na laboriosidade, na dedicação aos interesses de Jesus, consagrando-se ao serviço da Igreja nas formas de apostolado ministerial que dia-a-dia a Providência indica'. Assim, esta Congregação tem como empenho primordial aquele do serviço que foi próprio de São José, aquele do silêncio e do escondimento que, como consente a pérola de cristalizar-se, ao nascituro de formar-se e à semente de desenvolver-se, assim também consente ao Filho de Deus de inserir-se da maneira mais discreta na família humana. 

70. Sendo José intercessor e protetor, é também modelo? 

Sem dúvida, pois todos os cristãos devem ter São José como o modelo perfeito que se colocou completamente à disposição da vontade de Deus e executou humilde e fielmente o plano divino da encarnação. Cada cristão deve, como disse João Paulo II em sua exortação apostólica Redemptoris Custos, 'procurar extrair desta insigne figura, coisas novas e coisas antigas' (Mt 13,52), pois sua participação na economia da salvação foi livremente desejada por Deus para servir juntamente com Maria ao 'mistério escondido nos séculos na mente de Deus' (Ef 3,9). Ele é o exemplo de obediência incondicional à vontade de Deus; o que ele fez é puríssima 'obediência da fé' (Rm 1,5; 16,26); tornando-se o primeiro depositário do mistério divino; ele é 'aquele que foi posto em primeiro lugar por Deus sobre o caminho da peregrinação da fé', sobre o qual Maria irá adiante de modo perfeito. José é modelo para os trabalhadores porque 'junto à humanidade do Filho de Deus, o trabalho foi acolhido no mistério da encarnação, como também foi de particular maneira redimido', e tudo isso graças ao banco da carpintaria, no qual ele trabalhava juntamente com Jesus; assim, José aproximou o trabalho ao mistério da redenção. Ele é o modelo para os que buscam a vida interior porque estava 'em contínuo contato com o mistério escondido nos séculos, que morou debaixo do teto de sua casa'. Assim, ele colocou, em suas ações envolvidas de silêncio, um clima de profunda contemplação. Em suma, José é o modelo para todos os cristãos, pois ele é o tipo ideal do evangelho, ao qual Jesus fará alusões em suas pregações. 'Ele oferece-nos um exemplo de atraente disponibilidade ao chamado divino, de calma em cada acontecimento, de plena confiança fundamentada numa vida de sobre-humana fé e caridade e do grande meio da oração'. Não sem razão, São José exerceu uma força irresistível na vida dos santos, constituindo-se para estes, modelo e uma verdadeira escola de santidade. Para muitos santos, São José foi o leit-motiv para o caminho da santidade. É impossível enumerar os santos que tiveram as inspirações em São José; basta-nos apenas lembrar alguns como São Luiz Gonzaga, São João Maria Vianney, São João Batista de la Salle, Santa Teresa, Santo Afonso Maria de Ligório, São Vicente de Paulo e o bem-aventurado José Marello, o qual aconselhava continuamente aos seus religiosos: 'Peçamos a São José que seja o nosso diretor espiritual'.

('100 Questões sobre a Teologia de São José', do Pe. José Antonio Bertolin, adaptado)

terça-feira, 18 de junho de 2019

O CÉU É AQUI...

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (VI)


Na sexta parte do Sermão da Sexagésima, o Pe. Antônio Vieira avalia se é o conteúdo do discurso que constitui a causa primária que impacta tão gravemente os frutos não colhidos das pregações da Santa Palavra de Deus.

VI

Será pela matéria ou matérias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que se tomam muitas matérias, levantam-se muitos assuntos e quem levanta muita caça e não segue nenhuma não é muito que se recolha com as mãos vazias. Boa razão é também esta. O sermão há de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exiit, qui seminat, seminare semen [saiu, o semeador, a semear uma semente]. Semeou uma semente só e não muitas, porque o sermão há de ter uma só matéria e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. 

Eis aqui o que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega-se tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há de colher senão vento? O Batista convertia muitos na Judeia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini [preparai o caminho do Senhor (Mt 3,3)]: a preparação para o Reino de Cristo. Jonas converteu os ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um só assunto: adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur [daqui a quarenta dias, Nínive será destruída (Jn 3, 4)]: a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há de ser de uma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria.

Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la para que se conheça; há de dividi-la para que se distinga; há de prová-la com a Escritura; há de declará-la com a razão; há de confirmá-la com o exemplo; há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades; há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários e, depois disso, há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar mais alto.

Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar uma só matéria; deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela; estes ramos não hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se há de ordenar o sermão. De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. 

Se tudo é tronco, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravalhas [gravetos, aparas]. Se tudo são folhas, não é sermão, são folhagens. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Ser tudo fruto não pode ser porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, a qual podemos chamar de 'árvore da vida', há de haver o proveito do fruto, a formosura das flores, a rigidez das varas, o enfeitado das folhas, o distendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um só tronco e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: seminare semen [semente semeada]. Eis aqui como hão de ser os sermões, eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles.

