
Tenho de colocar aqui outra questão. Suponhamos que um grande pecador continue a viver em seus pecados e morra sem qualquer aparência de arrependimento, poder-se-ia dizer que ele está irremedivalmente perdido? Certamente que não, porque ninguém sabe, ou pode saber, o que se passou entre Deus e a sua alma nos seus últimos momentos; tudo o que se pode dizer é que, se ele realmente morreu sem arrependimento, está certamente perdido; mas se Deus, pela sua infinita bondade, deu a ele a graça de um arrependimento perfeito e ele correspondeu da sua parte a tão grande favor, será salvo. Da mesma forma, se uma pessoa que vive em uma religião falsa morre sem dar qualquer sinal de abraçar a verdadeira fé ou sem se reconciliar com a Igreja de Cristo, nunca poderemos dizer com certeza que ela está perdida; tudo o que podemos dizer deve estar sob a mesma condição que no outro caso: se ela realmente morreu como viveu, separada da verdadeira Igreja de Cristo, e sem a verdadeira fé de Cristo, ela não pode ser salva. Mas se Deus, por sua grande misericórdia, deu a ela, em seus últimos momentos, luz e graça para ver e abraçar a verdadeira fé, e ela correspondeu com um favor tão grande como Deus requer, será salva. Ora, como ninguém sabe, ou pode saber, o que pode ter passado na alma de um ou de outro nos seus últimos momentos, assim nenhum homem pode pronunciar com certeza que a alma de um ou de outro estará irremedivalmente perdida.
P. 28 - Mas, no caso proposto, se uma pessoa, em seus últimos momentos, receber a luz da fé de Deus e abraçá-la com todo o seu coração, isso seria suficiente para torná-la um membro da verdadeira Igreja aos olhos de Deus?
Sem dúvida; o caso é o mesmo neste como no caso do batismo. Embora Jesus Cristo diga expressamente: 'Se alguém não nascer de novo da água e do Espírito Santo, não pode entrar no reino de Deus' (Jo 3,5), tal premissa estabelece a necessidade absoluta do batismo para a salvação; contudo, suponhamos que um pagão seja instruído na fé de Cristo e a abrace de todo o coração, mas morra subitamente sem batismo, ou seja levado por amigos infiéis, ou colocado na impossibilidade absoluta de receber o batismo, e morra nas disposições acima com arrependimento sincero e desejo de batismo, essa pessoa receberá indubitavelmente de Deus todos os frutos do batismo, e por isso se diz que foi batizada em desejo. Da mesma forma, suponhamos que uma pessoa educada em uma religião falsa abraça de todo o coração a luz da verdadeira fé, que Deus lhe dá nos seus últimos momentos, uma vez que lhe é absolutamente impossível, nesse estado, juntar-se à comunhão externa da Igreja aos olhos dos homens, no entanto, será certamente considerada unida a ela aos olhos de Deus, por meio da verdadeira fé que abraça e do seu desejo de se unir à Igreja, se isso estiver ou estivesse ao seu alcance.
P. 29 - Há alguma razão para acreditar que Deus Todo-Poderoso muitas vezes concede a luz da fé, ou a graça do arrependimento, na hora da morte, àqueles que viveram toda a sua vida em heresia ou em pecado?
Que Deus pode, num único instante, converter o coração mais obstinado à verdadeira fé ou ao arrependimento, é manifesto pelos exemplos de São Paulo, do publicano Zaqueu, do apóstolo São Mateus e de muitos outros; e, em particular, de São Pedro, a quem revelou, num instante, a divindade de Jesus Cristo, que lhe disse: 'Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos céus' (Mt 16,17). Que Ele pode fazer isso na hora da morte, tão facilmente quanto em qualquer momento da vida, não pode ser duvidado, como vemos no caso do bom ladrão na cruz. Ele é o mesmo Deus todo-poderoso em todos os momentos. Mas é preciso reconhecer que há muito pouca razão para pensar que isso seja frequentemente o caso. Certamente não há a menor base da revelação para pensar assim. Não, as Escrituras, como vimos acima, ameaçam o contrário. Tudo o que pode ser dito é que, como Deus é capaz, Ele pode fazê-lo; e como Ele é misericordioso, Ele pode fazê-lo: e a possibilidade disso é suficiente para nos impedir de julgar o estado de qualquer alma que tenha deixado este mundo: mas seria certamente o cúmulo da loucura, e uma manifesta tentação de Deus, uma pessoa se agarrar a isso e continuar em um caminho mau na esperança de encontrar tal misericórdia no final da vida.
P. 30 - Não vemos, mesmo entre as falsas religiões, muitas pessoas sérias e bem-dispostas, que vivem bem, e são até mesmo devotas e piedosas à sua própria maneira; não é difícil pensar que tais pessoas não serão salvas?
Mas não é muito mais razoável em si mesmo, bem como mais conforme a todo o teor do que Deus revelou, dizer que se eles são verdadeiramente tais diante de Deus como eles aparecem aos olhos dos homens, e tais como Ele sabe que continuarão a corresponder às graças que Ele lhes dá, Ele não permitirá que eles morram em sua falsa religião, mas sem dúvida os trará para a verdadeira fé antes que morram? A porta da salvação não está de modo algum fechada a essas pessoas por nada do que aqui foi dito; a única dificuldade está no modo como podem chegar a ela. Supor que eles podem alcançá-la, embora morram em sua falsa religião, é supor que Deus age contrariamente a si mesmo, e em oposição a tudo o que Ele tem revelado aos homens sobre este assunto.
Mas aderindo à sua santa Palavra, e acreditando firmemente que Deus 'acrescenta diariamente à Igreja aqueles que serão salvos', sem dúvida acrescentará aqueles aqui mencionados, se eles forem desse número feliz, não tornando a sua salvação mais difícil nem para eles mesmos nem para Deus; assim, evitamos a terrível consequência de supor que Deus poderia agir contrariamente a si mesmo e à sua própria vontade revelada. Se essas pessoas são realmente tais aos olhos de Deus como aparecem aos homens e se Jesus Cristo, prevendo a sua perseverança em melhorar as graças que lhes concede, as reconhece entre o número de suas ovelhas, 'às quais dá a vida eterna', então é evidente que elas estão no estado daquelas de quem Ele diz no Evangelho: 'Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco' (Jo 10,16).
Mas, sobre estas, Ele imediatamente acrescenta: 'Também as hei-de trazer e elas ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor'. Não era suficiente para a sua salvação serem reconhecidas como suas ovelhas; mas porque o eram, era necessário que fossem reunidas ao aprisco ao qual então não pertenciam. O mesmo deve ser então o caso daqueles de quem aqui falamos: são ovelhas de Jesus Cristo, porque Ele prevê que serão finalmente salvas; mas como não estão atualmente no aprisco da sua Igreja, a fim de assegurar a sua salvação, 'também é necessário que Ele as traga para ela' antes de morrerem, para que haja 'um só rebanho e um só pastor'.
(Excertos da obra 'The Sincere Christian', V.2, do bispo escocês George Hay, 1871, tradução do autor do blog)
PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DO MÊS