sábado, 21 de setembro de 2013

HISTÓRIAS QUE OUVI CONTAR (X)

Pois é, tinha virado mania. Chegar na terrinha, apear na Rodoviária e rumar, de mala e cuia, praquele mundão de história e passado. História é passado. Tem que pisar no chão mordido de tanta história pra saber que história é coisa viva, uma coisa que fica entalada na garganta e que não tem mais fim. Aprender e reaprender num crescendo só; vivenciar outras épocas e culturas. Morder a essência da vida de tanta gente vivida no reviver essencial da vida repetida; por isso, era tão importante pisar, repisar e repisar mil vezes estas ruelas e ladeiras.

A mochila era pro essencial, o dinheiro era pro gasto. Ele vinha sempre assim: mochilento, meio Chaplin, meio dândi. Vinha como um personagem de ficção, vinha como uma figura de priscas eras, de repente tornada à vida nas ruelas e becos dessa Ouro Preto eterna, singular, mágica, extemporânea... Era professor de História, mais que isto, cultor e escultor da História viva.

Vinha quase todo mês, sempre do mesmo jeito, nunca com o mesmo olhar. Olhar era pouco, ele vinha captar alguma coisa que fugia aos homens mortais de todas as cidades comuns e que viviam cabisbaixos sob a linha do tempo. No meio da Praça Tiradentes, ele não era apenas um homem sob o sol. Ele abria os braços e sentia no rosto a brisa de tempos idos, as memórias revoltas de Marílias e de Dirceus e dos anônimos ausentes dos livros, mas irmanados nos espíritos viandantes que somente ele ouvia... Aqui, ele desfrutava dessa estranha e única sensação de viver além do tempo, muito mais que apenas um número incógnito na imensa babel mundana. Ouro Preto era eterna.

Comeu uma porcaria qualquer num boteco da praça e iniciou, mais uma vez, sua viagem ao passado. De repente, os letreiros, o trânsito caótico, a música dos bares, o leva e traz das pessoas, a vida profana, tudo se esvaiu de vez. Como num passe de mágica, só ficaram os sobrados, as ruelas, o museu, o silêncio das horas passadas e os personagens da história... Ele os conhecia tão bem! Cada donzela, cada senhor do comércio, os homens simples das mulas de carga, as vendedoras de doces, as crianças... Era o mesmo belo filme a ser revisto a cada passo, a cada volta...

Pois é ... mas, de repente, desfez-se o foco, a rua viva, a poeira do tempo, a re-história... e veio o que ele aventou ser o limbo. Não podia crer no que os seus olhos não mais viam! Olhou em volta assustado e não percebeu mais vivalma. A praça, a Rua Direita, ninguém. Nem mortos, nem vivos, nem personagens, nem simples mortais, nem albergues, nem bares. Ninguém. Os carros sumiram, as pessoas se foram e só restou o nada: nenhum som, nenhum grito. Ele, apenas ele, no meio da névoa espessa como breu mas esbranquiçada como as miragens dos fantasmas.

A morte seria isso? De repente, o nada no meio de tudo? Como uma lâmpada que se apaga de repente, levando a luz, a vida, a forma das coisas? Mas, não podia ser, não podia ser... A morte era algo tão irreal, tão longínquo, tão... tão despropositado! Ele era um professor, um cultor, um artífice da História e ali, em Ouro Preto eterna, construía a cada vinda a sua passagem para a o futuro... A morte não, a morte tem mesmo um tempo de eternidade e não tem vindas e retornos. A morte é apenas o fim. Fechou e abriu os olhos muitas vezes, mas o foco da vida urbana e passageira refletia-se apenas na memória.

De repente, ele a viu: ele parado na imensidão do mundo que se tornara a Rua Direita e ela subindo em sua direção. No meio da rua. Cheia de vestidos e chapéus, cheia de história. Parecia subir a rua íngreme sem esforço algum. Parecia não... os pés pairavam acima do chão! Vulto sem rosto e sem forma, mãos distendidas, algo como um perfume distante... 

Teve a certeza que gritou e a convicção ainda maior de que não ouvira o próprio grito. Quis correr mas seus pés pesavam como chumbo. O mais que pôde foi fechar os olhos com força e querer acordar de vez daquele pesadelo. Passou um instante... passou um minuto e mais outro... até que se deu conta de que o tempo tinha voltado a ser o tempo dos homens. Abriu os olhos e ouviu o berro do motorista do fusca 'Quer morrer, maluco?'. Meio apalermado, saiu do meio da rua e sentou-se no meio-fio do passeio, entre buzinas, risos e algazarra da vida profana... Não ia dizer nada, é claro, seria motivo de chacota na certa, iriam desconfiar de drogas na mochila e coisas assim. 

