sexta-feira, 30 de setembro de 2022

OS TRÊS DEGRAUS DA SABEDORIA MUNDANA

1. A sabedoria do mundo é terrestre e visa apenas os bens da terra. E desta sabedoria fazem secreta profissão os sábios mundanos, quando apegam o coração ao que possuem e se empenham em tornar-se ricos. Quando intentam processos e demandas inúteis para obter dinheiro ou para conservá-lo. Quando não pensam, não falam não agem, senão para alcançar ou conservar qualquer ganho terreno; a confissão, a oração e tudo o mais fazem superficialmente, como quem se desempenha de um ônus, a raros intervalos, para salvar as aparências.

2. A sabedoria do mundo é carnal, pelo amor ao prazer. E desta sabedoria fazem profissão os sábios mundanos, quando buscam apenas os prazeres dos sentidos. Quando gostam de boa mesa. Quando de si afastam tudo o que poderia mortificar ou incomodar o corpo, como os jejuns e as austeridades. Quando, ordinariamente, não pensam mais que em comer, beber, divertir-se, rir, passar agradavelmente o tempo. Quando andam em busca de leitos confortáveis, jogos que divirtam, festas agradáveis, companhias mundanas. E depois que sem escrúpulos se deram todos esses prazeres, vão atrás de um confessor - o menos escrupuloso que encontrarem - a fim de obter assim, por pouco preço, a paz em sua vida sensual e útil, e a indulgência plenária de todos os pecados.

3. A sabedoria do mundo é diabólica, porque é um amor pela estima e pelas honras. E desta sabedoria fazem profissão os sábios mundanos, quando aspiram, muito embora secretamente, grandezas, honras, dignidades e cargos elevados. Quando se esforçam para serem vistos, estimados, louvados e aplaudidos pelos homens. Quando não colimam em seus estudos, trabalhos, lutas, senão a estima e louvor dos homens, a fim de que sejam tidos por honestos, sábios, grandes líderes, sábios jurisconsultos, pessoas de infinito mérito e grande consideração. Quando não podem suportar o desprezo e a repressão. Quando escondem o que têm de falhas e só mostram o que possuem de belo.

É preciso, com Jesus Cristo, detestar e condenar estas sabedorias falsas, a fim de obter a verdadeira, que não busca seu interesse, que não é da terra, nem se encontra no coração dos que vivem em comodismo e que abomina tudo o que é grande e prestigioso aos olhos dos homens.

(São Luís Maria Grignion de Montfort)

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (LIV)

RAINHA CONCEBIDA SEM PECADO ORIGINAL, rogai por nós.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

29 DE SETEMBRO - SÃO MIGUEL ARCANJO

  

(São Miguel com elmo e armadura medieval - Catedral de Bruxelas)

'Houve uma batalha no Céu: Miguel e os seus Anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com os seus Anjos, mas foi derrotado e não se encontrou mais um lugar para eles no Céu' (Ap 12, 7-8).

'Naquele tempo, surgirá Miguel, o grande Príncipe, constituído defensor dos filhos do seu povo e será tempo de angústia como jamais houve' (Dn 12, 1).

Assim como Lúcifer é o chefe dos demônios, Miguel é o maior dentre os anjos, Príncipe das milícias celestes, protetor da Santa Igreja e da humanidade contra as forças do inferno. Assim, a designação de arcanjo (oitavo coro dos anjos) tem sentido genérico e nominativo, pois certamente São Miguel, sendo o primeiro dentre os Anjos, é o maior dos serafins. Dentre os vários santuários destinados à devoção ao Arcanjo São Miguel, Príncipe das milícias celestes, destaca-se aquele localizado no Monte Saint Michel na França, cuja foto constitui a abertura e o símbolo deste blog.

(Santuário de São Miguel - Monte Saint Michel/França)

São Miguel, rogai por nós!
Intercedei a Deus por nós!

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

NOSSA SENHORA DA CONSOLAÇÃO, ROGAI POR NÓS!

 'Bendito seja o teu nome, ó Deus de nossos pais, que no tempo da aflição, perdoas os pecados aos que te invocam' (Tb 3, 13)


Eis que chegados como nunca os tempos da aflição, invoquemos a Deus pela oração de Tobias, suplicantes pelo perdão dos pecados dos que vivemos no santo temor de Deus. E invoquemos aos Céus pelas divinas consolações. A Providência Divina será sensível às petições de tão poucos - pequenez sublimada de nada - que pelo menos ousam confrontar o oceano de iniquidades que busca submergir a todos? E quais outros Lázaros, mendigos de Abraão suplicante, pode-se contar que restarão ainda em cada canto pelo menos dez justos (Gn 18)?


Temos melhor sorte que Sodoma pois temos agora Nossa Senhora. Nossa Senhora da Consolação. A Mãe de Deus, a mãe daquele que é a nossa única e verdadeira consolação - Jesus Cristo. Jesus é a fonte de todas as graças e de todo poder. A fonte perene de todas as consolações, na qual Maria está sempre presente e na qual pode encher muitas talhas de águas vivas. E as fazer, pela ação dos anjos guardiães, derramar em abundância sobre todos nós, pobres pecadores, para consolo de nossas aflições.

Que Nossa Senhora da Consolação possa interceder por nós no próprio Coração de Deus, como privilegiada Mãe que adentra ao mais íntimo do Sagrado Coração de Jesus. Que, neste Coração de Amor Infinito, encha as talhas de água viva e as reparta sobre os seus filhos nesta terra de aflições. Que o Brasil e o povo brasileiro sejam iluminados nestes dias decisivos por santas consolações. E que, assim, possamos ser mais do que apenas um pequeno resto, mas uma nação livre, fiel e santa, ainda e sempre a Terra da Santa Cruz!

Nossa Senhora da Consolação, rogai por nós!

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (LIII)

RAINHA DE TODOS OS SANTOS, rogai por nós.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)

terça-feira, 27 de setembro de 2022

27 DE SETEMBRO - SÃO VICENTE DE PAULO

 

Filho de camponeses, Vicente de Paulo nasceu na pequena aldeia de Pay, região de Bordéus e dos Pirineus, em 24 de abril de 1575. Iniciou seus estudos com os franciscanos em Dax, formando-se mais tarde em teologia em Toulouse, onde tornou-se sacerdote em 23 de setembro de 1600. Forjava-se ali um dos maiores e mais belos exemplos da santificação e de apostolado missionário de toda a história da Igreja. 

Foi o fundador da Companhia da Missão (padres lazaristas) devotada à evangelização dos pobres e co-fundador da Congregação das Filhas da Caridade, cuja primeira superiora foi Santa Luísa de Marillac. Inspirado por seu amor a Deus e aos homens, Vicente de Paulo foi o criador de muitas obras de caridade e de piedade cristãs, às quais devotou toda a sua vida, pautada na missão de levar e viver plenamente o Evangelho de Cristo junto aos pobres, aos doentes, aos renegados, aos presos, aos desvalidos do mundo. O seu exemplo e seus ensinamentos inspiraram, mais tarde, em 1833, a criação das chamadas Conferências Vicentinas, que projetaram o legado da ação e das obras de caridade do santo ao mundo inteiro.




Este grande amigo e benfeitor dos mais necessitados faleceu em 27 de setembro de 1660 e seu corpo foi sepultado na igreja de São Lázaro (ou capela dos Lazaristas) em Paris, sendo encontrado praticamente incorrupto, quando exumado 52 anos após a sua morte. O coração do santo é conservado em um relicário na Capela de Nossa Senhora Milagrosa, também em Paris. Foi canonizado em 1737 pelo Papa Clemente XII e declarado patrono de todas as obras de caridade da Santa Igreja, em 1885, pelo papa Leão XIII.

São Vicente de Paulo, rogai por nós!

