segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

QUANDO O INFERNO É AQUI...

O Great Reset ('Grande Reinício') está no seu curso final. O mistério da iniquidade está prestes a se manifestar agora por inteiro, pois estão para ser colhidos os frutos da sua ação diabólica através dos tempos: a apoteose do caos - político, econômico, social, cultural, religioso. Não era o refrão 'paz e segurança!' a promessa feita por tantos governos e nações reunidas em fóruns globais, compartilhando e discutindo os problemas que afetam a mãe terra?  

'Quando os homens disserem: “Paz e segurança!”, então repentinamente lhes sobrevirá a destruição, como as dores à mulher grávida. E não escaparão'
(I Ts 5,3)

A paz e a segurança são conquistadas, não podem ser negociadas. Simplesmente porque todos os elementos inclusos em uma paz negociada são baseados em um armistício prévio. Com a guerra - com a invasão brutal da Ucrânia pela Rússia - estes princípios e fóruns caem por terra instantaneamente. E se percebe, então, como são frágeis, como são inúteis as tentativas de correção, como sanções econômicas e pressões políticas, absolutamente irrelevantes no contexto de impedir ou sustar efetivamente o poderio dos exércitos em marcha e a matança em curso.  


Enquanto grandes atores globais fingem atuações que têm a força da claque de um teatro de subúrbio e manchetes de plantão, milhares de pessoas - a realidade nua e crua da guerra - são expulsas de suas casas e migram para outros países, quando não são simplesmente assassinadas. São as 'vítimas da guerra', um preço a pagar pela geopolítica do confronto. Essa tem sido a justificativa diante a inevitável perda de vidas humanas - e muitos creem ser esse a análise final desta que constitui a mais grave crise militar na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial. 

Mas... a invasão russa mostra cabalmente que a Rússia pode fazer isso, sem a possibilidade concreta da intervenção de outras nações no conflito. Como intervir frente a invasão de um país soberano por uma potência que possui cerca de 4000 ogivas nucleares? (aliás como inclusive o próprio Putin fez referência explícita em comunicado recente). E se... a Rússia pode invadir a Ucrânia num conflito de estratégia geopolítica, porque a China não poderia fazer o mesmo com Taiwan? E se...

A apoteose do caos precisa apenas do gatilho eficaz, no qual as consequências podem ser previsíveis ou planejadas com diabólicas intenções. A invasão da Ucrânia é um fato isolado e impactante num mundo globalizado que anseia por paz e segurança entre as nações? Claro que não. É muito mais do que isso, porque mobiliza consequências previsíveis extremamente alarmantes. E, neste contexto, estamos falando de Putin - uma marionete do teatro do mundo.


É muitíssimo mais do que isso. A invasão da Ucrânia é o estopim do Great Reset, nas mãos daqueles que verdadeiramente governam o mundo e que manipulam completamente o jogo político e econômico do sistema global. Neste contexto, não estamos falando de Putins e nem de marionetes. Estamos falando das consequências planejadas, impostas e consolidadas pelo mistério da iniquidade através dos tempos, visando o completo aniquilamento da civilização cristã. E tal conclusão é mais do que patente se levarmos em conta os insistentes apelos de Nossa Senhora em Fátima, quanto à perversa difusão dos erros da Rússia anti-católica sobre o mundo:

'Se atenderem os meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz. Se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas'

domingo, 27 de fevereiro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'Como é bom agradecermos ao Senhor!' (Sl 91)

 27/02/2022 - Oitavo Domingo do Tempo Comum

14. A ALMA DE TODO APOSTOLADO 


Neste Evangelho, Jesus continua a expor os princípios que devem reger o verdadeiro apostolado cristão, sob a tutela da doutrina das bem aventuranças e da prática constante da caridade e do amor ao próximo, incluindo, entre eles, os nossos inimigos. Neste propósito, 'um cego não pode guiar outro cego' (Lc 6, 39) e 'todo discípulo deverá ser como o mestre' (Lc 6, 40) constituem firmes proposições e a confirmação explícita de que a alma de todo apostolado é a fidelidade extrema à pregação dos ensinamentos e da doutrina da salvação enunciados por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Jesus nos ensina que devemos nos concentrar primeiro em nossas próprias fraquezas e fragilidades, antes de enunciarmos, por sobre os telhados, as faltas e pecados alheios. A imagem do 'cisco' em contraposição à 'trave' nos olhos de uns e outros, é o reflexo da desproporção de como vemos os nossos defeitos e o quanto extrapolamos a medida dos defeitos do próximo. Imagem do orgulho e da vanglória humanas, que insistem em nos colocar acima dos outros e que refreiam em nós os instrumentos da caridade, que só podem advir da humildade e da comiseração nascidas da nossa autocrítica de pecador entre pecadores: 'Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do teu irmão' (Lc 6, 42).

Somos o que fazemos. Fazemos o que somos. Não existe incongruência possível entre o que se planta e o que se colhe: 'Não existe árvore boa que dê frutos ruins, nem árvore ruim que dê frutos bons. Toda árvore é reconhecida pelos seus frutos. Não se colhem figos de espinheiros, nem uvas de plantas espinhosas (Lc 6, 43-44). A virtude não se contamina com o erro; a via de santificação não faz pontes e atalhos com concessões ao pecado; o bem prospera onde o mal é refreado e combatido em toda a medida.

No caminho do apostolado e da nossa santificação pessoal, precisamos guardar no coração os tesouros da fé - a árvore frondosa que nos há de tornar homens bons. Árvore que dará bons frutos, nascidos do coração e proclamados pelas palavras de exemplo e louvor, pois 'a boca fala do que o coração está cheio' (Lc 6, 45). Árvore boa que produz bons frutos - coração e palavras do homem bom - feita prática viva do apostolado cristão, que nos transforma em fieis cooperadores das graças divinas e herdeiros dos Céus.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXVI)

Capítulo XXVI

Duração do Purgatório - Venerável Catarina Paluzzi e a Irmã Bernardina - Irmãos Finetti e Rudolfini - São Pedro Claver e os Casos de Duas Almas

Citemos alguns outros exemplos que servirão para nos convencer ainda mais de quão longa é a duração dos sofrimentos do Purgatório. Veremos que a Justiça Divina é relativamente severa para com as almas chamadas à perfeição e que receberam muitas graças. Não diz Jesus Cristo no Evangelho: 'a quem muito é dado, muito será exigido; e que mais será pedido daquele a quem mais foi confiado?' (Lc 12,48).

Lemos na Vida da Venerável Catarina Paluzzi que uma santa religiosa, que morreu em seus braços, só foi admitida à beatitude eterna depois de passar um ano inteiro no Purgatório. Catarina Paluzzi levou uma vida santa na diocese de Nepi, na Itália, onde fundou um convento de dominicanos. Vivia com ela uma religiosa chamada Bernardina, também muito avançada nos caminhos da vida espiritual. Estas duas santas imitaram-se com fervor e ajudaram-se mutuamente a progredir cada vez mais na perfeição a que Deus as chamou.

O biógrafo da Venerável Catarina as compara a duas brasas vivas que comunicam calor entre si e a duas harpas afinadas que se harmonizaram em um hino perpétuo de amor à maior glória de Deus. Bernardina morreu depois de uma doença dolorosa, que suportou com paciência cristã. Quando estava prestes a expirar, ela disse a Catarina que não a esqueceria diante de Deus e que, se Deus assim o permitisse, voltaria a conversar com ela sobre assuntos espirituais que contribuíssem para a sua santificação.

Catarina orou muito pela alma da irmã religiosa e, ao mesmo tempo, implorou a Deus que permitisse que a sua alma pudesse aparecer a ela. Um ano inteiro se passou e a falecida não retornou. Finalmente, no aniversário da morte de Bernardina, estando Catarina em oração, viu um poço de onde saíam volumes de fumaça e chamas; então ela percebeu saindo do poço uma forma cercada de nuvens escuras. Aos poucos, esses vapores foram se dispersando e a aparição tornou-se radiante com um brilho extraordinário. Nessa gloriosa personagem, Catarina reconheceu Bernardina e correu em sua direção. 'É você, minha querida irmã?' - disse ela. 'Mas de onde você vem? O que significam este poço e esta fumaça ardente? Somente hoje termina o seu purgatório?'. 'Você está certa' - respondeu a alma - 'há um ano estou detida neste lugar de expiação, e hoje, finalmente, poderei entrar no Céu. Quanto a ti, persevere em seus santos exercícios: continue sendo caridosa e misericordiosa e você obterá misericórdia'.

O seguinte incidente pertence à história da Companhia de Jesus. Dois escolásticos ou jovens religiosos daquele Instituto, os Irmãos Finetti e Rudolfini, prosseguiram os seus estudos no Colégio Romano, no final do século XVI. Ambos eram modelos de piedade e regularidade, e ambos também haviam recebido uma advertência do Céu, que divulgaram, segundo a Regra, ao seu diretor espiritual. Deus lhes dera a conhecer a proximidade da morte e os sofrimentos que os esperava no Purgatório. Um ali iria permanecer por dois anos; o outro, por quatro anos. Eles morreram, de fato, um após o outro. Seus irmãos na religião imediatamente ofereceram as orações mais fervorosas e todos os tipos de penitências pelo descanso de suas almas. Eles sabiam que se a santidade de Deus impõe longas expiações aos seus eleitos, elas também podem ser abreviadas e inteiramente remidas pelos sufrágios dos vivos. Se Deus é severo para com aqueles que receberam muitos conhecimentos e graças, por outro lado Ele é muito indulgente para com os pobres e simples, desde que estes o sirvam com sinceridade e paciência.

São Pedro Claver, da Companhia de Jesus, Apóstolo dos Negros de Cartagena, soube do Purgatório de duas almas, que levaram vidas pobres e humildes sobre a terra; seus sofrimentos foram reduzidos a algumas horas. Encontramos o seguinte relato na vida deste grande servo de Deus. Ele havia persuadido uma mulher virtuosa, chamada Ângela, a receber em sua casa outra mulher chamada Úrsula, que havia perdido o uso de seus membros e estava coberta de feridas. Um dia, quando foi visitá-los, como fazia de vez em quando, para ouvir as suas confissões e levar-lhes algumas provisões, a caridosa anfitriã lhe disse com pesar que Úrsula estava à beira da morte. 'Não, não' - respondeu o sacerdote, consolando-a - 'ela ainda tem quatro dias de vida e não morrerá até sábado'. Quando chegou o sábado, ele rezou a missa por sua intenção, e saiu para prepará-la para a morte. Depois de algum tempo em oração, disse à anfitriã com ar de confiança: 'Consola-te, Deus ama Úrsula; ela morrerá hoje, mas ficará apenas três horas no Purgatório. Que ela se lembre de mim quando estiver com Deus, para que possa orar por mim e por aquela que até agora foi sua mãe'. Ela morreu ao meio-dia, e o cumprimento de uma parte da profecia deu grande razão para acreditar no cumprimento da outra.