Teria sido uma perda momentânea de consciência, um sonho, um aviso? Ele teria visto o anjo da morte? Seria mesmo um anjo? Como e por que passara por uma experiência tão estranha? Qual o sentido daquilo tudo? Ficou sentado ali no meio-fio um tempão, vendo o povo passar, olhando, aturdido e pesaroso sobre a estranha aparição, anestesiado e consciente da sua própria história, refazendo pesos e medidas do viver por viver; definitivamente, um homem não tão comum sob o sol.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

DA VIDA ESPIRITUAL (58)

Reza assim: 'Senhor, não vos peço não ter tentações ou sofrimentos e nem que se cumpra as minhas humanas vontades, mas que o vosso propósito para mim se realize em plenitude em cada dia da minha vida. Queria vos pedir, Senhor, possuir sempre esta serenidade, esta paz interior que vem de Vós, esta perseverança de fé até o último segundo do meu existir, esta alma atribulada e incansável em busca da santificação. Senhor, conceda-me a graça de colocar em prática este imenso amor que tenho pelas vossas coisas e ser um instrumento vivo do vosso infinito amor pelos homens'.

A MISSA: SACRIFÍCIO E SACRAMENTO

A Missa tem três partes importantes: o Ofertório, a Consagração e a Comunhão. Na ordem do amor humano, estes correspondem ao noivado, à cerimônia de casamento e à consumação do casamento. Quando um homem torna-se noivo de uma mulher, ele geralmente traz-lhe o presente como um anel precioso, que não é de lata ou de palha, porque estes não têm nenhum valor. Independentemente do quanto ele pôde pagar pelo anel, ele ainda arranca a etiqueta de preço, a fim de que sua amada nunca possa estabelecer uma correspondência entre o preço do presente e do seu amor. Não importa o quanto ele lhe custou, o presente para ele pareceria inadequado. O anel é redondo, a fim de expressar a eternidade do seu amor, que não tem começo nem fim; é precioso, porque é um símbolo da total disponibilidade em dar a sua personalidade para a amada.

A missa também tem um noivado que corresponde ao Ofertório da Missa, em que os fiéis trazem os dons do pão e do vinho, ou seu equivalente, que simulam pão e vinho. Como o anel é um símbolo do amante oferecendo-se à amada, assim também o pão e o vinho são os símbolos de uma pessoa a oferecer-se para Cristo. Isto é evidente em vários aspectos: primeiro, o pão e o vinho tradicionalmente alimentam o homem e lhe dão vida, trazer a substância de representa a vida, é equivalente a dar a si mesmo. Em segundo lugar, a disposição de sacrificar-se pela amada é revelada no pão e no vinho, não há duas substâncias que têm que ser mais transformadas para se tornarem o que são do que o trigo e a uva. Um passa através do Getsemani de um moinho e o outro através do Calvário da prensa antes que possam ser apresentados ao Amado no altar. No ofertório, portanto, sob a aparência de pão e vinho, os fiéis estão a oferecer-se a Cristo.

Após o noivado, vem a cerimônia de casamento em que o amante se sacrifica pela amada, e a amada se entrega com devoção ao amante. O noivo praticamente diz: 'A minha maior liberdade é ser seu escravo. Eu dou a minha individualidade a fim de servi-la'. A união das mãos na cerimônia de casamento é um símbolo da transferência de si mesmo ao outro: 'Eu sou seu e você é meu. Quero morrer para mim mesmo, para viver em você, minha amada. Eu não posso viver para você, a menos que eu desista de mim mesmo. Então eu digo a você: ‘este é o meu Corpo, este é meu sangue'.

Na Missa, os fiéis já estão presentes no altar sob a aparência de pão e vinho. No momento da Consagração da Missa, quando o sacerdote, como Cristo, pronuncia as palavras 'Este é o Meu Corpo' e 'Este é o Meu Sangue', a substância do pão se transforma na substância do corpo de Cristo, e a substância do vinho torna-se a substância do sangue de Cristo. Naquele momento, os fiéis estão dizendo, em um sentido secundário com o padre: 'Este é o meu corpo, este é o meu sangue. Leve! Não quero mais para mim mesmo. A própria substância do meu ser, meu intelecto e minha vontade – Mude! Transubstancie! Para que o meu ego se perca em Ti, para que meu intelecto seja um com a Tua verdade, e a minha vontade seja uma com Teus desejos! Eu não me importo se as espécies ou aparências da minha vida permanecerem, isto é, meus deveres, minha profissão, meus compromissos no tempo e no espaço. Mas o que eu sou substancialmente, eu dou a Ti'.

Na ordem humana, após o noivado e o casamento, vem a consumação do casamento. Todo o amor anseia por unidade. Correspondência por carta ou pela fala, não pode satisfazer esse anseio instintivo de dois corações a se perderem um no outro. Deve, portanto, vir algum momento de grande êxtase em que o amor torna-se profundo demais para palavras, esta é a comunhão do corpo e do sangue com o corpo e sangue na unidade, que não dura muito tempo, mas é uma antecipação do céu.