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XL)

 

Capítulo XL

Razões da Expiação no Purgatório - Pecados Contra a Caridade e o Respeito ao Próximo - São Luís Bertrand e o Jovem Religioso - Padre Nieremberg - Santa Margarida e o Religioso Beneditino 

A verdadeira caridade é humilde e indulgente para com os outros, respeitando-os como se fossem seus superiores. As suas palavras são sempre amigas e cheias de consideração pelos outros, não tendo nada de amargura ou de frieza, nada de desprezo, porque deve nascer de um coração manso e humilde como o de Jesus. Ela também evita cuidadosamente tudo o que poderia perturbar a unidade; ela toma todos os meios, faz todos os sacrifícios para efetuar uma reconciliação, de acordo com as palavras de nosso Divino Mestre: 'se você oferecer sua oferta no altar, e lá você se lembrar de que seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe sua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-se com teu irmão, e depois, vindo, oferecerás a tua oferta' (Mt 5, 23).

Um religioso que feriu a caridade em relação a São Luís Bertrand recebeu um terrível castigo após a morte. Ele foi lançado no fogo do Purgatório e que teve de suportar esse sofrimento até satisfazer a Justiça Divina; mais ainda, não poderia ser admitido na morada dos eleitos até que tivesse realizado um ato de reparação exterior, que deveria servir de exemplo para os vivos. O fato é assim relatado na vida desse santo.

Quando São Luís Bertrand, da Ordem de São Domingos, residia no convento de Valência, havia na comunidade um jovem religioso que dava demasiada importância à ciência profana. Sem dúvida, as letras e a erudição têm seu valor mas, como declara o Espírito Santo, devem ceder ao temor de Deus e à ciência dos santos: scientiam sed non est super timentem Deum - nenhuma ciência é tão grande quanto aquele que teme o Senhor (Eclo 25,13). Esta ciência dos santos, que a Sabedoria Eterna veio nos ensinar, consiste na humildade e na caridade. O jovem religioso de quem falamos, embora pouco avançado na ciência divina, permitiu-se repreender o padre Bertrand por seu pouco conhecimento e disse-lhe: 'Vê-se, padre, que você não é muito instruído!' 'Irmão' - respondeu o santo com firmeza mansa - 'Lúcifer era muito instruído e ainda assim se condenou'.

O irmão que cometeu esta falta não pensou em repará-la. Não obstante, não era um mau religioso e, algum tempo depois adoecendo gravemente, recebeu os últimos sacramentos com muito boa disposição e expirou pacificamente no Senhor. Decorreu um tempo considerável e Bertrand foi nomeado prior. Um dia, tendo permanecido no coro depois das matinas, o defunto apareceu-lhe envolto em chamas e, prostrando-se humildemente diante dele, disse: 'Padre, perdoe-me as palavras ofensivas que um dia eu lhe dirigi. Deus não permitirá que eu veja o seu rosto até que você tenha perdoado a minha culpa e rezado a Santa Missa em minha intenção'. O santo o perdoou de bom grado e, na manhã seguinte, celebrou a missa pelo descanso de sua alma. Na noite seguinte, estando novamente no coro, viu reaparecer o irmão falecido, agora radiante de glória e se elevando ao Céu.

Padre Eusébio Nieremberg, religioso da Companhia de Jesus, autor do belo livro Diferença entre Tempo e Eternidade, residiu no Colégio de Madri, onde morreu em odor de santidade em 1658. Este servo de Deus, que era singularmente devoto pelas almas do Purgatório, estava um dia rezando na igreja do colégio por um padre recém-falecido. O falecido, que por muito tempo havia sido professor de teologia, provou ser um religioso tão bom quanto um teólogo erudito; ele havia se distinguido por sua grande devoção à Santíssima Virgem, mas um vício havia se insinuado entre suas virtudes – ele não era caridoso em suas palavras e frequentemente falava das faltas de seu próximo. 

No momento em que o padre Nieremberg estava reverenciando a sua alma a Deus, este religioso apareceu e revelou-lhe o estado de sua alma. Ele tinha sido condenado a terríveis tormentos por ter falado frequentemente contra a caridade. Sua língua, instrumento de sua culpa, foi torturada por um fogo devorador. A Santíssima Virgem, em recompensa da terna devoção que ele tinha por ela, obteve permissão para que ele viesse pedir orações e, ao mesmo tempo, servir de exemplo para os outros, para que aprendessem a ser cautelosos em todas as suas palavras. Padre Nieremberg, após ter feito muitas orações e penitências por ele, logrou finalmente obter a sua libertação. 

O religioso que se faz menção na vida da bem-aventurada Margarida Maria, pelo qual aquela serva de Deus teve que sofrer tão terrivelmente durante três meses, entre outras faltas, foi punido também pelos seus pecados contra a caridade. Assim foi relatada essa revelação. A bem-aventurada Margarida Maria, estando um dia diante do Santíssimo Sacramento, viu-se de repente diante de um homem totalmente envolto em chamas, cujo fogo era tão intenso que lhe pareceu prestes a consumi-la também. O estado lastimável em que se encontrava esta pobre alma a fez cair em lágrimas. O homem era um religioso beneditino do mosteiro de Cluny, a quem ela havia se confessado no passado, com um grande bem à sua alma, ordenando-lhe que recebesse a Sagrada Comunhão. Em compensação por esse serviço, Deus permitiu que a sua alma pudesse dirigir-se à Margarida, para assim obter algum alívio para os seus sofrimentos.

A pobre alma implorou então que tudo que ela fizesse ou sofresse durante três meses fosse aplicado em sua intenção. Após pedir a devida permissão, ela assim o prometeu. Ele revelou então que a causa principal do seu grande sofrimento foi de ter sempre buscado os seus próprios interesses e não a glória de Deus e o bem das almas, dando assim demasiada importância à sua reputação. A segunda causa teria sido a sua falta de caridade para com os seus irmãos. A terceira, a afeição natural por criaturas a quem, por fraqueza, se rendera e às quais dera provas desta predileção em suas orientações espirituais, o que - acrescentou - teriam em muito desagradado a Deus.

É difícil dizer tudo o que a serva de Deus sofreu durante os três meses seguintes. O falecido nunca a deixou, sempre postado ao seu lado e envolto em chamas que a consumiam em dores excruciantes, que a faziam chorar sem cessar. A sua superiora, movida pela compaixão, ordenou-lhe penitências e disciplinas severas, porque a dor e o sofrimento destas coisas muito a aliviavam. Os tormentos - ela dizia - que a santidade de Deus lhe imprimia eram absolutamente insuportáveis. E eram apenas uma amostra do sofrimento suportado pelas pobres almas do Purgatório.

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (LII)

 

RAINHA DAS VIRGENS, rogai por nós.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)

domingo, 25 de setembro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Bendize, minha alma, e louva o Senhor!' (Sl 145)

 25/09/2022 - Vigésimo Sexto Domingo do Tempo Comum 

44. O HOMEM RICO E O POBRE LÁZARO 


Na parábola de Jesus no evangelho deste domingo, confrontam-se os valores da riqueza e da pobreza, presentes no corpo e nos sentidos dos liames humanos, fontes diversas que forjam o abismo incomensurável dos destinos eternos da alma. De um lado, o homem rico, avarento e enfastiado pela opulência dos bens materiais; de outro, o mendigo, na pobreza de sua indigência completa, que almejava apenas 'matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico' (Lc 16, 21). Duas pessoas tão próximas, tão juntas, como as bordas adjacentes de um abismo profundo moldado pelo paroxismo da indiferença humana.

E este abismo tende a se tornar definitivamente intransponível para ambos ao final de suas vidas mortais. Se há um momento em que todos os homens se tornam absolutamente iguais é a hora da morte. Se há um momento em que os homens se tornam absolutamente desiguais é no momento após a morte. Eis a grande lição do evangelho deste domingo: o céu e o inferno são realidades dogmáticas da fé cristã e o pecado mortal impõe ao condenado a definitiva separação de Deus e sua danação eterna no abismo dos abismos: 'há um grande abismo entre nós; por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós’ (Lc 16, 25).