Numa outra ocasião, tendo ido ouvir a confissão de uma pobre doente que costumava visitar, soube que ela estava morta. Os pais estavam muito angustiados e ele ficou também inconsolável, porque não acreditava que ela estivesse tão perto de seu fim e com a ideia de não ter podido ajudá-la em seus últimos momentos. Ajoelhando-se para rezar ao lado do cadáver, levantou-se de repente e com um semblante sereno disse: 'Tal morte é mais digna de nossa inveja do que de nossas lágrimas; esta alma está condenada ao Purgatório, mas apenas por vinte e quatro horas. Procuremos encurtar este tempo pelo fervor de nossas orações'.

Já foi dito o suficiente sobre a duração dos sofrimentos. Vemos que eles podem ser prolongados a um grau terrível; mesmo os sofrimentos mais curtos, ao considerarmos a sua gravidade, são longos. Procuremos abreviá-los para os outros e mitigá-los para nós mesmos, ou melhor ainda, preveni-los completamente. Agora vamos preveni-los removendo as causas. Quais são as causas? Qual é o cerne das penas de expiação no Purgatório?

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

PERDOAR OS NOSSOS INIMIGOS?

Cristo nos ordenou peremptoriamente a 'amar os nossos inimigos' (Lc 6,27 e Lc 6,35). Porque amar aos que nos amam é tarefa que fazem até mesmo os pecadores mais contumazes. Como católicos, somos exortados a amar os que não nos amam; mais ainda, amar aqueles que nos desprezam, caluniam e ultrajam diante de todos e diante de tudo! Obedecer ao Mestre implica nesse caso resistir e domar por completo o ódio que pode nos confrontar diante o outro.

Esse 'amar ao inimigo' implica, em primeiro lugar, desejar-lhes todo bem e, em segundo lugar, fazer a eles todo o bem possível. Do ponto de vista essencialmente humano, essa imposição nos parece demasiado forte, provavelmente antagônica a todos os nossos sentimentos e aspirações. Quem sabe 'ignorar os nossos inimigos' seja plausível; ou talvez não responder as ofensas ou ultrajes na mesma moeda já não seria um grande ato de amor? Por que Deus nos exige não apenas isso e, além mais do que o perdão, atos de caridade extrema para com os nossos inimigos?

A resposta é muito simples. Deus quer a salvação de todos os homens, quer sejam amigos, quer sejam inimigos nessa terra. Há aqueles que serão salvos porque são como as sementes do lavrador que foram lançadas em terra fértil, foram abertos à graça e se tornaram homens e mulheres de oração. Mas... e aquelas sementes lançadas em terra rude e que nunca deram frutos? Que, pelo contrário, produzem e espalham o mal, a discórdia e os confrontos de todos os tipos? Os nossos 'benditos' inimigos?

Sem oração, não serão salvos. Sem caridade, não serão salvos. Sem frutos e graças, não serão salvos. Eles serão salvos se houver outros que rezem por eles, que sofram e se penitenciem por eles, que deem frutos - muitos frutos de perdão e de caridade - por eles. E estes outros somos nós. Desde que possamos nos oferecer como instrumentos da graça divina para que muitos outros sejam salvos e possam, assim, tornarem-se também herdeiros da redenção de Cristo. Nada acontece por acaso e a nossa salvação depende da salvação de muitos outros, particularmente daqueles que foram colocados ou que nós mesmos colocamos, por razões diversas, como nossos 'inimigos' neste mundo. Amar os inimigos é levar o amor ao próximo aos limites mais insondáveis do amor divino. O nosso empenho será sempre agradável a Deus, ainda que possa ser inútil para os nossos inimigos.

Amar os nossos inimigos tem o limite de oferecer a outra face. A verdadeira caridade implica a concessão e a busca sincera do BEM ESPIRITUAL ao outro, destinada mesmo aos inimigos pessoais, com ofensas pessoais, com ultrajes pessoais que, independentemente disso, queremos que se  convertam e sejam salvos. Este propósito do bem espiritual implica necessariamente conversão e a mudança de vida do outro, objetivos que podem ser alcançados por bem ou por mal. Se não se tem tal resultado por bem, é absolutamente legítimo ao cristão rezar a Deus pedindo o afastamento, a derrubada ou a morte dos inimigos da Igreja e dos detratores contumazes dos valores da civilização cristã pelo simples fato de que não são apenas os 'nossos inimigos', mas inimigos de Deus. Podemos e devemos rezar a Deus, então, para que possam ser realmente detidos na sua iniquidade e sob o domínio do mal (e, ainda mesmo com a morte de alguns, neste caso com o propósito de ter fim essa alma continuar a acumular castigos eternos cada vez maiores para si mesmo).

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

ARS LONGA, VITA BREVIS

Os aforismos constituem sentenças curtas e objetivas, que incorporam conceitos fundamentais numa determinada área, expressando certos ensinamentos, regras ou princípios éticos e morais. Estão associados intimamente à medicina desde tempos remotos, mas podem ser extrapolados a quaisquer outras áreas do conhecimento.

Um exemplo clássico de aforismo é: Ars longa, vita brevis - a arte é longa, a vida é breve - tradução para o latim dos dois primeiros epigramas (com a ordem invertida) do Primeiro Aforismo de Hipócrates (do original grego):

ὁ βίος βραχὺς,
ἡ δὲ τέχνη μακρὴ

Embora a palavra Ars seja traduzida como arte, a sua acepção original estava relacionada à medicina. Uma vez que a natureza filosófica do aforismo expressa um sentimento universal, este pode ser extrapolado, então, a qualquer área do conhecimento. O aforismo completo é o seguinte: 'Vita brevis, ars longa, occasio praeceps, experimentum periculosum, iudicium difficile' – 'A vida é breve, a arte (ciência) é longa (extensa), a ocasião é fugaz, a experiência é perigosa, o julgamento é difícil'. 


Nesse conceito geral, o aforismo ressalta o paradoxo entre a limitação de uma vida e o domínio de qualquer ciência ou, em outras palavras, os mais sábios e os mais doutos sabem um pouco mais do que os outros sobre determinadas ciências ou áreas do conhecimento. E tudo se resume a saber nada mais do que um pouco do que realmente existe em qualquer área do conhecimento humano.

Conhecimento, portanto, nunca foi e nunca será a compreensão de tudo. Mas a busca do conhecimento é tudo o que podemos (e devemos) fazer das nossas vidas. Como criaturas de Deus, apequenados e extremamente limitados, somos chamados, no espaço reduzido de uma vida mais ou menos curta, a empreender a busca do conhecimento do Criador, de forma difusa e incompleta sim, mas como 'artistas' que estão no mundo para torná-lo melhor, mais conhecido e mais belo. E, assim, fazer Ars e Vita serem uma coisa só: a eternidade com Deus.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A CRUZ É EXEMPLO DAS VIRTUDES

Que necessidade havia para que o Filho de Deus sofresse por nós? Uma necessidade grande e, por assim dizer, dupla: para remédio contra o pecado e para exemplo do que devemos fazer. Foi em primeiro lugar um remédio, porque na paixão de Cristo encontramos remédio contra todos os males em que incorremos por causa dos nossos pecados.

Mas não é menor a utilidade que tem como exemplo. Na verdade, a paixão de Cristo é suficiente para orientar toda a nossa vida. Quem quiser viver em perfeição, basta que despreze o que Cristo desprezou na cruz e deseje o que Ele desejou. Nenhum exemplo de virtude está ausente da cruz. 

Se queres um exemplo de caridade: Não há maior prova de amor do que dar a vida pelos seus amigos. Assim fez Cristo na cruz. E se Ele deu a vida por nós, não devemos considerar penoso qualquer mal que tenhamos de sofrer por Ele.

Se procuras um exemplo de paciência, encontras na cruz o mais excelente. Reconhece-se uma grande paciência em duas circunstâncias: quando alguém suporta com serenidade grandes sofrimentos ou quando pode evitar os sofrimentos e não os evita. Ora Cristo suportou na cruz grandes sofrimentos, e com grande serenidade, porque sofrendo não ameaçava; e como ovelha levada ao matadouro, não abriu a boca. É grande portanto a paciência de Cristo na cruz: corramos com paciência a prova que nos é proposta, pondo os olhos em Jesus, autor e consumador da fé, que em lugar da alegria que lhe era proposta suportou a cruz, desprezando-lhe a ignomínia.

Se queres um exemplo de humildade, olha para o crucifixo: Deus quis ser julgado sob Pôncio Pilatos e morrer. Se procuras um exemplo de obediência, segue Aquele que se fez obediente ao Pai até à morte: assim como pela desobediência de um só, isto é, Adão, muitos foram constituídos pecadores, assim também pela obediência de um só, muitos serão justificados.

Se queres um exemplo de desprezo pelas honras da Terra, segue Aquele que é Rei dos reis e Senhor dos senhores, no qual se encontram todos os tesouros de sabedoria e de ciência e que, na cruz, está despojado das suas vestes, escarnecido, cuspido, espancado, coroado de espinhos e dessedentado com fel e vinagre.

Não te preocupes com trajes e riquezas, porque repartiram entre si as minhas vestes; nem com as honras, porque troçaram de Mim e me bateram; nem com as dignidades, porque teceram uma coroa de espinhos e a puseram sobre a minha cabeça; nem com os prazeres, porque para a minha sede me deram vinagre.

(Dos Comentários de São Tomás de Aquino, Liturgia das Horas)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

TESOURO DE EXEMPLOS (131/133)


131. O CONSOLO DE LÚCIFER

Um dia, voltando da terra, chegou um demônio ao inferno. Estava triste e abatido. Dirigindo-se a Lúcifer, o rei das trevas, disse:
➖ Chefe, falhou completamente o meu esforço. Mostrei ao Filho do Homem todas as riquezas e grandezas do universo e prometi-lhe dar-lhe tudo aquilo com a única condição de que me adorasse. E eis que Ele me repeliu com desprezo.
➖ Consola-te, meu filho - respondeu Lúcifer - mesmo que esse esteja perdido, todos os outros nos pertencem.

Depois de algum tempo regressa o demônio de sua nova excursão pela terra e diz:
➖ Chefe, está tudo perdido. O Filho do Homem acaba de fazer ao povo, no monte Tabor, um sermão sem igual. Ele afasta a todos das vaidades terrenas e impele-os para o reino de Deus.
➖ Consola-te, meu filho - disse Lúcifer - eles gostam de ouvir palavras novas e belas, mas não as põem em prática. Esquecer-se-ão delas como se esqueceram dos ensinamentos dos profetas.

Faz o demônio outra excursão pela terra. Quando volta ao inferno, chega-se ao poderoso rei Lúcifer e, desanimado, diz:
➖ Meu chefe, o nosso poder está liquidado para sempre. O Filho do Homem selou sua doutrina com a própria vida, provando assim que é realmente o Filho de Deus.
➖ Não te aflijas demais, meu filho - replicou Lúcifer - eles serão nossos apesar de tudo. O Filho do homem provou, é verdade, por sua morte na Cruz, que é o Filho de Deus, mas consola-te, meu fiel emissário, os homens não crerão nele.

Meu irmão, tira deste imaginário diálogo uma preciosa lição para tua alma, isto é, que não deves viver, como pagãos e libertinos, sem fé, sem religião e sem Deus.