O ato conjugal é nada além de uma imagem frágil e sombria da comunhão em que, depois de ter se oferecido a nós mesmos sob a aparência de pão e vinho e ter morrido em nosso eu interior, que agora começa a desfrutar dessa união extática com Cristo na Santa Comunhão – uma unidade que é, na linguagem do Thompson, 'uma paixão sem paixão, uma tranquilidade selvagem'. Este é o momento em que os corações famintos comungam com o Pão da Vida; este é o arrebatamento em que se cumpre 'o amor apenas um pouco aquém de todo o amor' e o êxtase que deixa todas as outras como dores de êxtases.

O Sacrifício da Missa pode ser apresentado sob outra analogia. Imagine uma casa que tinha duas grandes janelas em lados opostos. Uma janela fita um vale e a outra para uma montanha elevada. O proprietário pode contemplar ambos e de alguma forma ver que eles estavam relacionados: o vale é a montanha humilhada, a montanha é o vale exaltado.

O Sacrifício da Missa é algo parecido com isso. Cada igreja, de certa forma, olha para um vale, o vale da morte e da humilhação no qual vemos uma cruz. Mas também olha para uma montanha, uma montanha eterna, a montanha do céu, onde Cristo reina gloriosamente. Como o vale e a montanha estão relacionados, como humilhação e a exaltação, de modo que o Sacrifício da Missa está relacionado ao Calvário no vale e com Cristo no céu e nas colinas eternas.

Todos os três, o Calvário, a Missa, e Cristo glorificado no céu são diferentes níveis do grande ato de amor eterno. O Cristo, que apareceu no céu, como o cordeiro morto desde o começo do mundo, em um determinado momento no tempo, veio a esta terra e ofereceu sua vida em redenção pelos pecados dos homens. Em seguida, subiu ao céu, onde o mesmo ato eterno de amor continua, enquanto Ele intercede pela humanidade, mostrando as cicatrizes de seu amor ao Pai celestial. É verdade, agonia e crucificação são coisas passageiras, mas a obediência e o amor que os inspiraram não são. Aos olhos do Pai, o Filho feito Homem ama sempre até a morte. O patriota, que lamenta por ter apenas uma vida para dar ao seu país, teria gostado de ter feito seu sacrifício eterno. Sendo homem, ele não poderia fazê-lo. Mas Cristo, sendo Deus e homem, podia.

A Missa, portanto, olha para trás e para frente. Porque vivemos no tempo e podemos usar somente símbolos terrestres, vemos sucessivamente que não é senão um movimento de amor eterno. Se um rolo de filme fosse dotado de consciência, ele veria e compreenderia a história do filme de uma vez; mas nós não a compreenderíamos até vê-la desdobrada sobre a tela. Assim acontece com o amor com o qual Cristo preparou para a Sua vinda no Antigo Testamento, ofereceu a Si mesmo no Calvário, e agora reapresenta-o como sacrifício na Missa. A missa, portanto, não é outro sacrifício, mas uma nova apresentação da Vítima eterna e sua aplicação para nós. Assistir a Missa é o mesmo que assistir ao Calvário. Mas há diferenças.

Na Cruz, Nosso Senhor ofereceu-se por toda a humanidade; na Missa fazemos aplicação daquela morte a nós mesmos e o nosso sacrifício se une com o Dele. A desvantagem de não ter vivido na época de Cristo é anulada pela Missa. Na Cruz, Ele potencialmente redimiu toda a humanidade; na Missa nós participamos daquela Redenção. O Calvário aconteceu em um momento definido no tempo e sobre uma colina em particular no espaço. A Missa temporaliza e localiza aquele ato de amor eterno.

O sacrifício do Calvário foi oferecido de forma sangrenta pela separação do seu sangue de seu corpo. Na missa, esta morte é mística e sacramentalmente apresentada de modo incruento, pela consagração separada do pão e vinho. Os dois não são consagrados juntos por palavras tais como 'Este é o meu corpo e meu sangue', mas sim, seguindo as palavras de Nosso Senhor: 'Isto é meu corpo' é dito sobre o pão e, depois, 'Este é o Meu Sangue' é dito sobre o vinho. A consagração separada é uma espécie de espada mística dividindo corpo e sangue, que é a forma que Nosso Senhor morreu no Calvário.

Suponha que houve uma estação de rádio eterna que enviou ondas eternas da sabedoria e da iluminação. As pessoas que viveram em épocas diferentes iriam sintonizar nessa sabedoria, assimilá-la e aplicá-la para si. O ato eterno do amor de Cristo é algo que sintonizamos e que aparecem em sucessivas eras da história através da Missa. A missa, portanto, empresta sua realidade e sua eficácia do Calvário e não tem nenhum significado fora dele. Quem assiste à Missa levanta a Cruz de Cristo do solo do Calvário e a planta no centro do seu próprio coração.