Ricos e pobres, todos nós seremos julgados não pela medida do muito ou pouco que fizemos nesta vida, mas pela medida com que fizemos bem aquilo que era da santa vontade de Deus. Ao morrer impenitente, o rico passa a viver a miséria da sua perdição; o pobre, que era apenas um nome neste mundo, torna-se o Lázaro na côrte eterna de Abraão. E, em contraposição à mendicância e às súplicas nunca ouvidas às suas portas, o rico irá suplicar três vezes pela clemência de Lázaro em seu favor e ao de seus irmãos: 'manda Lázaro molhar a ponta dos dedos... manda Lázaro à casa do meu pai ... se um dos mortos for até eles...' (Lc 16, 24, 27, 30).

A resposta de Abraão não estabelece concessão alguma: 'Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos' (Lc 16, 31). É uma sentença definitiva sob o primado da verdade eterna. Com efeito, Jesus ressuscitou, mas quantos O escutam? Escutar Moisés e os Profetas é ouvir a Palavra de Deus, seguir Jesus pelas passagens do Evangelho, combater o bom combate da fé, carregar a cruz de todos os dias com Cristo, por Cristo e em Cristo para que um dia, transposta a morte que nos torna homens todos iguais, sejamos os Lázaros da vida eterna.

sábado, 24 de setembro de 2022

VERSUS: OS SETE GRAUS DA HUMILDADE (V)

  V. A paciência na adversidade, como Jó e como Tobias 

(São Bernardo*)

* (Obras Completas de San Bernardo, BAC Editorial, 1993)


'Mais vale a paciência que o heroísmo, mais vale quem domina o coração do que aquele que conquista uma cidade' (Pv 16,32)


Deus nos livra das aflições e adversidades deste mundo de quatro maneiras:

Em primeiro lugar, Deus livra o homem das aflições, afastando-as dele; o que faz raramente. Neste mundo, os santos são afligidos. 'Todos os que quiserem viver piamente em Cristo Jesus, padecerão perseguição', diz São Paulo. (2 Tm 3, 12). No entanto, às vezes, Deus concede a alguns não serem afligidos. Quando Deus sabe que uma pessoa não suporta a prova, age como um médico que evita dar remédios violentos a um doente muito mal. 'Eis' - diz o Senhor - 'que pus diante de ti uma porta aberta que ninguém pode fechar' (Ap 3,8). Na pátria celeste é lei geral que ninguém seja afligido. Está no Apocalipse: 'Já não terão fome nem sede, nem cairá sobre eles o sol nem calor algum. Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, os guardará e os levará às fontes das águas da vida, e Deus enxugará toda lágrima dos seus olhos (Ap 7, 16-17).

Em segundo lugar, Deus nos livra do mal, enviando-nos consolações no tempo das aflições. Sem as consolações divinas, o homem não pode subsistir no meio das provações. Diz São Paulo: 'Fomos mal tratados desmedidamente, além de nossas forças' (2 Cor 1, 8) e acrescenta: 'Deus porém que consola os humildes, consolou-nos' (2 Cor 7, 6). E canta o salmista: 'Segundo as muitas dores que provou meu coração, as tuas consolações alegraram a minha alma' (Sl 93, 19).

Em terceiro lugar, Deus cumula os aflitos de tantos benefícios, que chegam a esquecer os seus males. 'Depois da tempestade vem a bonança' - dizia Tobias (Tb 3, 32). Assim não devemos temer as aflições e tribulações do mundo, que são facilmente suportadas por causa das consolações que Deus mistura a elas e também por causa de sua pouca duração. Diz São Paulo: 'A ligeira tribulação do momento presente prepara para nós um peso eterno de glória, além de toda medida. Pois é a tribulação que nos faz alcançar a vida eterna' (2 Cor 4, 17). Em quarto lugar e para estender a ideia do mal a todos os males, Deus tira o bem de todos os males, tentações e tribulações. Jesus não nos faz dizer: livrai-nos da tribulação, mas: livrai-nos do risco do mal que essas tribulações trazem.

Com efeito, as tribulações são dadas aos santos, para o seu bem, para que mereçam a coroa da glória. Por isso, ao invés de pedir para serem liberados das tribulações, os santos fazem suas as palavras do Apóstolo: 'Não só nos gloriamos na esperança e na glória de Deus, mas também nos gloriamos nas tribulações, sabendo que as tribulações produzem a paciência' (Rm 5, 3). E repetem a oração de Tobias: 'Bendito seja o teu nome, ó Deus de nossos pais, que no tempo da aflição, perdoas os pecados aos que te invocam' (Tb 3, 13).

Assim Deus livra o homem do mal e da tribulação, transformando o mal em bem, o que é o sinal da maior sabedoria, pois, com efeito, pertence ao sábio ordenar o mal ao bem. Deus atinge este objetivo, dando ao homem paciência nas tribulações. As outras virtudes se servem dos bens, mas a paciência é a única que tira proveito dos males. São eles que a fazem necessária e é por isso que sua necessidade só aparece no meio dos males, isto é, nas adversidades.

(Sermões de São Tomás de Aquino - A Oração Dominical)

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

HONRAR PAI E MÃE


'Quem honra sua mãe é semelhante àquele que acumula um tesouro. 

Quem honra seu pai achará alegria em seus filhos, será ouvido no dia da oração. 

Quem honra seu pai gozará de vida longa; quem lhe obedece dará consolo à sua mãe. 

Quem teme o Senhor honra pai e mãe. Servirá aqueles que lhe deram a vida como a seus senhores.

Honra teu pai por teus atos, tuas palavras, tua paciência, 

a fim de que ele te dê sua bênção, e que esta permaneça em ti até o teu último dia. 

A bênção paterna fortalece a casa de seus filhos, a maldição de uma mãe a arrasa até os alicerces.

Não te glories do que desonra teu pai, pois a vergonha dele não poderia ser glória para ti, 

pois um homem adquire glória com a honra de seu pai, e um pai sem honra é a vergonha do filho.

Meu filho, ajuda a velhice de teu pai, não o desgostes durante a sua vida.

Se seu espírito desfalecer, sê indulgente, não o desprezes porque te sentes forte, pois tua caridade para com teu pai não será esquecida,

e, por teres suportado os defeitos de tua mãe, te será dada uma recompensa;

tua casa se tornará próspera na justiça. Tu serás lembrado de ti no dia da aflição, e teus pecados se dissolverão como o gelo ao sol forte.

Como é infame aquele que abandona seu pai, como é amaldiçoado por Deus aquele que irrita sua mãe!'

(Eclo 3, 5 - 18)

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (LI)

RAINHA DOS CONFESSORES, rogai por nós.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)

 

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (XII)

Carta Encíclica DIUTURNUM ILLUD 
 [29 de junho de 1881]

Papa Leão XIII (1878 - 1903)

sobre a origem do poder civil 


A prolongada e abominável guerra declarada contra a autoridade divina da Igreja chegou ao ponto no qual haveria de chegar: a pôr em perigo universal a sociedade humana e, em especial, a autoridade política, que é onde a conservação pública fundamentalmente se apoia. Na nossa época em especial esse fato mostra-se com evidência. As paixões desordenadas do povo hoje recusam, com mais audácia do que nunca, todo vínculo de autoridade. Tão grande e disseminado é o abuso, e tão frequentes as sedições e turbulências, que não somente se negou muitas vezes a obediência aos governantes, mas também nem sequer lhes foi dada garantia suficiente de segurança pessoal. Há muito se trabalha para fazer com que os governantes caiam no desprezo e no ódio das multidões. E a chama da inveja, fomentada, logo foi desencadeada; por meio de complôs secretos ou ataques abertos, num curto intervalo de tempo atentou-se contra a vida dos soberanos mais poderosos. Toda a Europa horrorizou-se há pouco tempo ao saber do nefando assassinato de um poderoso imperador. Enquanto ainda estavam atônitos os ânimos com a magnitude de tal crime, homens perdidos não hesitaram em lançar ameaças e intimidações públicas a outros soberanos europeus.

