quinta-feira, 9 de março de 2023

'Ó FÉ, Ó ENTENDIMENTO, ONDE ESTÁS?'

Os gentios não sabem que a alma é imortal, nem creem que há outra vida. E, contudo, se lerdes os livros de todos os gentios, nenhum achareis, nem filósofo, nem orador, nem poeta, que só com o lume da razão e experiência do que veem os olhos, não condene o amor ou cobiça dos chamados bens deste mundo, e não louve o desprezo deles. Gentio houve que, reduzindo a dinheiro um grande patrimônio que possuía, o lançou no mar, dizendo: — 'Melhor é que eu te afogue do que tu me percas' — Deixo os risos de Diógenes que, metido na sua cuba, zombava dos Alexandres e suas riquezas. Deixo a sobriedade dos Sócrates, dos Sênecas, dos Epitetos, e só me admira e deve envergonhar a todo cristão o exemplo do mesmo Epicuro neste conhecimento, sendo ele e a sua seita a que mais professava as delícias: Gaudebis minas? Minus dolebis — dizia o cômico gentio falando com gentios — Se tiveres menos gostos, também terás menos dores. E porque na mistura dos falsos e enganosos bens dividiam o bem do mal, e o contrapesavam o que tinham de gosto com o que causavam de dor, antes queriam não padecer a parte do verdadeiro mal que gozar a do falso bem. Não seria louco o que, pela doçura da bebida, tragasse juntamente o veneno? Esta, pois, era a razão e a evidên­cia com que, sem fé nem conhecimento da outra vida, se desenganavam os gentios, e uns pelo peso se descarregavam dos falsos bens, outros pelo desprezo os metiam debaixo dos pés.

E se assim os tratava os gentios, que não temiam deles que o levassem ao inferno, nem lhe impedissem o céu, que deve resolver e gozar o cristão, que não só reconhece nos bens do mundo a vaidade do presente, senão também, e muito mais, o perigo do futuro? Será bem que por um instante de gosto me arrisque eu a uma eternidade de pena e por uma apreensão de bem misturado com tantos males, perca a glória da vista de Deus, e o gozar não só a minha bem-aventurança, senão a de todos os bem-aventurados? Ó fé, ó entendimento, onde estás? Mas o certo é que nem entendimento temos, pois não fazemos o que fizeram e entenderam tantos gentios, nem fé, senão morta, e sem ação vital, pois ela nos não move a viver como cristãos. Se o queremos ser, e emendar o deslumbramento desta tão enorme cegueira, eu não vejo outro remédio que nos abra os olhos, senão tornar pelos mesmos passos destes nossos dois discursos aos dois montes donde eles saíram. 

Ó que duas estações tão próprias de um tempo tão santo como este da quaresma! Uma ao monte da tentação, outra ao monte da Transfiguração; mas ao monte onde o demônio mostrou a Cristo as glórias do mundo, outra onde Cristo mostrou aos apóstolos a glória do céu. Olhai, e notai bem quanto vai de monte a monte: vede e considerai bem quanto vai de glórias à glória. Naquele monte estão os males sobredoirados com nome de bens: neste estão os bens sem sombra nem aparência de mal. Ali está o falso, aqui o verdadeiro; ali o duvidoso, aqui o certo; ali o momentâneo, aqui o eterno; ali o que vai parar no fogo do inferno, aqui o que nos leva a ser bem-aventurados no céu. Vede, vede, e considerai bem o que deveis escolher, porque qual for a vossa eleição nesta vida, tal será a vossa remuneração na outra: ou padecendo sem fim todas as maldições com o demônio, ou gozando na eternidade todas as felicidades com Cristo.

(Excertos do 'Sermão da Segunda Dominga da Quaresma', do Pe. Antônio Vieira)