Este é o único ato perfeito de amor, sacrifício, gratidão e obediência que podemos sempre prestar a Deus, ou seja, aquilo que é oferecido pelo Seu Divino Filho encarnado. De e por nós mesmos, não podemos tocar o teto porque não somos altos o suficiente. De e por nós mesmos, não podemos tocar em Deus. Nós precisamos de um mediador, alguém que é Deus e Homem, que é Cristo. Nenhuma oração humana, nenhum ato humano de auto-negação, nenhum sacrifício humano é suficiente para perfurar o céu. É apenas o sacrifício da Cruz que pode fazê-lo, e isso é feito na Missa. Como nós oferecemos, nós nos penduramos, por assim dizer, em suas vestes, que arrastam Seus pés na Ascensão, nos agarramos às Suas mãos perfuradas na oferta de Si mesmo ao Pai Celestial. Estando escondidas nEle, nossas orações e sacrifícios têm seu valor. Na Missa estamos mais uma vez no Calvário, ombro a ombro com Maria Madalena e João, e junto aos carrascos que ainda jogam dados sobre as vestes do Senhor.

O sacerdote que oferece o sacrifício apenas empresta a Cristo a sua voz e seus dedos. É Cristo quem é o Sumo Sacerdote; é Cristo quem é a vítima. Em todos os sacrifícios pagãos e nos sacrifícios judaicos, a vítima estava sempre separada do sacerdote. Poderia ser uma cabra, um cordeiro ou um boi. Mas quando Cristo veio, Ele, o Sacerdote, ofereceu-se como vítima. Na Missa, é Cristo que ainda oferece a Si mesmo e quem é a vítima a quem nos tornamos unidos. O altar, portanto, não está relacionado com a congregação como o palco está relacionado a um público no teatro. A mesa da comunhão não é o mesmo que uma ribalta, que divide o drama do espectador. Todos os membros da Igreja têm uma espécie de sacerdócio, na medida em que eles oferecem-se com o Sumo e Eterno este ato de amor eterno. Os leigos participam na vida e no poder de Cristo, pois 'Tu nos fizeste uma raça real de sacerdotes para servir a Deus' (Apoc 5, 10).

A expressão, por vezes usado pelos católicos como 'ouvir missa' é uma indicação de quão pouco se sabe da sua participação ativa, não só com Cristo, mas também com todos os santos e membros da Igreja até o fim dos tempos. Essa ação social da Igreja é indicada em algumas orações da Missa; por exemplo, imediatamente antes da Consagração, Deus é chamado a receber a oferta que 'nós, vossos servos, com o vosso povo santo' e, depois da Consagração, os fiéis mais uma vez dizem: 'nós oferecemos à vossa augusta Majestade, de vossos dons e dádivas'. Todos participam, mas quanto mais perto estamos do mistério, mais nos tornamos um só com Cristo.

Nenhum homem pode chegar à plenitude real de sua personalidade por reflexão ou contemplação, ele tem que agir para fora. É por isso que, através de todas as idades o homem ofereceu a melhor parte do rebanho a fim de indicar a oferta e entrega de si mesmo. Pela imposição de mãos sobre o animal, ele se identificou com ele. Então ele o consumiu, a fim de ganhar alguma identificação com aquele a quem foi oferecido. Na Missa, todos os antigos prenúncios sombrios do sacrifício supremo são cumpridos. O homem imola-se com Cristo, dizendo-lhe para tomar o seu corpo e o seu sangue. Através desta destruição do ego, há um vazio e um vazio criado, o que torna possível para a Divindade preencher o vácuo e santificar o ofertante. O homem morre ao passado, a fim de que ele possa viver no futuro. Ele escolhe estar unido com o seu Rei Divino em alguma forma de morte, para que ele possa participar da sua ressurreição e glória. Assim morrendo, ele vive; castigado, ele não está morto; triste, ele sempre se alegra; entregando o seu tempo, ele encontra a eternidade. Nada é trocado por tudo. A pobreza se transforma em riqueza, e não tendo nada, ele começa a possuir todas as coisas.

(Excertos de 'A Eucaristia: Sacrifício e Sacramento', do Arcebispo Fulton Sheen)

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A BÍBLIA EXPLICADA (VIII)

Breve descrição dos Quatro Evangelhos*

1. Evangelho de Jesus Cristo segundo São Mateus

Da vida de São Mateus, anteriormente chamado Levi, sabemos muito pouco. Ele era um republicano, ou seja, um coletor de impostos em Cafarnaum, até que um dia Jesus o chamou para o apostolado, dizendo simplesmente: 'Segue-me', e Levi 'levantou-se e O seguiu' (Mat 9,9 ). Sua vida apostólica se desenvolveu inicialmente na Palestina, junto com os outros apóstolos e, mais tarde, pregou provavelmente na Etiópia (África), onde parece sofreu também o martírio. Seu corpo é venerado na Catedral de Salerno (Itália ) e sua festa é celebrada em 21 de setembro.