Esses grandes perigos públicos que estão diante dos nossos olhos causam-nos uma grave preocupação ao ver em perigo a quase todo momento a segurança pessoal dos príncipes, a tranquilidade dos Estados e a salvação dos povos. Todavia, foi a virtude divina da religião cristã quem engendrou os egrégios fundamentos da estabilidade e da ordem nos Estados desde o momento em que penetrou nos costumes e instituições das cidades. Dessa virtude, o fruto que não é o menor e nem o último é o justo e sábio equilíbrio de direitos e deveres entre os príncipes e os povos. Porquanto, os preceitos e exemplos de Nosso Senhor Jesus Cristo possuem uma força admirável para conter em seu dever tanto aos que obedecem quanto aos que mandam e para conservar entre ambos a união e harmonia de vontades, que é plenamente conforme a natureza e da qual nasce o tranquilo e imperturbado curso dos assuntos públicos. Por isso, tendo sido colocado pela graça de Deus à frente da Igreja católica como guardião e intérprete da doutrina de Cristo, Nós julgamos, veneráveis irmãos, que é incumbência da nossa autoridade recordar publicamente o que a verdade Católica exige de cada um nessa esfera de deveres. Desta exposição emergirá também o caminho e a maneira com que em tão deplorável estado de coisas deve-se ter em conta o bem público.

Ainda que o homem, que quando impelido por certa arrogância e orgulho intenta muitas vezes abalar os freios da autoridade, ele todavia nunca pôde se livrar de toda obediência. Em todas as comunidades e reuniões de homens é necessário que haja alguns que mandem, para que a sociedade, destituída de princípio ou cabeça, não desapareça e seja privada de alcançar o fim para o qual nasceu e foi constituída. Mas, não conseguindo lograr a destruição total da autoridade política nos Estados — destruição essa que teria sido impossível — tentou-se empregar todos os meios e artifícios possíveis para debilitar sua força e diminuir sua majestade. Isto sucedeu-se principalmente no século XVI, quando uma perniciosa novidade opiniões seduziu a muitos. A partir daquele tempo, a multidão pretendeu não somente que lhe fosse dada uma liberdade mais ampla do que lhe era conforme, como também considerou adequado modelar ao seu próprio arbítrio a origem e a constituição da sociedade dos homens. Hoje em dia vê-se que foi além; um grande número dos nossos contemporâneos, seguindo as pegadas daqueles que no século passado deram a si mesmos o nome de filósofos, afirmam que todo poder vem do povo. Por conseguinte, aqueles que exercem o poder não o exercem como coisa própria, mas sim como mandatários ou emissários do povo; e por essa própria regra a vontade do povo pode a qualquer momento retirar de seus mandatários o poder que lhes foi delegado. Mas disso os católicos dissentem, pois colocam em Deus, como princípio natural e necessário, a origem do poder político.

Todavia, é importante observar aqui que, aqueles que forem governar o Estado, em certos casos, podem ser eleitos pela vontade e juízo da multidão, sem que isso venha a ser motivo de oposição ou contradição à doutrina católica. Nessa eleição designa-se o governante, mas a multidão não pode conferir a ele a soberania; e nem o poder lhe é entregue nesse mandato, mas apenas se estabelece aquele que há de exercê-lo. Não se quer tratar nesta encíclica as diferentes formas de governo; não há porque a Igreja não aprovar o governo de um ou de muitos, desde que ele seja justo e atenda ao interesse geral. Por isso, desde que a justiça esteja salvaguardada, não é proibido ao povo a escolha daquele sistema de governo que seja mais apto e conveniente à sua maneira de ser ou que seja conforme as instituições e costumes de seus antepassados.

Mas, no que diz respeito ao poder político, a Igreja ensina retamente que o poder vem de Deus. Assim se encontra claramente testemunhado nas sagradas Escrituras e nos monumentos da antiguidade cristã; além disso, não se pode pensar em doutrina alguma que seja mais conveniente à razão ou mais conforme o bem dos governantes e dos povos.

Os livros do Antigo Testamento afirmam claramente em muitos lugares que a fonte verdadeira da autoridade humana está em Deus: 'Por mim reinam os reis…; por mim imperam os príncipes, e os poderosos decretam a justiça' (Pv 8, 15-16). E em outra parte: 'Aplicai os ouvidos, vós que governais os povos…; porque de Deus vos tem sido dado o poder, e do Altíssimo a força' (Sb 6, 3-4). A mesma coisa encontra-se no livro do Eclesiástico: 'Ele estabeleceu a cada nação seu príncipe' (Eclo 17, 14). No entanto, os homens que haviam recebido esses ensinamentos do próprio Deus foram esquecendo-os paulatinamente por causa do paganismo supersticioso, que por sua vez, assim como corrompeu muitas noções e ideias da realidade, da mesma maneira adulterou a autêntica forma e a beleza da autoridade política. Pouco depois, quando brilhou a luz do Evangelho cristão, a vaidade cedeu seu posto à verdade, e de novo começou a ser visto claramente o nobre e divino princípio do qual provém toda a autoridade. Ao governador romano, que se arrogava o poder e a autoridade para absolvê-lo e condená-lo, Nosso Senhor Jesus Cristo respondeu: 'Tu não terias poder algum sobre mim, se te não fosse dado do alto' (Jo 19, 11). E Santo Agostinho, explicando essa passagem, diz: 'Aprendamos o que disse, que é o mesmo que ensinou pelo Apóstolo, que não há poder que não venha de Deus' (Tract. CXVI in Ioan. n. 6). A voz incorrupta dos apóstolos ecoou fielmente a doutrina e os preceitos de Jesus Cristo. Excelsa e plena de gravidade é a sentença de São Paulo aos Romanos, que estavam sujeitos ao poder dos imperadores pagãos: 'Porque não há potestade que não venha de Deus', donde o Apóstolo deduz, como consequência, que 'o Príncipe é ministro de Deus' (Rm 13, 1-4).

Os Padres da Igreja buscaram com toda diligência afirmar e propagar essa mesma doutrina no que haviam sido instruídos. 'Não atribuamos' — disse Santo Agostinho — 'senão somente ao Deus verdadeiro a potestade para dar o reino e o poder' (De Civ. Dei, lib. V, cap. 21). Sobre a mesma passagem, São João Crisóstomo diz: 'Que existam principados e que uns mandem e outros sejam súditos não é algo que suceda por acaso e temerariamente…, senão por divina sabedoria' (In epist, ad Rom., homil. XXIII, n. 1). O mesmo atestou São Gregório Magno com estas palavras: 'Confessamos que o poder é dado do alto aos imperadores e reis' (Epist. lib. II, epist. 61). Os mesmos santos doutores buscaram também ilustrar esses mesmos preceitos usando somente a luz natural da razão para que eles viessem a se mostrar retos e verdadeiros mesmo aos que não têm outro guia além da razão. Com efeito, a natureza, ou melhor, Deus, que é autor da natureza, deseja que o homem viva em sociedade; e isso é claramente demonstrado tanto pela faculdade de falar, máxima fomentadora da sociedade; há também um bom número de tendências inatas da alma, além de muitas coisas necessárias e de grande importância que os homens não conseguiriam se estivessem isolados, mas conseguem se estiverem unidos e associados. E não pode nem existir e nem ser concebida uma sociedade em que não haja alguém que modere e una as vontades de cada indivíduo, para que de muitos se faça uma unidade e as impulsione dentro de uma ordem reta em direção ao bem comum; Deus quer, portanto, que na sociedade civil haja aqueles que governem a multidão. Há também outra consideração de muito peso: as autoridades que administram a coisa pública podem exigir a obediência dos cidadãos, e de tal maneira é essa exigência, que não obedecer-lhes seria nitidamente pecado. Entretanto, nenhum homem tem em si mesmo ou por si mesmo o poder de sujeitar a vontade livre dos demais com os grilhões dessa autoridade. Deus, criador e governador de todas as coisas, é o único que tem esse poder. E os que exercem esse poder devem exercê-lo necessariamente como comunicado por Deus a eles: 'Não há mais que um Legislador, um Juiz, que pode perder, e que pode salvar' (Tg 4, 12). E isso está manifesto em todo tipo de poder. Que o poder que está num sacerdote provém de Deus é algo tão conhecido que, entre todos os povos, eles são reconhecidos e chamados de ministros de Deus. Similarmente, a autoridade dos pais de família preserva uma certa efígie e forma da autoridade que há em Deus, 'do qual toda a paternidade toma o nome nos Céus e na terra' (Ef 3, 15). Por isso as diversas espécies de poder têm entre si maravilhosas semelhanças, já que todo poder e autoridade, sejam quais forem, derivam sua origem de um único e idêntico Criador e Senhor do mundo, que é Deus.