Tudo o que tenho dito pudera-se demonstrar largamente, não só com os preceitos dos Aristóteles, dos Túlios, dos Quintilianos, mas com a prática observada do príncipe dos oradores evangélicos, São João Crisóstomo, de São Basílio Magno, São Bernardo, São Cipriano, e com as famosíssimas orações de São Gregório Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, São Gregório e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermões e homilias: uma coisa é expor e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir; desta última é que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo Antônio de Pádua e São Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco.

(Sermão da Sexagésima- Parte VI, Pe. Antônio Vieira)

domingo, 16 de junho de 2019

GLÓRIA À TRINDADE SANTA!

Páginas do Evangelho - Festa da Santíssima Trindade


O mistério da Santíssima Trindade é um mistério de conhecimento e de amor. Pois, desde toda a eternidade, o Pai, conhecendo-se a Si mesmo com conhecimento infinito de sua essência divina, por amor gera o Filho, Segunda Pessoa da Trindade Santa. E esse elo de amor infinito que une Pai e Filho num mistério insondável à natureza humana se manifesta pela ação do Espírito Santo, que é o amor de Deus por si mesmo. Trindade Una, Três Pessoas em um só Deus.

Mistério dado ao homem pelas revelações do próprio Jesus, posto que não seria capaz de percepção e compreensão apenas pela razão natural, uma vez inacessível à inteligência humana:  'Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele (o Espírito Santo) receberá e vos anunciará, é meu' (Jo 16, 15). Mistério revelado em sua extraordinária natureza em outras palavras de Cristo nos Evangelhos: 'Em verdade, em verdade vos digo: O Filho não pode de si mesmo fazer coisa alguma, mas somente o que vir fazer o Pai; porque tudo o que fizer o Pai, o faz igualmente o Filho. Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe tudo o que ele faz (Jo 5, 19-20) ou ainda 'Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho senão o Pai; nem alguém conhece o Pai senão o Filho (Mt 11, 27). 

Nosso Senhor Jesus Cristo é o Verbo de Deus feito homem, sob duas naturezas: a natureza divina e a natureza humana: 'Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna. De fato, Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele' (Jo 3, 16 - 17). Enquanto homem, Jesus teve as três potências da alma humana: inteligência, vontade e sensibilidade; enquanto Deus, Jesus foi consubstancial ao Pai, possuindo inteligência e vontade divinas.

'Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo'. Glórias sejam dadas à Santíssima Trindade: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Neste domingo da Santíssima Trindade, a Igreja exalta e ratifica aos cristãos o  maior dos mistérios de Deus, proclamado e revelado aos homens: O Pai está todo inteiro no Filho, todo inteiro no Espírito Santo; o Filho está todo inteiro no Pai, todo inteiro no Espírito Santo; o Espírito Santo está todo inteiro no Pai, todo inteiro no Filho (Conselho de Florença, 1442).

sábado, 15 de junho de 2019

A REALIDADE DO INFERNO

É bem conhecido o relato do bispo Fulton Sheen sobre um homem que o procurou manifestando firmemente a sua crença pela não existência do inferno, ao que ele respondeu: 'Você vai acreditar quando estiver lá'. Dentre as extraordinárias comprovações formais da existência do inferno ao longo dos séculos, é de particular menção o fato retratado na vida do padre jesuíta São Francisco de Jerônimo, incluído com riqueza de detalhes no processo de canonização do santo e atestado sob juramento por um grande número de testemunhas oculares, conforme descrito abaixo*.

No ano de 1707, São Francisco de Jerônimo pregava, como de costume, nos arredores de Nápoles, falando particularmente nesta ocasião sobre o inferno e os terríveis castigos reservados aos pecadores obstinados. Da janela de uma casa próxima à multidão reunida, uma mulher interrompeu e perturbou várias vezes o ofício da pregação, com ironias, insolências e blasfêmias variadas ao sacerdote e à temática do sermão. Diante das provocações recorrentes, o santo então a interpelou: 'Ai de ti, filha, que resistes à graça! Não passarão oito dias sem que Deus te castigue'. Nem tal alerta, nem coisa alguma levou a mulher a alterar seu comportamento e suas más intenções.

Oito dias depois, o santo retornou ao mesmo local da pregação anterior e fez o seu sermão sem quaisquer constrangimentos ou perturbações pela mulher, permanecendo as janelas da casa vizinha sempre fechadas. Alguém o informou, então, que a tal mulher, de nome Catarina, havia morrido de súbito e há pouco naquele dia, ao que o santo, interrompendo a sua pregação, dirigiu-se à casa da defunta, acompanhado pela multidão, tomada de grande apreensão e temor.