132. SEMPRE MAIS

Perguntai a São Paulo o que deveis fazer para vos tornardes semelhantes a Jesus Cristo. São Paulo não vos enganará. Ele é o doutor que mais admiravelmente expôs as leis divinas de nossa perfeição na vida espiritual.
➖ Santo Apóstolo, temos a fé de Pedro, o discípulo escolhido por Jesus Cristo para seu vigário na terra. Isso nos basta?
➖ Não basta.
➖ Temos a caridade para com Deus e o amor para com o próximo, que aprendemos do discípulo predileto de Jesus. Isso nos basta?
➖ Não.
➖ Temos a fortaleza heroica demonstrada pelo Batista diante os inimigos. Isso nos basta?
➖ Não.
➖ Temos a confiança em Deus que distinguiu o patriarca São José, o qual mereceu ser tido por pai de Jesus. Isso nos basta?
➖ Não basta, não.

Escutai o que vos digo: Jesus Cristo é o modelo que deveis ter sempre diante dos olhos; é o retrato que haveis de reproduzir em vosso corpo e em vossa alma. E quem era Jesus Cristo? Era a caridade, era a justiça, a mansidão, a prudência e a paciência... Era a beleza de Deus manifestando-se aos olhos humanos, para que nele nos transformemos. Tendes, pois, de trabalhar, trabalhar muito, até que sejais retratos perfeitos desse divino Modelo.

➖ Mas, santo Apóstolo, nossa carne é fraca, nosso coração é louco, nossa concupiscência é animal, nossas inclinações são perversas, as tentações são muitas, os demônios rodeiam-nos dia e noite, o mundo nos fascina...
➖ Trabalhai! É preciso imitar a Jesus Cristo. Essa é a única segura garantia de nossa eterna salvação. Se temos a sua graça, temos tudo.
➖ Mas isso será trabalho de muitos anos.
➖ Tendes razão; é trabalho de toda a vida. Mas para isso é que Deus nos pôs no mundo, para isso é a vida. Se não a entendeis assim, estais tristemente equivocados.

Trabalhai! Tendes diante de vós uma eternidade para descansar e gozar pelas nossas virtudes.
 
CASTO... SEM RELIGIÃO?!

Estava aquele médico na flor da idade. Era uma cabeça leviana e andava cheio de orgulho por sua ciência vã. Além disso, relegara a fé a um canto de sua inteligência e, segundo havia aprendido de seus mestres sem religião, afirmava que para viver bem e ser feliz bastava a luz da razão.

Por aqueles dias um famoso pregador, um homem de eloquência singular, alvoroçara toda a cidade. O vaidoso doutor afirmava à boca-cheia, no círculo de suas amizades, que iria entrevistar o famoso orador e que o havia de encurralar com a força de sua discussão. E lá se foi, com efeito, seguido de alguns amigos zombeteiros e curiosos. Achando-se frente à frente com o missionário, o doutor disse entre outras coisas:
➖ Padre, eu não pratico a religião; sou, porém, homem honrado e posso garantir-lhe que sou casto. Sorriu com desconfiança o ilustre pregador e observou:
➖ Casto?... Casto sem religião?!
➖ Sim , casto - insistia o doutor.
➖ E vai a toda espécie de cinema?
➖ Naturalmente.
➖ E lê toda espécie de livros?
➖ Tudo o que cai sob os meus olhos.
➖ Desvia o olhar quando se encontra com alguma beleza provocadora?
➖ Ó, pelo contrário.
➖ E diz que não reza?
➖ Nada.
➖ E diz que é casto?
➖ Digo.

➖ Pois bem - replicou aquele homem apostólico, aquele profundo conhecedor do coração humano - acredito que o senhor seja casto, mas casto como os cachorros. E nada mais disse. E havia dito tudo. O doutor mordeu a língua; os amigos sorriam maliciosamente e o missionário interrompeu bruscamente o diálogo. Todos estavam de acordo: sem a prática da oração não podiam ser castos. E constitui refinada loucura afirmar o contrário.

(Excertos da obra 'Tesouro de Exemplos', do Pe. Francisco Alves, 1958; com adaptações)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

VERSUS: SEREI O VOSSO DEUS OU O VOSSO FLAGELO

'Se seguirdes minhas leis e guardardes os meus preceitos e os praticardes, eu vos darei a chuva nos seus tempos. 

A terra dará o seu produto e as árvores da terra se carregarão de frutos. 

A debulha do trigo se estenderá até a colheita da uva, e a colheita da uva até a sementei­ra; comereis o vosso pão à saciedade, e ha­bitareis em segurança na vossa terra. 

Darei paz à vossa terra e vosso sono não será perturbado. Afastarei da terra os ani­mais nocivos, e a espada não passará pela vossa terra. 

Quando perseguirdes os vossos inimigos, cairão sob vossa espada. 

Cinco dentre vós perseguirão um cento, e cem dos vossos perseguirão dez mil, e os vossos inimigos cairão sob vossa espada. 

Eu me voltarei para vós, e vos farei crescer; eu vos multiplicarei e ratificarei a minha aliança convosco. 

Comereis as colheitas antigas, bem conservadas, e lançareis fora as velhas, para dar lugar às novas. 

Porei o meu taber­ná­culo no meio de vós, e a minha alma não vos rejeita­rá.

Andarei entre vós: serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo'. 

(Lv 26, 3-12)


'Mas se não me escutardes e não guardardes os meus mandamentos, 

se desprezardes os meus preceitos e vossa alma aborrecer as minhas leis, de sorte que não pratiqueis todos os meus mandamentos e violeis minha aliança, eis como vos hei de tratar: 

enviarei terríveis flagelos sobre vós: a tísica e a febre que enfraquecerão vossa vista e vos farão desfalecer. Debalde semeareis a vossa semente, porque vossos inimigos a comerão. 

Voltarei minha face contra vós e sereis vencidos pelos vossos inimigos: eles vos dominarão, e fugireis sem que ninguém vos persiga. 

Se nem ainda assim me ouvirdes, castigarei sete vezes mais pelos vossos pecados. 

Quebrarei o orgulho de vosso poder, tornarei o vosso céu como ferro e a vossa terra como bronze. 

Inutilmente se gastará a vossa força, pois vossa terra não dará os seus produtos, e as árvores da terra não produzirão os seus frutos. 

Se me puserdes obstáculos e não quiserdes ouvir-me, vos ferirei sete vezes mais, conforme os vossos pecados. 

Mandarei contra vós as feras do campo, que devorarão vossos filhos, matarão vossos animais e vos reduzirão a um pequeno número, de modo que os vossos caminhos se tornarão desertos. 

Se apesar desses castigos não vos quiserdes corrigir, e vos obstinardes em resistir-me, eu vos resistirei por minha vez e vos ferirei sete vezes mais, por causa dos vossos pecados. 

Farei cair sobre vós a espada para vingar a minha aliança. Se vos ajuntardes em vossas cidades, lançarei a peste no meio de vós e sereis entregues nas mãos de vossos inimigos'. 

(Lv 26, 14 - 25)

domingo, 20 de fevereiro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'O Senhor é bondoso e compassivo' (Sl 102)

 20/02/2022 - Sétimo Domingo do Tempo Comum

13. 'AMAI OS VOSSOS INIMIGOS'

Nas santas palavras do Evangelho deste domingo, Jesus enuncia aos homens daquele tempo as máximas da caridade divina, não uma, mas duas vezes: 'amai os vossos inimigos' (Lc 6,27 e Lc 6,35). Sim, amai os vossos inimigos uma primeira vez: desejando-lhes todo bem; e amai os vossos inimigos uma segunda vez: fazendo todo bem a eles. Eis a chave de ouro para aqueles que se pretendem 'filhos do Altíssimo' (Lc 6, 35).

Para cumprir estes mandamentos da caridade, Jesus nos apresenta imediatamente três opções concretas: 'fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam e rezai por aqueles que vos caluniam' (Lc 6, 27-28). Se Deus não nos pede o impossível, também não nos pede o que é fácil: amar nossos inimigos implica um dom extremado da graça e, para alcançá-lo, Jesus nos propõe violentarmos a tibieza da alma e apagar o fogo do egoísmo e do orgulho incandescentes com as águas abundantes da mansidão e da misericórdia: 'Sede misericordiosos, como também o vosso Pai é misericordioso' (Lc 6, 36).

No Coração de Deus impera o amor por todos os homens. Pelos justos e pelos injustos, pelos bons e também pelos ingratos e maus. A caridade nasce do amor sem medidas e se detém diante da medida imposta: 'com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos' (Lc 6,38). Ao impor tais limites ao nosso amor humano, amando apenas aqueles que nos amam ou fazendo o bem somente àqueles que nos interessam, nos tornamos reféns de igual julgamento e abortamos as graças da prática de uma verdadeira caridade cristã. Deus não nos impõe regras impossíveis ou obstáculos intransponíveis para alcançarmos as eternas recompensas, mas os frutos da graça não se encontram nas Vinhas do Senhor simplesmente espalhados pelo chão.

Mas como amar aqueles que nos desejam o mal? Como entregar a túnica ao que nos arranca o manto? Como oferecer a outra face à bofetada indigna? Amparados pelas reservas humanas, nada disso seria pertinente ou verossímil e, quase sempre, seria a intempestiva resposta dos instintos. Para torná-las possíveis e, sábias mais que possíveis, o instinto deve ser submerso pelo perdão: 'perdoai e sereis perdoados' (Lc 6, 37). Pelo perdão que Jesus extrapola aos limites mais insondáveis da misericórdia infinita de Deus; com o perdão verdadeiro, nascido e pautado como reflexo da misericórdia que não impõe contenção de medidas e marco limite algum.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

CARTAS A MEU PAI (X)

Pai:

Eis-me de volta aqui, depois de tanto tempo. Fiz das minhas andanças memórias de apostolado e, se tardei nessa parada amena, não foi por falta dos muitos passos encaminhados. Tenho ido a tantos lugares, tenho visto tantas coisas... Meu coração experimenta, no caos e reverberação do mundo, a Vossa santa presença em tantas coisas e pessoas! Almas que lhe são muito queridas e que produzem frutos cem por um. F. certamente é uma delas, e como me deleito em acompanhar a caminhada dela até os patamares maiores da graça! Vou recordar-Vos um fato singular dela que acabei de escrever em detalhes no Livro da Vida. 

Semana passada, o pobre homem estava deitado no chão, junto ao ponto de parada do ônibus do seu trajeto diário. Bêbado, quase inconsciente, balbuciando palavras sem sentido... A carteira jogada do lado do corpo, a camisa semi-aberta, os pés calçados apenas por meias... não é que lhe tinham roubado os tênis, presente recente de uma de suas filhas mais velhas? Ele havia gostado daqueles tênis confortáveis, nunca tivera nada igual para colocar nos pés. E agora, andava noite e dia calçado com eles e, quase sempre, orgulhoso de ter algo que pudesse ser realmente e incomensuravelmente seu. 

F. tivera um dia difícil para entregar todas as suas encomendas. Faltavam ainda umas três entregas para fazer e a tarde avançava rapidamente, como se o tempo tivesse mais asas do que deveria ter. Mas ao ver o homem estendido no chão sem sapatos, os cabelos brancos em desalinho e sob o olhar indiferente da meia dúzia de pessoas que estavam na parada e viviam no mundo apenas para esperar o próximo ônibus, parou o mundo porque precisava descer. 