Aqueles que afirmam que a sociedade civil nasceu do livre consenso entre os homens, e que buscam nesta mesma fonte o princípio da autoridade, dizem que cada homem cedeu algo do seu direito e que, voluntariamente, ele foi entregue ao poder daquela pessoa cujos direitos atraiu a soma deles. Mas erro maior é não ver o que é evidente: o homem não é uma espécie atomizada e errante; é que antes de toda resolução da sua vontade, há a sua condição natural, que é viver em sociedade. Ademais, o pacto que pregam é claramente uma invencionice fictícia que não tem poder para conferir à autoridade política tal força, dignidade e firmeza requeridas para a defesa do Estado e pela necessidade comum dos cidadãos. O governo só terá esses ornamentos e garantias universais se se reconhecer que eles emanam de Deus como sua augustíssima e sacratíssima fonte.

E é impossível que se encontre ensinamento mais verdadeiro e vantajoso que esse. Porquanto, se o poder político dos governantes é uma participação no poder divino, o poder político alcança por esta mesma razão uma dignidade maior que a meramente humana. Com efeito, não aquela ímpia e absurda dignidade algumas vezes desejadas pelos imperadores pagãos quando reivindicavam honras divinas, mas sim a dignidade verdadeira e sólida, que é recebida por um especial dom de Deus. Por isso, será conveniente que os cidadãos submetam-se e sejam obedientes aos governantes como ao próprio Deus, e não por temor do castigo, mas sim por respeito à sua majestade; não com sentimento de servidão, mas como dever de consciência. Assim, a autoridade se manterá em seu verdadeiro lugar com muito mais firmeza. Pois os cidadãos, percebendo a força desse dever, evitarão necessariamente a desonestidade e a contumácia, pois eles devem estar persuadidos de que aquele que resiste à autoridade governante está resistindo à vontade divina; que aqueles que recusam honrar os governantes recusam honrar o próprio Deus.

Essa é a doutrina que o Apóstolo Paulo ensinou especialmente aos romanos. A estes escreveu com tamanha autoridade e peso sobre a reverência devida às altas autoridades, que parece nada poder ser ensinado com maior gravidade: 'Todo o homem esteja sujeito às potestades superiores: Porque não há potestade que não venha de Deus; e as que há, essas foram por Deus ordenadas. Aquele pois que resiste à potestade, resiste à ordenação de Deus. E os que lhe resistem, a si mesmos trazem a condenação… É logo necessário que lhe estejais sujeitos não somente pelo temor do castigo, mas também por obrigação de consciência' (Rm 13, 1-5). E em concordância com esse ensinamento está a célebre declaração de Pedro, Príncipe dos Apóstolos, quando fala do mesmo assunto: 'Submetei-vos pois a toda a humana criatura, por amor de Deus; quer seja ao Rei como a Soberano; quer aos Governadores, como enviados por Ele para tomar vingança dos malfeitores, e para louvor dos bons; porque assim é a vontade de Deus' (1Pe 2, 13-15).

A única razão a qual os homens têm para não obedecer é quando algo demandado por eles repugna abertamente ao direito natural ou ao direito divino; porquanto não podem ser mandadas e nem executadas todas aquelas coisas que violam a lei natural ou a vontade de Deus. Se, pois, suceder que o homem se veja obrigado a fazer uma das duas coisas, ou seja, ou desprezar os mandamentos de Deus ou desprezar a ordem dos príncipes, ele deve obedecer a Jesus Cristo, que nos manda dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus (Mt 22, 21), e, a exemplo dos Apóstolos, responder vigorosamente: 'Importa obedecer mais a Deus do que aos homens' (At 5, 29). E também não há razão para serem acusados de recusar a obediência devida aqueles que assim procedem, pois se a vontade dos governantes contradiz a vontade e as leis de Deus, os governantes excedem os limites do seu poder e pervertem a justiça. Então, nem a autoridade deles pode ser válida, pois onde não há justiça a autoridade é nula.

Ademais, para que a justiça seja mantida no poder, convém sobremaneira que aqueles que governam os Estados entendam que o poder político não foi dado para o proveito particular; e que o governo da república deve ser exercido em proveito dos súditos, e não em proveito daqueles que receberam o encargo de zelar por eles. Que os príncipes tomem o exemplo do Deus Altíssimo, que a eles deu autoridade; e, colocando à frente de si mesmos a imagem de Deus na administração da república, governem o povo com equidade e fidelidade, e que eles unam à severidade, que é necessária, a caridade paterna. Por esta causa as Sagradas Escrituras avisam os príncipes que eles também devem dar conta algum dia ao Rei dos reis e Senhor dos senhores; se eles abandonarem seus deveres, não poderão evitar de maneira alguma a severidade de Deus: 'Porque de Deus vos tem sido dado o poder, e do Altíssimo a força, o qual vos perguntará pelas vossas obras, e esquadrinhará vossos pensamentos. Porque sendo Ministros do seu Reino, não julgastes com equidade… Ele vos porá diante de um modo temeroso, e dentro de pouco tempo, porque sobre os que governam se fará um juízo rigorosíssimo… Porque Deus não excetuará pessoa alguma, nem respeitará a grandeza de quem quer que for; porquanto ele fez ao pequeno e ao grande, e tem igualmente cuidado de todos. Mas aos mais fortes mais forte suplício ameaça' (Sb 6, 4-8).

E se esses preceitos protegem o Estado, é removida toda causa ou desejo por sedições; e ficarão asseguradas a honra e a segurança dos governantes, e a tranquilidade e o bem-estar das sociedades. Fica também mais bem cuidada a dignidade dos cidadãos; porquanto lhes foi concedido manter, na própria obediência, o decoro adequado à excelência do homem, pois eles entendem que, no juízo de Deus, não há servo nem livre; há um só Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam (Rm 10, 12) e também entendem que estão sujeitos e obedecem aos príncipes pois estes são, de certo modo, imagem de Deus, a quem servir é reinar.