São Mateus foi o primeiro a escrever a Boa Nova em forma de livro, entre os anos 40 e 50 anos da era cristã. Ele foi escrito em aramaico ou siríaco, para os judeus da Palestina que usavam esse idioma. Mais tarde, este Evangelho, cujo texto aramaico se perdeu, foi traduzido para o grego. O propósito de São Mateus foi o de demonstrar que Jesus é o Messias prometido, porque nEle se cumpriram as profecias dos profetas. Para os seus leitores imediatos, não havia melhor prova do que esta, que também nós experimentamos ao ler seu Evangelho, tão vigoroso no exercício dessa comprovação.

2. Evangelho de Jesus Cristo segundo São Marcos

Marcos, que antes se chamava João, era o filho daquela Maria em cuja casa se reuniam os discípulos do Senhor (Atos 12, 12). É provável que esta mesma casa tenha sido cenário de grandes eventos bíblicos como a Última Ceia e a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos. Com seu primo Barnabé, e com Marcos, acompanhou São Paulo na sua primeira viagem apostólica até a cidade de Perge, na Panfília (At 13,13). Mais tarde, entre os anos 61 e 63, o encontramos mais uma vez ao lado do Apóstolo dos Gentios, quando este estava preso em Roma.

São Pedro chama de Marcos de 'meu filho' (I Ped 5,13), o que sugere supor que ele foi batizado pelo Príncipe dos Apóstolos. A tradição mais antiga confirma, por unanimidade, que, em Roma, Marcos transmitia ao povo os ensinamentos de seu pai espiritual, escrevendo ali, por volta dos anos 50-60, o seu Evangelho, que é, consequentemente, o de São Pedro. O propósito do segundo Evangelista é mostrar que Jesus Cristo é o Filho de Deus e que todas as coisas na natureza, e até mesmo os demônios, estão sujeitos a Ele. Por isso, relata principalmente os milagres e a expulsão de espíritos malignos, realizados por Jesus.

O Evangelho de São Marcos é o mais breve dos quatro, apresentando, de forma sintética, muitas passagens dos Sinóticos, embora seja revestido de especial interesse porque narra alguns episódios que lhe são exclusivos únicos e também por fornecer muitas nuances próprias, que permitem compreender melhor os outros Evangelhos. São Marcos morreu em Alexandria do Egito, cuja igreja então governava. Seu corpo é venerado em Veneza, cidade que o tem por patrono.

3. Evangelho de Jesus Cristo segundo São Lucas

O autor do terceiro Evangelho, 'Lucas, o médico' (Col 4,14), era um sírio nascido em Antioquia, de família pagã. Ele teve a sorte de ser convertido à fé de Jesus Cristo e encontrar São Paulo, de quem foi companheiro e discípulo fiel durante muitos anos, convivendo com ele até a sua prisão em Roma. De acordo com seu próprio testemunho (Lc 1,3 ) Lucas relatou 'tudo exatamente desde o princípio' e escreveu para deixar a tradição oral registrada (Lc  1,4). 

Não há dúvida de que uma de suas principais fontes de informação foi o próprio Paulo e é muito provável que tenha recebido também informações da Santíssima Mãe de Jesus, especialmente em relação à infância do Senhor, uma vez que Lucas é o único a se referir a ela com algum detalhe. Por seus relatos sobre o menino e sua mãe, foi chamado o 'evangelista da Virgem'. Daí a lenda que atribui a Lucas de ter pintado o primeiro de Maria.

Lucas é chamado também de 'evangelista da misericórdia', por ser o único que nos revela as parábolas do filho pródigo, da dracma perdida, do Bom Samaritano, etc. Este terceiro Evangelho foi escrito em Roma, ao final do primeiro cativeiro de São Paulo, ou seja, entre os anos de 62 e 63. Tem como alvo os cristãos das igrejas fundadas pelo Apóstolo dos Gentios, assim como Mateus dedicou-se mais particularmente a mostrar aos judeus o cumprimento das profecias realizadas em Cristo. Assim, o Evangelho de Lucas contém um relato da vida de Jesus que podemos considerar o mais completo de todos e escrito propositadamente para os que somos cristãos dos gentios.

4. Evangelho de Jesus Cristo segundo São João

São João, natural de Betsaida, na Galileia, era irmão de Tiago Maior, ambos filhos de Zebedeu e Salomé, irmã da Virgem Maria. Por ter sido primeiramente discípulo de São João Batista e buscando de todo o coração o reino de Deus, seguiu depois a Jesus, tornando-se depois o seu discípulo favorito. Da cruz, o Senhor lhe confiou Sua Mãe Santíssima, da qual João, desde então, cuidou como sua própria.

João era aquele discípulo 'a quem Jesus amava' e que, na Última Ceia, 'reclinado ao peito de Jesus' (Jo 13, 23), como um seu amigo coração e testemunha íntima do Seu amor e de Suas dores. Depois da Ressurreição, João  ficou em Jerusalém como uma das 'colunas da Igreja' (Gal 2, 9) e, mais tarde, mudou-se para Éfeso, na Ásia Menor. Banido pelo imperador Domiciano (81-95) para a ilha de Patmos, escreveu ali o Apocalipse. Com a morte do tirano, pôde regressar a Éfeso, sendo ignorados a data e quaisquer detalhes de sua morte (cf. Jo 21,23).