Como a samaritana dos dias atuais, fez o homem assentar encostado à mureta de concreto do ponto de ônibus, numa posição razoavelmente cômoda. Recolheu a carteira - com um único documento de identificação e nenhum dinheiro. Certamente quem lhe roubou os tênis havia surrupiado também o dinheiro da carteira. F. invocou o anjo da guarda, interpelou os presentes, chamou um vizinho e tanto fez que conseguiu o telefone da filha mais velha do senhor caído na rua. E ligou para ela e descreveu a situação e identificou o local e ficou à espera.

E dois ônibus passaram e pessoas foram embora vivendo de ônibus que passam de meia em meia hora. A filha mais velha chegou num carro de um conhecido, lamentou a situação do pai e os tênis roubados e a história acaba aqui, com um final que se pode dizer feliz para alguns. F. arrumou então as suas coisas, que viraram entregas para amanhã. Um dia ela saberá quantas graças e bênçãos Vossas Mãos Divinas derramaram sobre ela naquele dia... e talvez entenda como o tempo dos homens e mulheres deste mundo que têm os olhos voltados para o Céu não se medem em horas.

Feliz é o homem que tem o Senhor como única esperança! Com a vossa bênção, R.

('Cartas a Meu Pai' são textos de minha autoria e pretendem ser uma coletânea de crônicas que retratam a realidade cotidiana da vida humana entranhada com valores espirituais que, desapercebidos pelas pessoas comuns, são de inteira percepção pelo personagem R. As pessoas e os lugares, livremente designados apenas pelas suas iniciais, são absolutamente fictícios).

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

A VIDA OCULTA EM DEUS: O SONO DA ALMA EM DEUS


A vida de intimidade entre Deus e a alma tem então início. Estão sempre juntos, nunca se distanciam. Quem vê um, vê o outro. Diríamos que são apenas um mesmo, ainda que sejam completamente distintos. Há momentos em que essa intimidade torna-se ainda maior. São as horas em que a atividade exterior cessa, e a alma interior se recolhe a sós com Deus, e descansa serenamente ao seu lado. Segue-se um grande silêncio, de um recolhimento profundo, do diálogo em voz baixa, interrompido por longas pausas, em que se ouve apenas o bater do coração. Momentos de quietude, de verdadeiro e tranquilo descanso da vontade em Deus.

Quando a alma interior está unida a Deus, na parte mais íntima de si mesma, ela adormece completamente. Seu grau de união é a medida de um sono misterioso. Cria-se um grande vazio interior, seguido por uma grande serenidade e, por fim, um silêncio completo. A alma dorme profundamente: não ouve mais nada, não vê nada, não pensa em nada concretamente. No entanto, está viva e ama! Diríamos que ele direcionou todas as forças às suas faculdades. Faz tudo descansar para assim, melhor amar.

Concentra todas as suas forças em seu coração. Amar, apenas amar, e amar cada vez mais é o seu único anelo e sua única ocupação. Aparentemente está morta, mas vive mais intensamente do que nunca... Do habitual costume de viver mais ou menos distraída de Deus por causa das coisas., agora se impõe distraída em Deus. Deus a ocupa inteiramente. Ele tomou posse inteiramente da sua alma e, às vezes, também no  corpo. Assim, a alma pode dizer - e também aqueles que percebem o seu estado - que a alma não está mais ali'. O que é realmente verdade, pois 'a alma vive mais onde ama do que no corpo que a anima'. Agora ama. Agora ama a Deus por inteiro. Agora está Nele inteiramente.

Em suma, a alma assim adormecida é verdadeiramente feliz. Participa da mesma bem-aventurança de Deus. Essa felicidade a envolve completamente e toma posse dela sem ela se dar conta como. Nenhum esforço é exigido da alma; ela não tem mais anelo de nada e lhe basta deleitar-se nessa paz. E é exatamente isso que faz. Nada pode dar expressar esse sentimento que é essencialmente divino. Não se assemelha a nenhum dos prazeres deste mundo, pois é de ordem muito diferente. Possui uma essência diferente, provém de outra fonte. Não se tem nenhum termo de comparação.

Ao se falar sobre isso, é tudo muito obscuro, porque as palavras da linguagem humana não sabem como traduzir o que se passa. O que se pode dizer realmente é que isso está acima de todos os bens e encontra-se a uma distância imensurável de todos eles. A alma que se deleita da intimidade com Deus desfruta de uma paz tão verdadeira que tem o direito de ficar adormecida para o mundo pelo tempo que quiser.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte III - A União com Deus; tradução do autor do blog)

Que dia triste, meu Deus, que dia triste! Minha mãe nos deixou... que tristeza chorar a morte de quem se ama tanto! Que alegria saber que a misericórdia divina é o nosso porto final. Que Deus a tenha, minha querida mãe, que Deus a tenha como obra acabada do divino amor por toda a eternidade...

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

CINCO PASSOS PARA UMA CONFISSÃO PERFEITA


Exame de Consciência: piedade, piedade, piedade

✔ quando foi a minha última confissão?
✔ quais são os meus pecados, cometidos por palavras, ações, pensamentos, livre imaginação?
✔ quais são os meus pecados especialmente mais graves?
✔ quais são os meus pecados veniais, que se repetem mesmo após as minhas confissões?
✔ quais são os meus pecados contra a minha família?
✔ quais são os meus pecados contra a caridade?
✔ quais são os meus pecados por omissão?

👉Utilizar listagens conhecidas e detalhadas de exames de consciência específicos e buscar enquadrar as faltas cometidas no escopo dos Dez Mandamentos da Lei de Deus.

Dor Espiritual: pesar, pesar, pesar

✔ pesar pelas faltas cometidas
✔ pesar por ofender a Deus
✔ pesar por ofender o sacrifício da redenção de Cristo
✔ pesar por abusar das graças recebidas
✔ pesar pelo afastamento da Sagrada Eucaristia
✔ temor de Deus
✔ temor do inferno

👉 Rezar o Ato de Contrição e manifestar, com a dor espiritual, um ato de contrição perfeita.

Confissão Sincera: humilhação, humilhação, humilhação

✔ confessar todos os pecados cometidos 
✔ confessar as circunstâncias e agravantes dos pecados cometidos 
✔ confessar o inteiro domínio dos pecados cometidos
✔ não minimizar a dimensão dos pecados cometidos
✔ não atenuar as circunstâncias e condicionantes dos pecados cometidos
✔ não esconder por pudor ou vergonha os pecados cometidos
✔ não 'esquecer' pecados que não estão esquecidos

👉 A confissão é um ato de humilhação da criatura suplicando o perdão e a infinita misericórdia do Pai e essa só se manifesta em plenitude diante da verdade e do coração aberto da alma sob contrição perfeita. 

Propósito de Emenda: perseverança, perseverança, perseverança 

✔ firme resolução de não tornar a pecar (particularmente pecados mortais) 
✔ firme resolução de arrependimento sincero ao pecar novamente 
✔ firme resolução de santificação pessoal
✔ firme resolução de ser um católico melhor a cada dia
✔ firme resolução de ser homem de oração
✔ firme resolução de ser exemplo 
✔ firme resolução de praticar, cada vez mais, a caridade.

👉 Tome o firme propósito de dizer NÃO a tudo que nos afasta de Deus e da caridade para com o próximo.

Penitência Final: reparação, reparação, reparação

✔ reparar as ofensas cometidas contra Deus
✔ satisfazer a culpa dos pecados cometidos
✔ satisfazer a culpa de dano dos pecados cometidos
✔ cumprir integralmente a penitência manifestada pelo confessor  
✔ cumprir a penitência no menor prazo possível 
✔ cumprir a penitência com contrição e sincero arrependimento 
✔ cumprir a restituição devida quando for o caso

👉 Fazer, durante a penitência final, o firme propósito de melhorar como criatura de Deus, como católico, empenhado cada vez mais no projeto de sua santificação pessoal.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

O DOGMA DO PURGATÓRIO (XXV)

Capítulo XXV

Duração do Purgatório - A Abadia de Latrobe - Cem Anos de Sofrimento por Retardar a Recepção dos Últimos Sacramentos

O seguinte incidente é relatado com autenticação de prova pelo jornal The Monde, no número de abril de 1860. Ocorreu na América, na Abadia dos Beneditinos, situada na aldeia de Latrobe. Uma série de aparições ocorreu durante o ano de 1859. A imprensa americana abordou o assunto e tratou essas graves questões com a sua habitual leviandade. Para acabar com o escândalo, o abade Wirnmer, superior da casa, dirigiu aos jornais a seguinte carta.

'O seguinte documento é uma verdadeira declaração do caso: Em nossa abadia de São Vicente, perto de Latrobe, em 10 de setembro de 1859, um noviço viu a aparição de um beneditino composto com traje completo de coro. Esta aparição se repetiu todos os dias, entre 18 de setembro e 19 de novembro, às onze horas, ao meio-dia ou às duas horas da manhã. Somente no dia 19 de novembro, o noviço interrogou o espírito, na presença de outro membro da comunidade, e perguntou o motivo dessas aparições. Ele respondeu que já havia padecido por setenta e sete anos no Purgatório por ter deixado de celebrar sete missas de obrigação; que ele já havia aparecido em ocasiões diferentes a outros sete beneditinos, mas que estes não lhe deram ouvidos, e que seria obrigado a efetuar outra aparição novamente, após onze anos, se o noviço não viesse em seu auxílio.

Finalmente, o espírito pediu que estas sete missas fossem celebradas na sua intenção; além disso, o noviço deveria permanecer em retiro por sete dias, manter silêncio absoluto e, durante trinta dias, recitar três vezes ao dia o salmo Miserere, com os pés descalços e os braços estendidos em forma de cruz. Todas estas condições foram cumpridas entre 20 de novembro e 25 de dezembro, e nesse dia, após a celebração da última missa, a aparição desapareceu.

Durante esse período o espírito manifestou-se várias vezes, exortando o noviço da maneira mais urgente a rezar pelas almas do Purgatório; pois - disse ele - elas sofrem terrivelmente e são extremamente gratos àqueles que cooperam com a sua libertação. Ele acrescentou - e isso é triste relatar - que, dos cinco sacerdotes que morreram em nossa abadia, nenhum ainda havia entrado no céu, e todos sofriam ainda no Purgatório. Eu não tiro nenhuma conclusão, mas esses são os fatos'. 

Esta conta, assinada pela mão do Abade Superior, é um documento histórico incontestável. Quanto à conclusão que o venerável prelado nos deixa tirar, é evidente. Vendo que um religioso está condenado ao Purgatório por setenta e sete anos, basta-nos aprender a necessidade de refletir sobre a duração do castigo futuro, tanto para sacerdotes e religiosos como para os fiéis comuns que vivem em meio à corrupção do mundo.

Uma causa muito frequente desta longa permanência do Purgatório é que muitos se privam de um grande meio estabelecido por Jesus Cristo para encurtá-lo, retardando, quando gravemente doentes, para receber os últimos sacramentos. Estes sacramentos, destinados a preparar as almas para a sua última viagem, a purificá-las dos restos do pecado e a poupá-las das penas da outra vida, exigem, para produzirem os seus efeitos, que o doente os receba com as devidas disposições. Ora, quanto mais são adiadas e as faculdades do doente se enfraquecem, mais defeituosas tornam-se essas disposições. O que eu disse? Muitas vezes acontece, em consequência desse atraso imprudente, é que o doente morra privado dessa ajuda absolutamente necessária. O resultado é que o falecido, desde que não condenado, é lançado nos abismos mais profundos do Purgatório e sobrecarregado com todo o peso de suas dívidas.