A Igreja sempre procurou fazer com que esta concepção cristã de poder político não somente seja impressa nas almas, mas também que ela fique expressa na vida pública e nos costumes dos povos. Enquanto se sentavam no trono do Estado os imperadores pagãos, que pela superstição se viam impedidos de se elevar a esta concepção de poder que aqui delineamos, a Igreja procurou inculcá-la nas mentes dos povos, que por sua vez, tão logo aceitavam as instituições cristãs, deveriam ajustar suas vidas a elas. E assim, os pastores de almas, renovando os exemplos do apóstolo São Paulo, consagravam-se, com sumo cuidado e diligência, à pregar aos povos que sejam sujeitos aos príncipes e aos magistrados, que lhe obedeçam (Tt 3, 1). Igualmente, que orassem a Deus por todos os homens, e mais especialmente pelos reis e por todos os que estão elevados em dignidade… porque isto é bom e agradável diante de Deus nosso salvador (1Tim 2, 1-3). E os cristãos antigos nos deixaram ensinamentos brilhantes, pois sendo atormentados injusta e cruelmente pelos imperadores pagãos, jamais deixaram de seguir com obediência e submissão, de tal modo que os dois lados pareciam competir entre si: os imperadores na crueldade e os cristãos na obediência. Tão grande era essa modéstia cristã e tão certa a vontade de obedecer, que não puderam ser obscurecidas pelas maliciosas calúnias dos inimigos. Por isso é que, aqueles que iam defender publicamente o cristianismo diante dos imperadores, demonstravam principalmente com esse argumento que era injusto castigar os cristãos segundo as leis pois eles vivam de acordo com elas aos olhos de todos, para dar exemplo de observância. Assim falava Atenágoras com toda confiança a Marco Aurélio Antonino e ao seu filho Lúcio Aurélio Cômodo: 'Vós permitis que nós, que não cometemos mal algum, e que antes procedemos com toda piedade e justiça — não só com Deus, mas também com o império — sejamos perseguidos, despojados e desterrados' (Legat. pro Christianis). Do mesmo modo, Tertuliano louvava publicamente os cristãos, pois eram, dentre todos, os melhores e mais seguros amigos do império: 'O cristão não é inimigo de ninguém, nem do imperador, o qual, sabendo que ele foi instituído por Deus, deve ser amado, respeitado, honrado e querer que ele seja salvo com todo o Império romano' (Apolog. n. 35). E nem duvidava em afirmar que nos confins do império tanto mais diminuía o número dos seus inimigos quanto mais crescia o número de cristãos: 'Agora tens poucos inimigos, pois os cristãos são maioria, porque em quase todas as cidades são cristãos quase todos os cidadãos' (Apolog. n. 37). Há também um insigne testemunho desta mesma realidade na Epístola a Diogneto, na qual confirma que naquele tempo os cristãos haviam se acostumado não somente a servir e a obedecer as leis, mas também cumpriam todos seus deveres com maior perfeição do que exigiam as leis: 'Os cristãos obedecem as leis promulgadas e com seu gênero de vida vão além do que mandam as leis'.

Entretanto, a questão mudava quando as ordens imperiais e as ameaças dos pretores mandavam que os cristãos abandonassem sua fé ou que eles faltassem de alguma maneira com seu dever. Nessas épocas, indubitavelmente, eles preferiam desagradar aos homens em vez de desagradar a Deus. No entanto, mesmo nessas circunstâncias não houve quem tratasse de promover sedições nem quem menosprezasse a majestade do imperador, e eles não pretendiam outra coisa senão se confessarem cristãos e declarar que eles não alterariam de modo algum sua fé. Não cogitavam resistir de modo algum, mas sim marchavam contentes e gozosos como nunca em direção aos suplícios, donde a magnitude dos tormentos se via vencida pela grandeza de alma dos cristãos. Nesse mesmo período, a força dos princípios cristãos foi observada de maneira semelhante pelo exército; Porquanto era a marca de um soldado cristão combinar a suma coragem com a suma dedicação à disciplina militar; e acrescentar à nobreza da alma a imóvel fidelidade ao príncipe. Mas se algo desonesto fosse requerido dele (como por ex. violar as leis de Deus ou virar sua espada contra inocentes discípulos de Cristo), então ele se recusava a executar as ordens, de tal modo que, em vez de se opor à autoridade pública por meio de sedições e tumultos, ele preferia antes depor armas e morrer por sua religião.

Mais tarde, quando os príncipes cristãos passaram a ser chefes dos Estados, a Igreja empenhou-se muito mais para declarar e ensinar o que há de sagrado na autoridade dos governantes. Com esses ensinamentos conseguiu-se que os povos, quando pensavam na autoridade, acostumassem a ver nos governantes uma imagem da majestade divina, e nisso eram impelidos a ter maior respeito e amor por eles. Por isso mesmo, sabiamente dispôs a Igreja que os reis fossem consagrados com os ritos sagrados, conforme fora ordenado pelo próprio Deus no Antigo Testamento. Quando a sociedade civil, surgida das ruínas do Império romano, abriu-se de novo à esperança da grandeza cristã, os Romanos Pontífices consagraram de um modo singular o poder civil com o imperium sacrum, fazendo com que a autoridade civil adquirisse assim uma dignidade desconhecida. Com efeito, não há dúvida que essa instituição teria sido maximamente útil, tanto para a sociedade religiosa quanto para a civil, se os príncipes e os povos tivessem buscado o que a Igreja buscava. Enquanto reinou uma concorde amizade entre ambas as potestades, conservaram-se a paz e a prosperidade públicas. Se alguma vez os povos incorriam no pecado das rebeliões, prontamente eram acudidos pela Igreja, conciliadora nata da tranquilidade, exortando todos ao cumprimento dos seus deveres e refreando os ímpetos da concupiscência, em parte com a persuasão e em parte com sua autoridade. De maneira semelhante, se os reis pecavam no exercício do poder, apresentava-se a Igreja perante eles e, recordando-lhes os direitos dos povos, suas necessidades e retas aspirações, aconselhava-lhes justiça, clemência e benignidade. Por esta razão se recorreu muitas vezes à influência da Igreja para afastar o perigo de revoluções e guerras civis.

Por outro lado, as teorias sobre o poder político inventadas por autores mais recentes já trouxeram grandes calamidades aos homens, e é de temer que elas trarão desastres ainda piores no futuro. Com efeito, negar-se a atribuir a Deus como fonte do direito de comandar os homens não é outra coisa senão querer apagar o grandioso esplendor do poder político e destruir seu vigor. E aqueles que dizem que esse poder depende da vontade do povo cometem o primeiro erro de opinião; em seguida eles erram ao assentar a autoridade sobre fundamentos muito fracos e instáveis. Tais opiniões são como um estimulante perpétuo às paixões populares, pois estas acabam por crescer cada dia mais em insolência e preparam a ruína pública ao pavimentar o caminho para as conspirações secretas ou para as sedições abertas. Com efeito, tumultos repentinos e audaciosíssimas rebeliões deram-se na Alemanha após a dita Reforma, cujos autores e líderes que, com suas doutrinas, atacaram os próprios alicerces dos poderes civil e religioso; e isso com uma deflagração tão terrível de guerra civil e com tal matança que quase não havia nenhum lugar livre de tumulto e derramamento de sangue. Dessa heresia nasceu no século passado uma falsa filosofia, —o dito novo direito—, a soberania popular e uma licença descontrolada, que muitos consideram como a única liberdade. E então chegamos a esses erros recentes que se chamam comunismo, socialismo e niilismo, que são monstros terríveis e ameaçam de morte a sociedade civil. No entanto, muitos ainda tentam estender o alcance desses males, e sob o pretexto de ajudar a multidão, já provocaram um número não pequeno de incêndios e ruínas. As coisas que aqui mencionamos não nos são nem desconhecidas e nem remotas.