Além do Apocalipse e de três epístolas, compôs, ao final do primeiro século, ou seja, cerca de trinta anos após a Sinópticos e da queda do Templo, este Evangelho que visa fortalecer a fé no messianismo e na divindade de Jesus Cristo, completando, assim, os Evangelhos anteriores, principalmente do ponto de vista espiritual, pelo que tem sido chamado de 'evangelista do amor'. Sua linguagem é a mais culta nos textos sagrados, como evidenciado já no seu prólogo que, pela sublimidade sobrenatural de seu assunto, não tem similar na literatura da humanidade.

(* Excertos da obra 'Santa Bíblia', de Mons. Juan Straubinger, tradução muito famosa da Bíblia em países de língua espanhola)

terça-feira, 17 de setembro de 2013

A BÍBLIA EXPLICADA (VII)

Por que doze e quem foram os Apóstolos de Jesus? 


Um dos dados mais seguros sobre a vida de Jesus é o fato de ter constituído um grupo de doze discípulos, aos quais chamou os 'Doze Apóstolos'. Este grupo era formado por homens que Jesus chamou pessoalmente; que o acompanharam na sua missão de instaurar o Reino de Deus; que foram testemunhas das suas palavras, das suas obras e da sua ressurreição. 


O grupo dos Doze aparece nos escritos do Novo Testamento como um grupo estável ou fixo. Os seus nomes são: 'Simão', a quem Jesus pôs o nome de Pedro;Tiago, filho de Zebedeu, e João, irmão de Tiago, André, Filipe, Bartolomeu, Mateus,Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu, Simão, o Cananeu, e Judas Iscariotes, aquele que O entregou (Mc 3, 16-19). 

Nas listas que aparecem nos outros Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos, há algumas poucas variações. Tadeu é também chamado Judas, mas isso se deve devido ao fato de diferentes pessoas ter o mesmo nome – Simão, Tiago – sendo comumente distinguidos, então, pelo segundo nome. Trata-se, pois, de Judas Tadeu. O que é significativo é o fato de, no livro dos Atos, não se falar do trabalho evangelizador de muitos deles: sinal de que se dispersaram muito rapidamente e de que, apesar disso, a tradição dos nomes de cada um dos Apóstolos estava muito firmemente estabelecida.

São Marcos (Mc 3, 13-15) disse que Jesus: 'tendo subido a um monte, chamou a Si os que quis, e aproximaram-se d'Ele. Escolheu doze para que andassem com Ele e para os enviar a pregar, com poder de expulsar os demônios'. Assinala dessa maneira a iniciativa de Jesus e a função do grupo dos Doze: estar com Ele e ser enviados a pregar, com o mesmo poder que tem Jesus. Os outros evangelistas – São Mateus (Mt 10, 1) e São Lucas (Lc 6, 12-13) – expressam-se em tons parecidos. Ao longo do Evangelho, percebe-se como acompanham Jesus, participam da sua missão e recebem um ensinamento particular, embora possam não ter compreendido no momento muitas coisas e até O tenham abandonado num momento da prova. 

É muito significativo que o número dos eleitos seja Doze. Este número remete às doze tribos de Israel (Mt 19, 28; Lc 22, 30; etc.) e não para outros números comuns no tempo – os membros do Sinédrio eram 71, os membros do Conselho em Qumran eram 15 ou 16 e 10 eram os membros adultos necessários para o culto na sinagoga. Por isso parece claro que, desta maneira, assinala-se que Jesus não quer restaurar o reino de Israel (At 1, 6) – pressupondo a terra, o culto e o povo – mas instaurar o Reino de Deus sobre a terra. A isso aponta também o fato de, antes da vinda do Espírito Santo, no Pentecostes, Matias ter passado a ocupar o lugar de Judas Iscariotes, completando assim o número dos doze (At 1, 26).

Quantos são e quem foram os Evangelistas?


Os Evangelhos nos transmitem a pregação dos Apóstolos e os evangelistas foram Apóstolos ou seus discípulos (Dei Verbum n. 19). Com isto, faz-se justiça ao que se recebeu pela tradição: os autores dos evangelhos são: Mateus, João, Lucas e Marcos. Destes, os dois primeiros figuram nas listas dos doze Apóstolos (Mt 10, 2-4 e correlatos) e os outros dois figuram como discípulos de São Paulo e de São Pedro, respectivamente. A investigação moderna, ao analisar criticamente esta tradição, não vê grandes inconvenientes em atribuir a Marcos e a Lucas os seus respectivos evangelhos.Todavia, analisa com olhos mais críticos a autoria de Mateus e de João. Costuma-se afirmar que esta atribuição apenas põe em evidência a tradição apostólica da qual provêm os escritos, mas não que tenham sido eles mesmos os que escreveram o texto.