Miguel Alix nos fala de um eclesiástico que, em vez de receber prontamente a extrema unção e, com isso, dar um bom exemplo aos fiéis, foi culpado de negligência a esse respeito e foi punido com cem anos de Purgatório. Sabendo que estava gravemente doente e em perigo de morte, este pobre padre deveria ter dado a conhecer o seu estado e recorrer imediatamente aos socorros que a Mãe Igreja reserva aos seus filhos naquela hora suprema. Ele omitiu fazê-lo; ou por uma ilusão comum entre os doentes, ele não quis declarar a gravidade de sua situação ou porque estava sob a influência daquele preconceito fatal que faz com que os cristãos fracos adiem a recepção dos últimos sacramentos, ele não pediu nem pensou em recebê-los. 

Mas sabemos como a morte vem às escondidas; o infeliz adiou tanto que morreu sem ter tido tempo de receber o Viático ou a Extrema Unção. Agora, Deus se agradou de fazer uso desta circunstância para dar um grande aviso aos outros. O próprio falecido veio dar a conhecer a um irmão eclesiástico que estava condenado ao Purgatório por cem anos. 'Estou sendo assim punido' - disse ele - 'por ter demorado em receber a graça da última purificação. Se eu tivesse recebido os sacramentos como deveria ter feito, teria escapado da morte pela virtude da extrema unção e teria tido tempo para fazer penitência'. 

Tradução da obra: 'Le Dogme du Purgatoire illustré par des Faits et des Révélations Particulières', do teólogo francês François-Xavier Schouppe, sj (1823-1904), 342 p., tradução pelo autor do blog)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A MORTE DE DOM BOSCO

Dom Bosco no seu leito de morte (Turim, 31 de janeiro de 1888)

'Dom Bosco jazia agonizante, estirado imóvel em sua pequena cama de ferro, com os seus filhos fiéis ajoelhados ao seu redor. Era 31 de janeiro do ano de 1888.

Por volta das quinze para as duas da manhã, a agonia começou. O padre [Michele] Rua e o bispo [Giovanni] Cagliero recitaram as orações rituais. O estertor da morte durou até quinze para as cinco. Então, quando o Angelus ressoou dos sinos da nossa igreja [Maria Auxiliadora], a respiração áspera de Dom Bosco se acalmou. Meio minuto depois ele estava morto, ido para o paraíso!' 

Com estas palavras simples e tocantes, o secretário Carlo Maria Viglietti, cronista-chefe dos últimos anos de Dom Bosco, encerra a crônica da última doença e morte santa do mestre.

A última doença de Dom Bosco não foi realmente uma doença nova, mas uma recorrência, com sintomas agravados e várias complicações graves, da mesma condição cardio-pulmonar crônica. Assim, quando voltou de sua cavalgada na noite de 20 de dezembro de 1887, e foi para a cama para nunca mais deixá-la, Dom Bosco entrou no último e fatal episódio da doença que o atormentava desde 1846, talvez rastreável até aos seus dias de estudante.

A grave doença de 1846 deveu-se a uma condição brônquica-pulmonar. A bronquite degenerou em pneumonia brônquica. Assim, quando Dom Bosco ainda não tinha 35 anos, já havia desenvolvido uma condição do aparelho respiratório que piorava progressivamente e era causa de repetidas recaídas, entre as quais as doenças de 1871 e a de 1884 foram as mais graves.

Sintomas semelhantes acompanharam a doença final de 1887-88. A essa altura, a oxigenação do sangue na rede alveolar dos pulmões estava tão reduzida que as funções de outros órgãos vitais também foram seriamente afetadas. Esta era a condição de Dom Bosco quando foi colocado na cama em 20 de dezembro de 1887... agora era apenas questão de tempo.

Dom Bosco adormeceu no Senhor às 4h45min da manhã de terça-feira, 31 de janeiro de 1888. Morreu como tinha vivido, em união com Cristo crucificado, invocando a intercessão de Maria, em oração de entrega total a Deus.

A paciente resistência de Dom Bosco à dor excruciante é uma das características mais marcantes da história de seus últimos anos, e mais especialmente de seus últimos dias. 'Faça-se a santa vontade de Deus a meu respeito' foi uma das orações de Dom Bosco mais repetidas. E não apenas este grande e santo homem suportou sua dor; ele fez pouco disso. Ele encontrou forças dentro de si mesmo para disfarçar a sua dor com inteligência e brincadeiras alegres e testemunhou a dissolução do seu corpo com humor e graça.

(Excertos da obra 'Don Bosco: History and Spirit', de Arthur Lenti, 2010)

domingo, 13 de fevereiro de 2022

EVANGELHO DO DOMINGO

 

'É feliz quem a Deus se confia!' (Sl 1)

 13/02/2022 - Sexto Domingo do Tempo Comum

12. O SERMÃO DA MONTANHA

O chamado 'Sermão da Montanha', conjunto de proposições expostas por Jesus naquele tempo a uma 'grande multidão de gente de toda a Judeia e de Jerusalém, do litoral de Tiro e Sidônia' (Lc 6, 17) contempla, de forma admirável, a síntese do Evangelho e da doutrina cristã como legado do Reino dos Céus aos homens de todos os tempos.

O primado desta herança aos homens de todos os tempos se impôs quando o Senhor, diante da enorme multidão, volveu o seu olhar divino aos Apóstolos, antes de proferir as bem-aventuranças que expressam os preceitos e as virtudes que nos santificam e nos tornam herdeiros do Reino dos Céus. Na prática do amor e na busca da perfeição cristã, eis o legado de nossa santificação: 'Bendito o homem que confia no Senhor, cuja esperança é o Senhor' (Jr 17, 7).

Essa via de santidade é expressa pelo Senhor sempre em termos da sua concepção oposta: 'Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus!' (Lc 6, 20) versus 'Mas ai de vós, os ricos, porque tendes já a vossa consolação' (Lc 6, 24). 'Bem-aventurados os que agora tendes fome, porque sereis saciados (Lc 6, 21) versus 'Ai de vós os que estais saciados, porque vireis a ter fome' (Lc 6, 25). 'Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque havereis de rir!' (Lc 6, 21) versus 'Ai de vós, que agora rides, porque tereis luto e lágrimas!' (Lc 6, 25). 'Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos expulsarem, vos insultarem e amaldiçoarem o vosso nome, por causa do Filho do Homem!' (Lc 6, 22) versus 'Ai de vós quando todos vos elogiam!' (Lc 6, 26).

Com efeito, os caminhos da vida eterna não se conformam aos atalhos do mundo. Como Filhos de Deus, somos, desde agora, peregrinos do Céu mergulhados nas penumbras da fé e nas vertigens das realidades humanas, na certeza confiante do eterno reencontro: 'Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus' (Lc 6, 23).

sábado, 12 de fevereiro de 2022

OS GRANDES DOCUMENTOS DA IGREJA (IV)

 Carta Encíclica HAERENT ANIMO [04 de agosto de 1908]


Papa Pio X (1903 - 1914)

exortação ao clero católico


Preâmbulo 

1. Trazemos profundamente gravadas em nossa almas as palavras tremendas do apóstolo dos gentios ao se dirigir aos hebreus (13, 17), lembrando-lhes o dever da obediência aos superiores, e dizendo-lhes com todo o peso de sua autoridade: Ipsi enim pervigilant quasi rationem pro animabus vestris reddituri. Este aviso, não há dúvida, dirige-se a quantos tenham na Igreja autoridade mas, de modo particular, a nós, que, não obstante a nossa insuficiência, fomos chamados por Deus para ocupar o primeiro lugar na hierarquia eclesiástica. Eis porque, noite e dia preocupado com a nossa responsabilidade, temos sempre nosso pensamento e esforços voltados para tudo o que possa garantir, salvaguardar e favorecer o progresso do rebanho do Senhor. Uma coisa sobremaneira nos preocupa: ter, nas Ordens Sagradas, homens que estejam perfeitamente à altura desta missão. Pois estamos convencidos de que isso, sobretudo, nos dá motivos para as melhores e mais confiantes esperanças para o bem da Religião. Eis por que, desde nossa elevação ao Soberano Pontificado, embora bem patentes nos fossem os grandes méritos do clero considerado em geral, julgamos nosso dever exortar instantemente aos nossos veneráveis Irmãos, os Bispos do Orbe Católico, para que empreguem todos os seus cuidados e máxima solicitude em formar o Cristo naqueles que têm por missão formar também o Cristo nos outros. Bem conhecemos a solicitude com que muitos Antístites têm desempenhado essa missão. Sabemos com que vigilância e zelo procuram assiduamente formar o clero na virtude. E queremos não só louvá-los, como também publicamente agradecer-lhes. 

2. Felicitamo-nos, é certo, vendo que numerosos padres, inflamados, pelo zelo de seus bispos, de um santo ardor, fazem em si reviver ou crescer a graça de Deus que receberam no dia da ordenação sacerdotal. Todavia, temos ainda a lamentar que alguns outros, em países diversos, não procedam como deviam, de modo a oferecer ao povo cristão, que os contempla como num espelho, o modelo de vida a praticar e um exemplo a seguir. A estes, sobretudo, queremos, por esta carta, abrir nosso coração, que como um coração de pai, à vista do filho doente, palpita de um amor angustiado. E inspirado por este amor, juntamos as nossas exortações às dos bispos. E se elas têm por fim principal trazer a melhores sentimentos os transviados e os tíbios, desejamos todavia que sejam um incentivo também para os outros. Mostramos o caminho que deve cada um esforçar-se por seguir com ardor sempre maior, para que seja, em verdade, segundo a bela expressão do Apóstolo, um homo Dei (1 Tm 6, 11) e corresponda às legítimas esperanças da Igreja. 

3. Nada diremos que vos não seja conhecido ou que seja novidade para alguém. Diremos o que é preciso lembrar a todos. E Deus nos dá esperança de que a nossa palavra não deixará de produzir frutos abundantes. E vos rogamos então insistentemente: Renovamini spiritu menus vestrae, et indulte novum hominem qui secundum Deum creatus est in justitia, et sanctitate veritatis (Ef 4, 23-24). A realização deste voto é o mais belo e o mais agradável presente que possais nos oferecer neste quinquagésimo aniversário de nosso sacerdócio. Quanto a nós, quando recordamos sob o olhar de Deus, in animo contato et spiritu humilitatis (Dn 3, 39), os anos já passados de nosso sacerdócio, parece-nos que a dor de aí encontrar o que é muito humano o expiaremos, de certo modo, fazendo por nossas advertências e conselhos, ut ambuletis digne Deo per omnia placentes (Cl 1, 10). Com esta exortação não defendemos tão só vossos interesses. Defendemos também os interesses comuns das nações católicas, porque estes não se separam daquelas. Com efeito. É tal a condição do padre que não pode ser ele bom ou mau só para si. Ao invés, o seu procedimento e maneira de viver são para o povo de importância capital. Que grande dom e precioso é um padre verdadeiramente bom!