Isso, com efeito, é ainda mais grave porque os príncipes, em meio a tantos perigos, carecem de remédios suficientes para restaurar a disciplina e a tranquilidade. Eles se guarnecem com a autoridade das leis e pensam que com isso constrangem, pela severidade da punição, aqueles que perturbam o governo. Fazem muito bem. Não obstante, deveriam considerar seriamente que nenhum poder de punição pode ser tão grande a ponto de ele sozinho ter o poder de preservar o Estado. Porquanto o medo, como ensina claramente Santo Tomás, é um fundamento débil, porque aqueles que se submetem por medo, se surgir a ocasião em que possam escapar impunes, insurgem-se com tanto maior ardor quanto mais tenham sido coibidos por meio do medo». Ademais, 'de um medo muito grande muitos caem em desespero; e o desespero leva os homens a tentar conseguir audaciosamente aquilo que desejam' (De Regim. Princip. lib. I, cap. 10. 30). A experiência demonstra suficientemente a grande verdade destas afirmações. É, portanto, necessário buscar uma razão mais alta e mais confiável para a obediência, e dizer explicitamente que a severidade legal não pode ser eficaz se os homens não forem incitados pelo dever e conduzidos por um salutar temor de Deus. Mas isso é a religião quem pode pedir da melhor maneira; religião essa que por seu poder entra nas almas e inclina as vontades dos homens fazendo com que eles não apenas rendam obediência aos seus governantes, mas também mostrem sua benevolência e caridade, que é em toda sociedade a melhor guardiã da integridade.

Por isso é que se deve reconhecer que os Romanos Pontífices como insignes servidores do interesse geral, pois eles sempre se esforçaram para quebrantar o espírito túmido e inquieto dos inovadores, e frequentemente advertiram os homens acerca dos perigos que esses tipos representavam para a sociedade. A respeito disso convém mencionar a declaração de Clemente VII a Ferdinando, rei da Boemia e da Hungria: 'Na causa da fé está inclusa tanto a sua própria dignidade quanto a dos demais governantes, pois a fé não pode ser abalada sem que sua autoridade seja arruinada; isso ficou comprovado recentemente em alguns desses territórios'. Nessa mesma linha brilhou a providente firmeza dos Nossos Predecessores, especialmente Clemente XII, Bento XIV e Leão XII, que ao verem em suas respectivas épocas o mal das perversas doutrinas se propagar, e audácia das seitas crescer, fizeram uso da autoridade que possuíam para impedir o avanço delas. Nós mesmos já denunciamos muitas vezes a gravidade dos perigos que nos ameaçam, e ao mesmo tempo indicamos a melhor maneira de afastá-los. Aos príncipes e aos demais governantes do Estado oferecemos proteção da religião, e exortamos o povo a usar abundantemente os benefícios que a Igreja provê. De novo oferecemos aos príncipes esse apoio, — que é o mais firme de todos — e com veemência exortamos-lhes no Senhor para que defendam a religião, e no interesse do próprio Estado concedam à Igreja aquela liberdade a qual não se pode privá-la sem incorrer na injustiça e na ruína geral. Com efeito, a Igreja de Cristo não pode ser objeto de suspeita para os príncipes e nem mal vista pelos povos, pois ela admoesta os governantes para que eles sigam a justiça e de maneira alguma fujam do seu dever; assim, ao mesmo tempo ela corrobora o governo e coadjuva sua autoridade de muitas maneiras. Em todas as coisas que são de natureza civil a Igreja reconhece e declara o poder e autoridade do governante sobre elas; e nas coisas que, sob diversas causas, afetam simultaneamente a potestade civil e a eclesiástica, a Igreja quer que exista concórdia entre ambos para que sejam evitados conflitos funestos às duas partes. No que diz respeito aos povos, a Igreja foi fundada para a salvação de todos os homens e sempre amou-os como mãe. É a Igreja que, pelo exercício da caridade, deu a mansidão às almas, humanidade nos costumes e equidade nas leis. Nunca oposta à liberdade honesta, a Igreja sempre detestou o governo tirânico. Este costume, inerente à Igreja, foi expresso por Santo Agostinho com grande precisão e clareza nas seguintes palavras: 'A Igreja ensina os reis a velarem pelo seu povo e ensina todos os povos a se submeterem aos seus reis; mostrando que nem tudo é devido a todos, mas a todos é devida a caridade e a ninguém a injustiça' (De morib. Eccl. lib. 1, cap. 30).

Por estas razões, veneráveis irmãos, vossa obra será muito útil e totalmente salutar se coadunardes conosco todos esforços e habilidades que Deus vos deu para que assim possamos afastar todos os perigos e males da sociedade. Buscai zelosamente fazer com que os homens compreendam e cumpram com diligência os preceitos estabelecidos pela Igreja Católica a respeito do poder político e do dever de obediência. Enquanto autoridades e mestres que sois, admoestai o povo para que fuja das seitas proibidas, abomine as conjurações e não tenha parte nas sedições; e façais com que seja entendido que, aquele que obedece aos governantes por causa de Deus, sua sujeição é conforme a razão e sua obediência é magnânima. Por ser Deus que dá a saúde aos reis (Sl 142, 11) e concede aos povos assentarem-se na formosura da paz, e nos tabernáculos da confiança, e num descanso opulento (Is 32, 18), é necessário suplicar insistentemente a Deus para que Ele incline a vontade de todos em direção à honestidade e à verdade, para que reprima as iras e restitua em todo orbe a paz e a tranquilidade há muito desejadas.

Para que possamos pedir com mais esperança, ponhamos como intercessores e defensores do nosso bem-estar a Virgem Maria, insigne mãe de Deus, auxílio dos cristãos e guarda do gênero humano; e São José, seu castíssimo esposo, cujo patrocínio toda Igreja confia; e a São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, e São Paulo, guardiães e protetores do nome cristão. Enquanto isso, como promessa dos dons divinos e da nossa ternura, nós damos a todos vós, veneráveis irmãos, ao clero e ao povo confiado à vossa solicitude, a Bênção Apostólica no Senhor.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

SOBRE O COMBATE AOS NOSSOS INIMIGOS

Bem quisera*, bem quisera frequentemente entreter-me aqui da grandeza e da beleza das coisas de Deus; ou até entreter-me em discussões vivas, mas realmente amistosas, sobre reais e dolorosas divergências que me separa de alguns irmãos na fé. Preferiria o debate elevado e sempre inspirado pela santa caridade, que tem como primeira exigência o amor da verdade. Muitas vezes me entretenho com amigos sobre todos os assuntos que tocam a sagrada doutrina, e não tenho hoje mais feliz passatempo. Mas a sinistra realidade é a do combate público, escandaloso, que o inimigo faz à Igreja, e que, portanto, nos impõe.

Volvo quase um século, para lembrar a primeira lição de catecismo recebida de minha mãe. Creia-me o leitor ou não, mas o fato é que realmente me lembro. Suspendendo a esferográfica um instante, revi esse momento que peço a Deus rever na hora de minha morte: eu pequenino, nos joelhos de minha mãe, aprendia o Pelo Sinal. Segurava-me ela a mão e, com meu pequenino polegar, fazia o sinal iniciador da vida católica, repetindo as palavras: Pelo Sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus Nosso Senhor, de nossos inimigos. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.

Hoje, depois de um século de empulhamentos e do triunfal aggiornamento trazido por uma apoteose de equívocos, querem nos inculcar a amolecida ideia de um cristianismo sem combate, sem inimigos e, por via de consequência, sem necessidade do Sinal da Cruz. Ouso dizer que a paz mundial, a paz terrestre, a paz feita de bem-estar e do comodismo... constitui uma das principais preocupações do demônio. Muito melhor do que nós, ele sabe que a obsessão desse cuidado nos leva ao abandono de qualquer ideal de Bem e de Verdade, e diverte-se em saber também que esse é o caminho da mais espantosa explosão de inimizades que o mundo conhecerá. 