O importante, portanto, não é a pessoa concreta que escreveu o evangelho mas a autoridade apostólica que estava por trás de cada um deles. Em meados do século II, São Justino falou das 'memórias dos apóstolos ou evangelhos' (Apologia 1, 66, 3) que se liam nas reuniões litúrgicas. Com isto, dão-se a entender duas coisas: que esses escritos tinham origem apostólica e que se colecionavam para serem lidos publicamente. Um pouco depois, ainda no século II, outros escritores já nos dizem que os evangelhos apostólicos eram quatro e apenas quatro. Assim, Orígenes diz que 'a Igreja tem quatro evangelhos, e os hereges muitíssimos, entre eles um que se escreveu segundo os egípcios, outro segundo os doze apóstolos. Basílides atreveu-se a escrever um evangelho e divulgou-o sob o seu nome (...). Conheço certo evangelho que se chama segundo Tomé e segundo Matias; e lemos muitos outros' (Hom. I in Luc. PG 13, 1802). .Expressões semelhantes encontram-se em Santo Irineu que, além disso, acrescenta em certo lugar que 'o Verbo artesão do Universo, que está sentado sobre os querubins e que tudo mantém, uma vez manifestado aos homens, deu-nos o evangelho quadriforme, evangelho que, não obstante, é mantido por um só Espírito' (Contra as heresias, 3, 2, 8-9).

Com esta expressão – evangelho quadriforme – realça uma coisa muito importante: o evangelho é único, mas a sua forma de expressão é quádrupla. A mesma ideia se expressa nos títulos dos evangelhos: os seus autores não vêm indicados, como outros escritos da época, com o genitivo de origem – 'Evangelho de…', mas com a expressão kata: 'Evangelho segundo…' .Desta forma, se assinala que o evangelho é único, o de Jesus Cristo, mas testemunhado de quatro formas que vêm dos apóstolos e dos discípulos dos apóstolos, indicando uma pluralidade dentro da sua na unidade. 

(Da obra 'Jesus Cristo e a Igreja' - Universidade de Navarra)

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A BÍBLIA EXPLICADA (VI)

Setembro é o mês da Bíblia. Ao longo dessa semana, vamos refletir sobre algumas passagens, fatos e assuntos correlatos aos sagrados textos bíblicos.

TEXTO DO EVANGELHO DE SÃO LUCAS

'Mas o pai disse aos empregados: ‘Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado’. E começaram a festa (Lc 15, 22-24).

Na parábola do pai misericordioso (mais conhecida como parábola do filho pródigo), Jesus menciona três presentes que o pai incita aos empregados para que sejam dados de imediato ao filho que volta, depois de dissipar em vão os bens recebidos em herança. O que representam, nesta passagem dos Evangelhos, a túnica, o anel e as sandálias?

A 'melhor túnica' faz menção à nova vida assumida pelo filho mais novo, fruto de sua conversão e da sua humildade em reconhecer os erros e os pecados cometidos contra o Pai: 'Pai, pequei contra Deus e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’ (Lc 15,21). E se aplica a cada um de nós que, pelo sacramento da confissão, somos revestidos da túnica da reconciliação com as graças de Deus pela libertação e perdão de todas as nossas faltas.

O anel representa a retomada do compromisso da aliança firmada com Deus e perdida por uma vida incensada pelos prazeres do mundo, porque, com efeito, 'porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado’ (Lc 15, 24). Eis a nova aliança firmada por Jesus Cristo com a humanidade, paga com o seu próprio Sangue, e eterna porque Deus é eternamente fiel e suas palavras não passarão.

As sandálias representam a adoção de um novo caminho a partir de agora, pois há que se deixar para trás os tortuosos atalhos do mundo. Revestido pela melhor túnica e ornado com o anel de uma nova aliança, o filho mais novo deve assumir o projeto de um caminho de redenção que conduz ao banquete da Vida Eterna. Sandálias que calçam os pés de todos aqueles que vislumbram em Cristo, o Caminho, a Verdade e a Vida.

TEXTO DO EVANGELHO DE SÃO JOÃO

No terceiro dia houve um casamento em Caná da Galileia. A mãe de Jesus estava ali; Jesus e seus discípulos também haviam sido convidados para o casamento. 3 Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: 'Eles não têm mais vinho'. 4 Respondeu Jesus: 'Que temos nós em comum, senhora? A minha hora ainda não chegou'. Sua mãe disse aos serviçais: 'Façam tudo o que ele lhes mandar'. 6 Ali perto havia seis jarros de pedra, do tipo usado pelos judeus para as purificações cerimoniais, cada jarro com capacidade para setenta e cinco a cento e quinze litros. Disse Jesus aos serviçais: 'Encham os jarros com água'. E os encheram até à borda (Jo 2, 1-7). 