I. SANTIDADE DO PADRE 

Necessidade da Santidade Sacerdotal

4. Começamos, pois, a nossa exortação, filhos caríssimos, por vos excitar à santidade de vida que requer a vossa dignidade. Efetivamente, quem exerce o sacerdócio, não para si o exerce, mas para os outros também: Omnis namque Pontifex ex hominibus assumptus pro hominibus constituitur in iis quae sunt ad Deum (Hb 5, 1). O próprio Jesus Cristo manifestou o mesmo pensamento quando, para dar a entender em que consiste a ação sacerdotal, comparava os padres ao sal e à luz. O padre é, portanto, a luz do mundo e o sal da terra. Ninguém, sem dúvida, ignora que o padre desempenha a sua missão sobretudo quando prega a verdade cristã. Porém, este mistério não se torna quase inútil, quando ele não apoia com o exemplo o que ensina de viva voz? Os que o escutam poderão dizer injuriosamente, é verdade, mas não de todo sem razão: Confitentur se nosse Deum, factis autem negant (Tt 1, 16). E depois acabariam recusando os ensinamentos do padre, cujas luzes seriam para eles de nenhum proveito. Eis porque o próprio Cristo, feito modelo dos padres, ensinou primeiro com o exemplo e depois com a palavra: Coepit Jesus facere et docere (At 1, 1). 

5. O padre, que não faz caso da santidade de vida, também não poderá ser, de maneira alguma, o sal da terra. É impossível que o que está corrompido e contaminado seja fator de conservação. Onde falta a santidade, inevitavelmente se introduz a corrupção. Eis por que, insistindo na comparação, Cristo chama a tais padres sal infatuatum, quod ad nihilum valet ultra nisi ut mittatur foras, e desde então: Conculcetur ab hominibus (Mt 5, 13). 

6. Tanto mais patentes e mais certas são estas verdades, quando desempenhamos as funções sacerdotais, não em nosso nome, mas em nome de Jesus Cristo. Diz o Apóstolo: Sic nos existimet homo ut ministros Christi, et dispensatores mysteriorum Dei (1 Cor 4, 1), pro Christo ergo legatione fungimur (2 Cor 5, 20). E é por isto, justamente, que o próprio Cristo nos coloca entre os seus amigos e não entre os seus servos: Jam non dicam vos servos... Vos autem dixi amicos, quia omnia quaecumque audivi a Patre meo, nota feci vobis... Elegi vos et posui vos ut eatis et fructum afferatis (Jo 15, 15-16). Havemos, portanto, de desempenhar o papel de Cristo. A missão que nos deu, temos de cumpri-la, levando em conta o fim que Ele nos propôs. E como é próprio de uma verdadeira amizade estarem de acordo os amigos no querer ou não querer uma coisa, estamos obrigados, como amigos, a pôr de acordo o nosso modo de sentir com o de Jesus Cristo, que é sanctus, innocens, impollutus (Hb 7, 26). Já que por ele fomos enviados, devemos conquistar o espírito dos homens à sua doutrina e à sua lei. E é claro que devemos começar por nós mesmos, observando-as primeiro. Já que participamos do poder de Cristo para livrar as almas dos laços do pecado, tudo devemos fazer para nos preservarmos do pecado. Porém, acima de tudo como ministros do sacrifício por excelência, perpetuamente renovado pela salvação do mundo, devemos pôr-nos no estado de espírito com que o próprio Cristo, Hóstia Imaculada, se ofereceu a Deus no altar da cruz. Porque, se outrora, quando tudo eram apenas aparências e figuras, se exigia tão grande santidade dos padres, qual não será hoje nossa obrigação quando a vítima é Cristo! Poderá ser puro demais quem oferece um tal sacrifício? Não seria preciso que fosse mais imaculada que o raio de sol a mão que divide esta carne, a boca que se enche deste fogo espiritual, a língua que se enrubesce de um sangue tão tremendo? (S. Joan. Chrisost., Hom. LXXXII in Mt, n. 5). 

7. Com muita razão, São Carlos Borromeu insistia muito neste ponto nas alocuções ao seu clero: 'Se nos lembrássemos, caríssimos irmãos, de tudo quanto Deus Nosso Senhor depositou de grande e de santo em nossas mãos, que força não teria este pensamento para nos levar a uma vida bem digna e verdadeiramente eclesiástica! Haverá alguma coisa que não tenha o Senhor depositado em nossas mãos depois que nelas depositou seu Filho único, coeterno, igual a Ele? Pôs em minhas mãos todos os tesouros, os seus sacramentos e suas graças. Colocou as almas, o que Ele tem de mais caro, as almas que no seu Amor as preferiu à sua própria vida e as remiu com o seu sangue. Pôs na minha mão o céu com o poder de abri-lo ou de fechá-lo aos outros. Poderia eu ser tão ingrato e, depois de tantos favores e de tanto amor, pecar contra Ele? Hei de lhe faltar com o respeito? Manchar um corpo que é dele? Desonrar esta dignidade, esta vida consagrada ao seu serviço?'

8. Esta santidade de vida, sobre a qual ainda é bom insistir, é objeto de grandes e incessantes preocupações da parte da Igreja. Uma ideia presidiu à instituição dos seminários: os que aí se educam, para ingressarem nas fileiras do clero, não há dúvida, hão de ser instruídos nas letras e nas ciências, mas é mister que sejam ao mesmo tempo bem formados, desde os mais tenros anos, em tudo quanto diz respeito à piedade. E a Igreja, com solicitude maternal, aproveita depois a ocasião em que faz os candidatos subir degrau por degrau, e em largos intervalos, para então prodigalizar em cada etapa as exortações à santidade. É tão doce recordá-las! Desde que nos alistamos na milícia sagrada, quis ela que tomássemos este compromisso formal: Dominus pars hereditatis meae et calicis mei, tu es qui restitues hereditatem meam mihi (Sl 15, 5). Por estas palavras, diz São Jerônimo, o clérigo é adversário de que todo aquele que é a parte do Senhor ou de quem o Senhor é a herança, deve ser tal que possua o Senhor e seja possuído por Ele (Ep. III, ad Nepotianum, n. 5). 

9. No momento em que nos eleva ao subdiaconato, que linguagem tão grave é a que nos dirige! Iterum atque iterum considerare debetis attente quod onus hodie ultro appetitis... quod si hunc ordinem susceperitis, amplius non licebit a proposito resilire, sed Deo... perpetuo famulari et castitatem, illo adjuvante, servare oportebit. E para terminar: Si usque nunc fuistis tardi ad Ecclesiam, amodo debetis esse assidui; si usque nunc somnolenti, amodo vigiles... Si usque nunc inhonesti, amodo casti... videte cujus ministerium vobis traditur! Depois, na ocasião em que recebemos o diaconato, a Igreja eleva a Deus por nós esta oração pela boca do bispo: Abundet in eis totius forma virtutis, auctoritas modesta, pudor constans, innocentiae puritas, et spiritualis observantia disciplinae. In moribus eorum praecepta tua futgeant, ut suae castitatis exemplo imitationem sanctam plebs acquirat. O que, porém, mais nos comove ainda são as advertências que ela nos dirige no momento em que nos confere a ordenação sacerdotal: Cum magno timore ad tantum gradum ascendendum est, ac providendum ut caelestis sapientia, probi mores et diuturna justitiae observatio ad id electos commendet... Sit odor vitae vestrae delectamentum Ecclesiae Christi, ut praedicatione ac exemplo aedificetis domum, idest familiam DeiDe todas estas lembranças a mais premente está nesta gravíssima recomendação: Imitamini quod tractatis - a que corresponde o preceito de São Paulo - ut exhibeamus omnem hominem perfectum in Christo Jesu

10. Tal é o pensamento da Igreja sobre a vida do padre. E ninguém poderia se admirar da unanimidade dos santos Padres e Doutores todos, quando ensinam sobre este ponto uma doutrina que talvez alguns queiram tachar de exagerada. Entretanto, se a examinarmos seriamente, veremos que nada existe de mais verdadeiro nem de mais justo. Eis em resumo o seu pensamento: entre o padre e um homem honesto qualquer, deve haver tanta diferença como do céu para a terra. E o padre deve ter cuidado para que a sua virtude seja isenta de toda censura, não só em matéria grave, como também em matéria leve. O Concilio de Trento nada mais faz senão recordar o julgamento destas autoridades tão veneráveis, quando adverte os clérigos a que fujam até das mais leves faltas, levia etiam delida, quae in ipsis maxima essent (Sess. XXII, de reform. c. I). E se, com efeito, não são, em si, graves, há de se levar em conta a qualidade de quem as comete, pois a eles, bem mais do que aos edifícios de nossos templos, se aplica esta palavra: Domum tuam decet sanctitudo (Sl 92, 5). 

Exigências da Santidade Sacerdotal

11. Examinemos, pois, em que consiste esta santidade, cuja falta no padre seria a maior desgraça. A ignorância ou erro nesta matéria seria gravemente perigoso. Há os que pensam e até ensinam que o mérito do padre está em se dedicar inteiramente ao serviço do próximo. E, por isto, não dão importância às virtudes que contribuem para a santificação pessoal, que chamam por isto mesmo virtudes passivas. E julgam que devem consagrar todas as suas forças e todo zelo em cultivar e praticar as virtudes ativas. Esta doutrina é singularmente errônea e perniciosa. É dela que nosso predecessor de feliz memória escreveu com muita sabedoria: 'Pretender que as virtudes cristãs variem com as épocas é esquecer as palavras do Apóstolo: Quos praescivit et praedestinavit conformes fieri imaginis Filii sui (Rm 8, 29). O mestre e modelo de toda santidade é Cristo. E quem quiser entrar na mansão dos bem-aventurados, por ele se deve regular. Ora, Cristo não muda no decorrer dos séculos. É o mesmo ontem e hoje, heri et hodie; ipse et in saecula (Hb 13, 8). Aos homens de todas as idades dirige-se esta palavra: Discite a me quia mitis sum et humilis corde. Por nós e para todos os tempos Cristo se mostrou obediente até à morte: factus obediens usque ad mortem (Fp 2, 8). Vale para todos os tempos a sentença do Apóstolo: Qui sunt Christi, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis (Gl 5, 24)' [Epist. Testem benevolentiae, ao arcebispo de Baltimore, 22 de Janeiro de 1899]. 

12. Tais ensinamentos, não há dúvida, dirigem-se a todos os fiéis, mas imediatamente aos padres. A eles se aplica especialmente o que o nosso predecessor, no seu zelo apostólico, acrescentava: 'Prouvera a Deus, tivéssemos agora maior número de homens fiéis à prática das virtudes, à imitação dos santos dos séculos passados. E pela humanidade, obediência e abstinência, fossem todos poderosos em obras e em palavras para maior proveito da religião e da civilização'. Convém notar aqui que este pontífice tão prudente fez, e com direito, menção especial da renúncia, que, na linguagem evangélica, se chama abnegação de si mesmo. Porque, sobretudo nesta virtude, caríssimos, é que estão a força, o poder e a eficácia de todo ministério sacerdotal. E do negligenciá-la provém tudo o que no modo de proceder do padre costuma ofender os olhos e as almas dos fiéis. Com efeito, se há padres que não se envergonham de trabalhar com as vistas só no interesse e no lucro; que se metem em negócios seculares e procuram ser os primeiros sempre, desprezando os outros; que se apegam à carne e ao sangue e querem agradar aos homens e contam com as palavras persuasivas da sabedoria humana; é porque se esqueceram do preceito de Cristo e recusaram a condição por Ele imposta: si quis vult post me venire abneget semetipsum (Mt 16, 24). 