Por mim, confesso que me apavoro, quando sinto o horror que esta simples palavra provoca nesta atualidade costurada de ecumenismos, cursilhos, diálogos e demais retalhos da fantasia dopada. Uma vez, conversando com um general, usei inadvertidamente este vocábulo: 'os nossos inimigos' e ouvi esta afetuosa observação: 'professor, eu refiro o termo adversário'. Calei-me aterrado. Se os padres e os militares não sabem mais o que é o 'inimigo', quem o saberá? Porque, na verdade, as duas instituições que devem ter a viva noção desta entidade, são realmente a Igreja e o Exército. Aqui no Brasil, as desavenças acaso ocorridas entre essas duas instituições se explicam umas vezes pelo fato de não serem 'da Igreja' aqueles que em nome dela pretendem falar, outras vezes pelo fato de não saberem, os homens da Igreja, que o Exército, de 64 até hoje luta a seu lado contra o inimigo comum.

Imagino que, a esta altura, meu leitor esteja a revolver as ideias que aprendeu sobre a caridade, evangelho, perdão e outras grandes noções que hauriu no regaço da Igreja. Sendo estudioso, lembra-se que o Concílio de Trento trouxe esta definição lapidar: a Igreja Militante é aquela parte de seus membros (ainda na Terra) que luta contra três cruéis inimigos: o Diabo, o Mundo e a Carne.

Mas meu leitor também se lembrará de uma palavra de Cristo: 'Mas eu vos digo amareis vossos inimigos'... Meu Deus, como conciliar tantas ideias aparentemente opostas? Como poderei amar se devo combater? Respondo dizendo: combatendo! Porque esta é a melhor forma de caridade a que ele tem direito. Por incrível que pareça são os pacifistas que pecam contra a caridade quando querem que todos se unam e se misturem na mesma indiferença em relação à Verdade e ao Bem. Sim, não há mais odioso pecado contra a caridade do que a amável condescendência com que permitimos e colaboramos com a permanência no erro e no mal. Não fazer questão de incomodá-lo, de combatê-lo, de tirá-lo da sua tranquilidade no erro e no mal, é fazer uma das obras prediletas do demônio.

* um artigo quase cinquentenário, quase profético, de uma realidade assustadora e inquietante.

(Gustavo Corção, excertos de artigo publicado no jornal 'O Globo' de 25/07/74 - site Permanência)

BREVIÁRIO DIGITAL - LADAINHA DE NOSSA SENHORA (L)

RAINHA DOS MÁRTIRES, rogai por nós.

(Ilustração da obra 'Litanies de la Très-Sainte Vierge', por M. L'Abbé Édouard Barthe, Paris, 1801)

terça-feira, 20 de setembro de 2022

PALAVRAS DE SALVAÇÃO


'Somente a pessoa que fica irada sem razão, peca. Quem quer que fique irado por uma razão justa não é culpado. Porque, se faltasse a ira, a ciência de Deus não teria andamento, os julgamentos não seriam acertados, e os crimes não seriam reprimidos. Ademais, a pessoa que não fica irada quando deveria estar, peca. Pois uma paciência excessiva é o viveiro de muitos vícios: ela fomenta a negligência e estimula todos e não apenas os perversos, antes de todo o bem, a fazer o errado'.

(São Tomás de Aquino)

domingo, 18 de setembro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

  

'Louvai o Senhor, que eleva os pobres' (Sl 112)

 18/09/2022 - Vigésimo Quinto Domingo do Tempo Comum 

43. O ADMINISTRADOR FIEL 


Eis a parábola que fala da necessidade imperiosa dos Filhos de Deus viverem a sábia prudência que nasce e se alimenta da verdadeira fidelidade. A prudência dissociada da fidelidade é vanglória humana; a santidade pressupõe a adoção conjunta e harmônica destas duas virtudes, na convivência diária e nas relações humanas, no exercício das atividades do mundo, na utilização criteriosa dos recursos materiais à nossa disposição - inclusive o dinheiro, com foco único e centrado na salvação eterna de nossas almas.

Qual o uso que se dá ao que nos foi dado por Deus? O fruto de nossa herança eterna é a forma com que lidamos com os bens materiais e espirituais que a Divina Providência semeou no campo fértil da sua vinha: saúde, bens, poderes, riquezas, talentos, habilidades - tudo nos é dado como dotes mutáveis e transitórios para serem compartilhados com o próximo e produzir frutos perenes de vida eterna em terras alheias. Por que, tal como no caso do administrador infiel da parábola do Evangelho deste domingo, todos seremos igualmente cobrados pelo Senhor da Vinha: 'Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar meus bens’ (Lc 16, 2).

No Julgamento Particular de cada um de nós, já não haverá mais tempo para se administrar o bem que não se fez, a partilha não realizada, a herança não distribuída. Assim, Jesus nos alerta sobre a nossa condição de administradores temporários de bens e graças nesta vida, dos quais teremos de prestar conta de tudo. E cita o exemplo da esperteza do administrador infiel, que usou da sagacidade e de uma falsa e interesseira prudência para obter vantagens e benesses para a sua subsistência futura, porque, 'os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz' (Lc 16, 8).

Com sábia prudência, os filhos da luz deveriam agir como administradores fieis dos bens e riquezas do mundo, coisas boas em si, desde que adquiridas com trabalho honesto e tratadas como meios para glória de Deus e não como fins para ganância e soberba dos homens: 'Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro' (Lc 16, 13). Eis aí a nossa herança como administradores bons e fieis: a eterna recompensa nas moradas eternas do Senhor da Vida.

sábado, 17 de setembro de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: A ALMA ABSORVIDA POR DEUS


Durante as duras provações a que ficou submetida para conquistar o vosso amor e durante as vossas longas ausências, ó meu Jesus, a alma interior não ficou paralisada. Por meio de obras e, sobretudo pelos seus pensamentos, forjou fabricar um mel de muita doçura e de odor delicioso, que agora ela vos oferece. E que Vós aceitais. Parece à alma que ela se fez alimento para ser absorvido por Deus, sem perder, entretanto, a sua real integridade. É como um alimento misterioso, integral em obras e substância, transformado em alimento digno de Deus, ainda que não acrescente nada à essência divina. A mudança é uma absoluta conversão no próprio Deus: sed tu muraberis in me (Santo Agostinho). A rigor, a alma se mantém substancialmente no que é e, no entanto, não é mais a mesma. Vê, pensa, age e ama como Deus, com Deus e em Deus. Sem transubstanciação, mas sob uma transformação integral. Feliz e ditosa transformação!

Durante muito tempo Deus foi o sustento da alma interior e, pouco a pouco, Ele a transformou em uma imagem de si mesmo. Até o momento em que, transformada integralmente segundo a sua Vontade, Ele toma para si essa alma divinizada, como seu próprio alimento. Antes, era a alma que se sentia fortalecida internamente por um alimento que era, ao mesmo tempo, doce e misterioso. Emanava dela uma grande felicidade, uma felicidade íntima e particular, a sua felicidade plena. Sentia possuir os limites da felicidade possível neste mundo. E agora percebe que mesmo isso era nada. Uma alegria completamente nova acalenta agora o seu coração, uma vez transformada em alimento digno de Deus. Uma felicidade que não tem medidas, pois absorvida e inebriada pelo próprio Deus.

É certo que a alma interior não ignora que nada pode acrescentar à felicidade que possui em Deus. No entanto, tudo se passa como se, nestes ditosos momentos, a alma fizesse a própria felicidade de Deus. A alma experimenta não apenas a sua alegria interior, mas também a de ser causa da alegria divina. Nenhuma comparação pode fazer entender o que significa tal felicidade. Seria necessário extrapolar e sublimar ao infinito a felicidade da mãe mais abnegada que alimenta o seu filho com o melhor de si e sustenta toda a sua felicidade em fazer feliz aquela criança tão amada que aperta fortemente ao coração. Seria preciso se elevar até Maria, Virgem e Mãe. E a alegria da alma interior não dilui, não se desvanece nunca. Quanto mais se dá a Deus, mais, muito mais, recebe de Deus, fonte infinita de amor. Recebe e se sacia deste amor, que inunda o seu coração, e que a faz estremecer de alegria.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)