Jesus passou 30 anos numa vida de escondimento, três anos de revelação pública e três horas de agonia para proclamar o perdão dos pecados e a salvação da humanidade. O início da vida pública de Jesus ocorre de forma singular num casamento, as bodas de Caná. Mas quem faz a intervenção inicial é a sua Mãe: 'Eles não têm mais vinho' (Jo 2, 3). É ela que propicia a oportunidade primeira para a manifestação da glória de Jesus para a definitiva aliança dos céus com a humanidade pecadora. E Nossa Senhora assim o faz, porque conhecendo em tal profundidade a natureza do seu filho, não precisa do milagre para crer mas, antecipando o sinal prodigioso da graça, manifesta a sua fé em plenitude no Filho de Deus.

E Jesus respondeu: 'Que temos nós em comum, senhora? A minha hora ainda não chegou'. Tal pergunta é, ao mesmo tempo, uma manifestação de cooperação explícita e uma aparente rejeição. Jesus insere Maria no 'nós' para destacar a participação de Nossa Senhora no plano da salvação, mas, ao mesmo tempo, ao se expressar por 'minha hora', acentua a Sua condição de Filho de Deus Vivo, com a missão única de realizar a obra do Pai. 

Como o próprio Jesus nos ensinou: 'Pedi e vos será dado' (Mt 7, 7; Lc. 11, 9), Nossa Senhora expressa a sua confiança absoluta no Filho: 'Fazei tudo o que Ele vos disser' (Jo, 2,5). Diante de tamanha fé, e servo da obediência, Jesus ordena que se encham as talhas de pedra com água. Evidente que Jesus poderia ter preenchido talhas vazias com o mais puro vinho. As talhas preenchidas com água simbolizam a nossa contrapartida à graça de Deus, os nossos esforços cotidianos, o nosso combate diário contra o pecado e as provações do mundo, para seguir Jesus e o Evangelho. Da água que brota do coração humano, fruto das nossas pequenas virtudes, Jesus transforma em vinho da sabedoria de Deus no longo caminho da plena santificação de nossas almas. 

domingo, 15 de setembro de 2013

PAI DE MISERICÓRDIA

Páginas do Evangelho - Vigésimo Quarto Domingo do Tempo Comum 


Neste Domingo, três parábolas de Jesus nos falam do perdão e da misericórdia, numa das páginas mais belas dos Evangelhos, que inclui a parábola do filho pródigo. Que poderia muito bem ser a parábola da verdadeira conversão. Ou, com muito mais correção e sentido espiritual, a parábola do pai de misericórdia. Três personagens: o filho mais velho e o filho mais novo que, em meio às dolorosas experiências da vida humana, se reencontram no grande abraço da misericórdia do pai.

Com a parte da herança que lhe cabe, o 'filho mais novo' opta pelo caminho fácil e tortuoso dos prazeres e vícios humanos, dos instintos insaciados, do vazio do mal. E esbanja, na via dolorosa do pecado, os bens que possuía: a alma pura, o coração sincero, os nobres sentimentos, a fortuna da graça. E, a cada passo, se afunda mais e mais no lodo das paixões humanas desregradas, da vida consumida no nada. Mas, eis que chega o tempo da reflexão madura, da conversão sincera, do caminho de volta ao Pai: 'Pequei contra ti; já não mereço ser chamado teu filho' (Lc 15, 18-19). 

O pai nem ouve as palavras do filho pródigo; no abraço da volta, somente ecoa pelos tempos a misericórdia de Deus: 'Haverá maior alegria no Céu por um pecador que fizer penitência que por noventa e nove justos que não necessitem de arrependimento' (Lc 15, 7). Diante do filho que volta, um coração de misericórdia aniquila a justiça da razão: 'Trazei depressa a melhor túnica para vestir o meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias nos pés.' (Lc, 15, 22). Como as talhas de água que se tornam vinho, a conversão verdadeira apaga e aniquila o mal desejado e consumido outrora: na reconciliação de agora desfaz-se em pó as misérias passadas de uma vida de pecado.

O 'filho mais velho' não se move por igual misericórdia e se atém aos limites difusos da justiça humana. Na impossibilidade absoluta de compreender o júbilo do pai com o filho que volta, faz-se vítima e refém da soberba e do orgulho humano: 'tu nunca me deste um cabrito para festejar com meus amigos' (Lc, 15,29). O filho mais novo, que estava tão longe, está lá dentro outra vez. E o filho mais velho, que sempre lá esteve, recusa-se agora a entrar na casa do pai. Tal como no caso do primeiro filho, o pai de misericórdia vem, mais uma vez, buscar a ovelha desgarrada no filho mais velho que está fora e não quer entrar. Porque Deus, pura misericórdia, quer salvar a todos os seus pobres filhos afastados de casa e espera, com paciência e amor infinitos, a volta dos filhos pródigos e a volta dos seus filhos que creem apenas na justiça dos homens.