13. Embora já tivéssemos insistido muito nas exortações precedentes, ainda o fazemos para vos dizer que, afinal de contas, o padre não só por ele tem a obrigação de levar uma vida santa, mas porque é o operário que Cristo veio contratar para a sua vinha: exiit conducere in vineam suam (Mt 20, 1). A ele cabe arrancar a má erva, semear a que é útil e vigiar para que o homem inimigo não venha semear o joio e a má semente. Por isto deve o padre ter cuidado para que o zelo mal-entendido da sua perfeição interior não o leve a omitir os deveres do ministério em serviço do próximo. E assim sendo, como pastor por exemplo, deve pregar a palavra de Deus, ouvir confissões, assistir os enfermos, sobretudo os moribundos, dar instrução religiosa aos ignorantes, consolar os aflitos, reconduzir ao rebanho as ovelhas desgarradas, enfim, imitar em tudo a Cristo, qui pertransiit benefaciendo et sanando omnes oppressos a diabolo (At 10, 38). 

14. E isto fazendo, tenha sempre em mente a grave advertência de São Paulo: neque qui plantai est aliquid neque qui rigat; sed qui incrementam dat, Deus (1 Cor 3, 7). Pode acontecer que tenhamos de semear entre lágrimas. Que sejamos obrigados a dispender um trabalho enorme, para garantir o que semeamos. A germinação, entretanto, e a produção da colheita esperada só dependem de Deus e do auxílio onipotente. Outra consideração de grande importância: os homens não passam de instrumentos de que Deus se serve para a salvação das almas. É preciso, então, que sejam eles aptos para que Deus os possa manejar. E por que há de ser assim? Poderá alguém pensar que nossas qualidades naturais ou adquiridas fazem com que Deus seja levado a aproveitar o nosso concurso para a extensão da sua glória? Absolutamente! Quae stulta sunt mundi elegit Deus ut confundat sapientes: et infirma mundi elegit Deus ut confundat fortia: et ignobilia mundi, et contemptibilia elegit Deus, et ea quae non sunt, ut ea quae sunt destrueret (1 Cor 1, 27-28). 

15. Só uma coisa, na verdade, é capaz de realizar a união do homem com Deus; só uma coisa faz o homem agradável a Deus e o torna ministro menos indigno da sua misericórdia: a santidade de vida e de costumes. Se faltar ao padre esta santidade, que outra coisa não é senão a ciência supereminente de Jesus Cristo, falta-lhe tudo. Porque, sem a santidade, a própria ciência (e envidamos esforços para desenvolvê-la entre o clero), as habilidades e talentos, por mais úteis que possam ser à Igreja e aos indivíduos, quase sempre têm sido uma fonte de lamentáveis prejuízos. Ao contrário, suponhamos um homem profundamente santo. Fosse o último de todos. Quantas obras maravilhosas não pode empreender e realizar para a salvação do povo de Deus! Testemunhos não faltam e muitos neste ponto, e em todos os tempos. Prova brilhante a temos e não longe de nós, em João Batista Vianney, esse modelo de pastor de almas a quem tivemos a felicidade de conferir as honras da beatificação. Unicamente a santidade nos pode fazer tais como o exige a nossa vocação, isto é, homens crucificados para o mundo e para os quais o mundo está crucificado; homens, cujo modo de proceder se inspira numa vida nova, e que, segundo o conselho do Apóstolo, se mostram verdadeiros ministros de Deus in laboribus, in vigiliis, in jejuniis, in castitate, in scientia, in longanimitate, in suavitate, in Spiritu Sancto, in caritate non fida, in verbo veritatis (2 Cor 6, 5-), homens que só aspiram aos bens celestes e trabalham com todas as forças para conduzir os outros aos mesmos. 

II. MEIOS DE ADQUIRIR A SANTIDADE 

Oração

16. Ninguém o ignora, a santidade de vida é fruto de nossa vontade, enquanto a esta a graça divina ajuda e fortifica. Eis por que Deus providencia para que jamais nos falte o auxílio da graça, com a condição de a querermos. Este auxílio, antes de tudo, o asseguramos pela nossa aplicação à oração. Entre a oração e a santidade é tão necessária a dependência, que uma não pode existir, de maneira alguma, sem a outra. São João Crisóstomo diz e com uma verdade absoluta: 'a meu ver, é simplesmente impossível viver na virtude sem o auxílio da oração' (De Precatione, orat. I). Santo Agostinho com muita penetração conclui: 'A ciência da virtude é a ciência da oração: Vere novit recte vivere qui recte novit orare (Hom. IV ex 50). Estes ensinamentos, o próprio Cristo no-los inculcou firmemente por exortações frequentes e sobretudo pelo exemplo. Com efeito, para orar retirava-se no deserto ou subia as montanhas. Passava as noites todo absorvido na oração. Ia ao templo frequentemente. E ainda mesmo em presença das multidões que se acotovelavam em torno dele, orava publicamente com os olhos levantados para o céu. Finalmente, pregado na cruz e já nas dores da morte, dirigiu ainda, com soluços e lágrimas, súplicas ao Pai.

17. Estejamos absolutamente certos de que o padre que quiser ser fiel à dignidade do seu meio e da sua missão, deve ter em grande estima a oração e nela se aplicar! Muitas vezes, no entanto, é de lamentar-se que rezem mais por hábito que com fervor e recitem com tanto relaxamento o ofício nas horas de obrigação ou se contentem apenas com algumas breves orações, sem que mais pensem em consagrar a Deus outro momento do dia em piedosas orações. O padre, mais ainda que qualquer outro, deve obedecer ao preceito de Cristo: Oportet semper orare (Lc 18, 1), preceito que São Paulo instantemente recomendava: Orationi instate vigilantes in ea in gratiarum actione (Cl 4, 2); sine intermissione orate (1 Tes 5, 17). E para a alma que deseja a sua própria santificação e a salvação do próximo, quantas ocasiões durante o dia precisa para se elevar a Deus. As angústias íntimas, a violência e obstinação das tentações, a falta de virtude, o insucesso ou a esterilidade das obras, os pecados e negligências sem número, enfim, o temor dos juízos de Deus, tudo, tudo, nos excita vivamente a chorar na presença do Senhor, e, depois de obtido o socorro divino, enriquecermo-nos com os méritos tão fáceis. E não só por nossa causa devemos chorar. Em face deste dilúvio de crimes que dia a dia se espalha e se estende por toda parte, a nós, sobretudo, cabe implorar e obter a divina clemência. A nós importa rogar instantemente a Cristo que, na sua imensa bondade, nos prodigalize todas as suas graças no Admirável Sacramento: Parce, Domine, parce populo tuo!

18. De grande importância é reservar cada dia um tempo determinado para a meditação das verdades eternas. Nenhum padre poderá se dispensar disto sem incorrer na grave censura de negligente e sem prejuízo para sua alma. O Abade São Bernardo, escrevendo ao Papa Eugênio III, que fora seu discípulo e veio a ser Pontífice de Roma, o advertia franca e insistentemente que nunca poderia deixar passar um dia sem meditar as coisas divinas, fossem quais fossem a multiplicidade e importância das ocupações inerentes ao supremo apostolado. E justificava esta recomendação enumerando com muita sabedoria as vantagens deste exercício: 'A meditação purifica a fonte donde jorra, isto é, o espírito. Regula as afeições, dirige os atos, corrige os exageros, governa os costumes, põe honestidade e ordem na vida: enfim, ela dá a ciência das coisas divinas e também das coisas humanas. Determina ela o que é confuso, coíbe o que está relaxado, ajunta o que está disperso, perscruta o oculto, procura o que é verdadeiro, examina o que se parece com a verdade, descobre o que é disfarçado e enganador. Prevê e regula o que se há de fazer, reconsidera o que está feito, a fim de que nada fique no espírito que não seja corrigido ou tenha necessidade de correção. Ela é que nos dias maus pressente a adversidade e a torna facilmente suportável, quando é mister sofrê-la. São dois bens dos quais o primeiro pertence à força, outro à prudência' (De Consid., 1. 1, c. 7). Estes serviços que a meditação está destinada a nos prestar, nos servem de lição e aviso: mostram-nos quanto ela nos é, sobre todos os pontos de vista, não só útil, para a salvação, mas até necessária.

19. Porque, embora sejam veneráveis e augustas as funções do sacerdócio, acontece, entretanto, que ao exercê-las os que as desempenham vão perdendo, com o tempo, algo daquele religioso respeito que elas exigem. E a diminuição gradual de seu fervor os coloca facilmente no plano inclinado da tibieza e no desgosto das coisas mais santas. E a isto ajuntai a necessidade que tem o padre de passar a vida, por assim dizer, no meio de uma sociedade má (in medio nationis pravae); de sorte que, muitas vezes, até exercendo a caridade pastoral, há de temer as insídias ocultas da infernal serpente. É para se admirar que até almas religiosas se manchem ao contato com a poeira do mundo? Daí a grave necessidade que tem o padre de, cada dia, voltar à contemplação das verdades eternas, a fim de que, por esta renovação constante de vigor, fortifique o espírito e a vontade contra as seduções do mundo.

20. E além do mais, é mister que tenha o padre uma certa facilidade para se elevar e tender para as coisas do céu, porque é seu dever rigoroso prová-las para as ensinar e inculcar aos outros. E de tal modo deve colocar a sua vida acima dos interesses humanos, que todas as obras do seu santo ministério se façam segundo Deus e sob a inspiração e direção da fé. Ora, o que sobretudo estabelece e sustenta o padre neste estado de alma, nesta união, por assim dizer, natural com Deus, é a prática tutelar da meditação cotidiana. Para todo homem que reflete, é isto de tal modo evidente que inútil é insistir mais.

21. Para se achar a lamentável confirmação destas verdades, certamente basta observar a vida dos padres que pouca importância dão ou se aborrecem da meditação das coisas eternas. Vede: são homens nos quais o sensus Christi, este preciosíssimo bem, já quase desapareceu. Sempre voltados para as coisas da terra, seguem as suas vaidades, andam à cata de frivolidades, são espíritos superficiais. Desempenham as funções sagradas com relaxamento, com frieza e até mesmo indignamente. Quando acabaram outrora de receber a unção sacerdotal, preparavam-se cuidadosamente para a recitação do Ofício Divino. Não queriam parecer estes homens que tentam a Deus. Escolhiam para a oração o tempo mais propício e o lugar mais recolhido. Procuravam penetrar o sentido das palavras divinas. Com o salmista, louvavam, gemiam, alegravam-se e expandiam sua alma na oração. Como eles mudaram depois disto! Ademais, quase nada conservam daquela piedade viva que lhes inspiravam os mistérios divinos. Como os tabernáculos outrora lhe eram queridos! Era uma festa para seus corações acharem-se à mesa do Senhor e a ele atraírem um número cada vez maior de almas piedosas. Antes da missa, como sentiam necessidade de pureza! Que orações não lhes saíam da alma fervorosa! Durante a celebração da missa, que respeito na observância integral destas belas e augustas cerimônias! Que expansões afetuosas na ação de graças! E como no povo felizmente se difundia o bom odor de Cristo! Rememoramini, recordai-vos, filhos diletos, rememoramini... pristinos dies! (Hb 10, 32). Então, a vossa alma se abrasava, nutrida com o ardor da santa meditação. 