Na presença de quantos conseguiram adentrar à sala da casa, onde repousava o cadáver tão recente, o santo fez uma breve oração e, desvelando o rosto da mulher falecida, disse em voz alta: 'Catarina, diz-nos onde estás agora!'. Neste momento, o cadáver abriu os olhos em estado de absoluto pavor, levantou um pouco a cabeça e respondeu com um gemido assustador e voz horrível: 'No inferno! Eu estou no inferno!' para, em seguida, retornar definitivamente à rigidez de cadáver.

(*adaptação do texto da obra 'O inferno existe – Provas e Exemplos', do Pe. André Beltrami, 2007)

SERMÃO DA SEXAGÉSIMA (V)


Nesta quinta parte do sermão, o Pe. Antônio Vieira  discute a influência relativa do estilo do pregador na maior ou menor eficácia da Palavra de Deus render muitos frutos.

V

Será porventura o estilo que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afetado, um estilo tão encontrado em toda a arte e em toda a natureza? Boa razão é também esta. O estilo há de ser muito fácil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare [saiu, quem semeia, a semear]. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes, tudo é arte: na música tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmética tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte, caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho: 'Caía o trigo nos espinhos e nascia: aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae [uma parte caiu entre os espinhos e os espinhos cresciam juntos (com o trigo)]; 'Caía o trigo nas pedras e nascia': aliud cecidit super petram, et ortum [outra parte caiu entre pedras e germinou]; 'caía o trigo na terra boa e nascia: aliud cecidit in terram bonam, et natum [outra parte caiu em terra boa e nasceu]. Ia o trigo caindo e ia nascendo.

Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas e hão de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa! Ver vir assim os tristes passos da Escritura como quem vem ao martírio: uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados; só atados não vêm! Há tal tirania? Então no meio disto, que bem levantado está aquilo! Não está a coisa no levantar, está no cair: cecidit [caiu]. Notai uma alegoria própria da nossa língua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair: há de cair com queda, há de cair com cadência e há de cair com caso [circunstância]. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso [a circunstância] para a disposição. A queda é para as coisas porque hão de vir bem trazidas e em seu lugar; hão de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas nem dissonantes; hão de ter cadência. O caso [a circunstância] é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetada que pareça caso [circunstância] e não estudo: cecidit, cecidit, cecidit [caiu, caiu, caiu].

Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no mundo foi o céu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum [os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos (Sl 19,1)] diz Davi. Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras. Sim, as tem, diz o mesmo Davi, tem palavras e tem sermões e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum [não há línguas e nem sermões, onde suas vozes não sejam ouvidas].

E quais são estes sermões e estas palavras do céu? As palavras são as estrelas e os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do céu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro é semear; a terra semeada de trigo, o céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: stellae manentes in ordine suo [as estrelas se mantêm na sua ordem]. Todas as estrelas estão por sua ordem; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte há de estar branco, da outra há de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem 'desceu', da outra hão de dizer 'subiu'. 

Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o seu contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição e também o das palavras. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o nauta para a sua navegação e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o navegante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas que todos vêem e que muito poucos medem.

Sim, padre; porém esse estilo de pregar não é pregar culto. Antes fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz?! Assim como há o Lexicon para o grego e o Calepino para o latim [faz referência a dicionários clássicos para estas duas línguas], assim é necessário haver um vocabulário do púlpito. Eu ao menos o tomaria para os nomes próprios porque os cultos têm desbatizados os santos e cada autor que alegam tem sido um enigma. Assim o disse o Cetro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a Águia da África, o Favo de Claraval, a Púrpura de Belém, a Boca de Ouro [personagens identificados na sequência do texto]. Há tal modo de alegar! 

O Cetro Penitente dizem que é Davi, como se todos os cetros não foram penitência; o Evangelista Apeles é São Lucas; o Favo de Claraval, São Bernardo; a Águia da África, Santo Agostinho; a Púrpura de Belém, São Jerônimo; a Boca de Ouro, São Crisóstomo. E quem quitaria ao outro cuidar  [tolheria a outro de dizer] que a Púrpura de Belém é Herodes que a Águia da África é Cipião e que a Boca de Ouro é Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Bártolo e Baldo, havíeis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversação, não o havíeis de o ter por néscio? Pois o que na conversação seria necessidade, como há de ser discrição no púlpito?

Boa me parecia também esta razão; mas como os cultos se defendem pelo (lado) polido e estudado com o grande Nazianzeno, com Ambrósio, com Crisólogo, com Leão e pelo (lado) escuro e duro, com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Basílio de Selêucia, com Zeno Veronense e outros, não podemos negar a reverência a tamanhos autores posto que desejássemos, aos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual será, portanto, a causa da nossa queixa?

(Sermão da Sexagésima- Parte V, Pe. Antônio Vieira)