22. Os que sentem muito pesado este recogitare corde (Jr 12, 11) ou o negligenciam, já não podem mais dissimular a pobreza que disto resulta para a sua alma. Costumam se desculpar, pretextando que se lançaram sem reserva no turbilhão do ministério, a fim de prestarem toda espécie de serviços ao próximo. Erro lamentável! Pela falta do hábito de conversar com Deus, quando eles falam de Deus aos homens ou lhes dão conselhos para a prática da vida cristã, falta-lhes o sopro divino, e a palavra evangélica neles parece quase morta. Sua voz tão elogiada, por mais habilidade e eloquência que tenha, não será jamais esta voz do Bom Pastor que as ovelhas escutam com proveito. Ressoa e se perde no vácuo. E muitas vezes é um mau exemplo que importa em desdouro para a religião e detrimento para os bons. E isto vale também para os outros campos da sua atividade. Aqui, também, nenhum resultado sério, durável, porque falta o orvalho celeste, que só a oração do que se humilha, oratio humiliantis se (Ecli 25, 2) atrai com abundância.

23. E aqui não podemos deixar de lamentar amargamente os que, levados por novidades perniciosas, ousam sustentar uma opinião oposta à nossa, considerando como perdido o tempo consagrado à oração e à meditação. Cegueira funesta! Prouvera Deus se examinassem eles seriamente e com lealdade, e reconhecessem afinal até onde chegarão com esta negligência e desprezo da oração, porque daí é que procedem o orgulho e a obstinação, daí estes frutos amargos que nosso coração paterno nem quer lembrar e até quisera absolutamente esquecer. Queira Deus ouvir os nossos votos e lançar sobre os transviados um olhar misericordioso e neles difundir com abundância o espírito da graça e da oração, para que chorem os seus erros, e voltem ao caminho que cometeram o erro de abandonar, e nele andem com mais prudência! Como outrora o Apóstolo (Fp 1, 8), também nós tomamos Deus por testemunha do quanto os amamos no Coração de Jesus Cristo! 

24. Neles, portanto, e em todos vós, filhos caríssimos, fique profundamente gravada a nossa exortação, que outra não é senão a de Nosso Senhor Jesus Cristo: Videte, vigilate et orate (Mc 13, 83). Que cada um empregue todo o seu esforço e todo zelo em meditar piedosamente e, com grande confiança, repita muitas vezes: Domine, doce nos orare (Lc 11, 1). Há uma razão especial e de grande importância, que nos deve levar à meditação: é o grande poder de conselho e de virtude que nela encontramos e que nos é tão útil para a boa direção das almas, obra de todas a mais difícil. Vem a propósito, e merece bem ser lembrada aqui, essa alocução pastoral de São Carlos: 'Compreendei, meus irmãos, que nada é tão necessário aos eclesiásticos como a oração mental. Deve ela preceder, acompanhar e seguir a todas as nossas ações. Psallam - diz o Profeta - et intelligam (Sl 100, 2). Cantarei e entenderei. Administrais os sacramentos? Meditai no que estais fazendo. Celebrais a Missa? Meditai no que ofereceis. Recitais o Ofício? Meditai no que dizeis e a quem falais. Dirigis as almas? Pensai no sangue que as purificou' (Ex orationib. ad clerum). É, pois, com muita razão que a Igreja nos convida a repetir muitas vezes estes pensamentos de Davi: Beatas vir qui in lege Domini meditatur; voluntas ejus permanet die ac nocte; omnia quaecumque faciet semper prosperabuntur. Acrescentamos, para excitar o nosso zelo, um derradeiro motivo e que vale bem por todos os demais. Se o padre é chamado um outro Cristo, e o é verdadeiramente em virtude do poder que lhe é comunicado, não deve, pois, em todo o seu modo de proceder ser e parecer conforme ao seu modelo? Summum igitur studium nostrum sit in vita Jesu Christi meditari (Imit. de Cr., I, 1).

Leitura Espiritual

25. Há de juntar o padre à meditação cotidiana das coisas divinas a leitura dos livros piedosos, sobretudo dos que foram divinamente inspirados. É o que São Paulo ordenava a Timóteo: Attende lectioni (1 Tm 4, 13). Assim também São Jerônimo instruía a Nepociano sobre a vida sacerdotal e lhe inculcava: 'Nunca deixes a leitura dos Livros Santos'. E dava a seguinte razão: 'Aprende o que deves ensinar, adquire a verdadeira doutrina que tem sido ensinada, para que estejas em condições de exortar segundo a sã doutrina e refutar os que a contradizem'. Quanto aproveitam, em verdade, os padres constantemente fiéis a esta prática! Com que sabor pregam o Cristo! Em vez de lisonjas ao espírito e adulações ao coração dos seus ouvintes, como os arrastam a se tornarem melhores e os fazem levantar os desejos para as coisas do céu! 

26. E por um outro motivo, ainda, caros filhos, para vosso interesse pessoal, o preceito do mesmo São Jerônimo: Semper in manu tua sacra sit lectio pode vos ser de resultados fecundos. Quem não sabe a influência enorme, que, sobre o espírito de um amigo, exerce uma voz amiga que o adverte francamente, o ajuda e aconselha, o repreende, o levanta e o afasta do erro? Beatus qui invenit amicum verum (Ecli 25, 12)... qui autem invenit illum, invenit thesaurum (Ib 6, 14). Ora, devemos pôr os livros piedosos no número dos nossos amigos verdadeiramente fiéis, porque nos chamam eles severamente ao cumprimento de nossos deveres e das prescrições da verdadeira disciplina. Despertam no coração as vozes do céu já adormecidas. Sacodem o torpor de nossas boas resoluções. Não nos deixam adormecer numa tranquilidade enganadora. Reprovam nossas afeições secretas quando são elas pouco recomendáveis. Descobrem aos imprudentes os perigos que os esperam muitas vezes. Prestam-nos todos estes bons ofícios e com uma tão discreta benevolência, que não somente amigos, mas ainda vêm a ser os melhores dentre os melhores amigos. Temo-los quando os quisermos, sempre ao nosso lado, prontos a cada momento para nos ajudarem nas necessidades de nossas almas. Deles a voz nunca é dura, os conselhos sempre desinteressados, e a palavra nunca tímida ou mentirosa. 

27. Inúmeros e notáveis exemplos demonstram a eficácia muito salutar dos livros piedosos. Entretanto ela aparece sobremaneira no exemplo da conversão de Santo Agostinho, porque foi para ele o ponto de partida dos seus méritos imensos na Igreja: 'Toma e lê, toma e lê. Eu tomei (as Epístolas do Apóstolo São Paulo) abri e li em silêncio... Dissiparam-se todas as trevas de minhas dúvidas, como se a luz que dá a paz invadisse o meu espírito' (Conf. L. VIII, c. 12). Ao contrário, porém, ai! frequentemente em nossos dias, quantos membros do clero se deixam pouco a pouco invadir pelas trevas da dúvida e seguem os caminhos perversos do século! A causa é sobretudo esta: preferem aos livros piedosos e divinos toda sorte de outros livros, e uma multidão de jornais que espalham em profusão o erro subtil e a corrupção. Vigiai-vos, filhos caríssimos. Não vos fieis na vossa idade adulta ou avançada. Não abuseis, com a esperança ilusória de que podereis servir melhor ao bem comum. Ficai nos limites traçados pelas leis da Igreja ou reconhecidos pela prudência e amor que deveis a vós mesmos. Porque, quem já uma vez deixou o seu espírito se impregnar destes venenos, raramente escapará das consequências desastrosas do mal, cujo germe a ele já se incorporou. 

Exame de Consciência 

28. Ainda mais. O padre tirará maior proveito das leituras piedosas e da meditação das coisas celestes, se procurar seriamente descobrir até que ponto faz ele passar à prática da vida as suas leituras e meditações. Nada melhor, a esse respeito, que o conselho de São João Crisóstomo, principalmente aos padres: 'Cada dia, ao se aproximar a noite, antes que chegue o sono, faze o exame da tua consciência, pede que te preste contas e, se tiveste maus desejos durante o dia, fere-os, arranca-os e faze deles penitência' (Expos, in Ps 4, n. 8). Este exercício é muito oportuno e fecundo para a virtude cristã. Os mais sábios mestres da vida espiritual o provam excelentemente e com as melhores razões e com suas exortações. Há na regra de São Bernardo uma passagem que nos comprazemos em citar: Como um investigador diligente da pureza da alma, submete tua vida a um exame cotidiano; indaga com cuidado no que ganhaste ou no que perdeste; aplica-te em conhecer-te a ti mesmo; põe sob teus olhos todas as tuas faltas; coloca-te em face de ti mesmo como em face de outrem e, neste estado, bate no teu peito (Meditationes piissimae, c. V, De quotidiano sui ipsius examine).

29. Seria uma vergonha, se, na verdade, neste ponto se verificasse a palavra de Cristo: os filhos do século são mais prudentes que os filhos da luz: Filii hujus saeculi, prudentiores filii lucis (Lc 16, 8). Vede, pois, com que dedicação se ocupam eles dos seus negócios. Como dão balanço em suas despesas e receitas! Com que atenção, com que rigor fazem suas contas! Como se afligem com as perdas e tratam vivamente de repará-las! Quanto a nós, que, talvez, nos abrasamos no desejo de chegar às honras, aumentar nosso patrimônio, alcançar unicamente o renome e a glória pela nossa ciência, tratamos com moleza e desgosto o mais importante e o mais difícil de todos os negócios, isto é: a aquisição da santidade. Apenas de tempos em tempos nos recolhemos para examinar a nossa alma, e esta é quase como uma terra inculta, como a vinha do preguiçoso da qual está escrito: Per agrum hominis pigri transivi, et per vineam viri stulti; et ecce totam repleverant urticae et operierunt superficiem ejus spinae; et maceria lapidum destructa erat (Pv 24, 30-31). 

30. Esta situação se agrava pelo fato de que os maus exemplos, que põem sempre em perigo a própria virtude do padre, vão se multiplicando em torno dele; de sorte que deve ele redobrar cada dia a vigilância e os generosos esforços. Ora, está provado pela experiência que todo aquele que se entrega frequentemente a um exame severo dos seus pensamentos, das suas palavras e ações, tem mais força para detestar e fugir do mal, e ao mesmo tempo mais zelo e ardor para fazer o bem. Outro fato de experiência é este: quem recusa comparecer diante deste tribunal, onde a justiça se assenta como juiz e onde a consciência ao mesmo tempo é acusada e a acusadora, se expõe geralmente a inconveniências e danos. Em vão procurais nele a circunspecção, tão apreciada num cristão e que lhe faz evitar as mais pequeninas faltas; a delicadeza de alma que convém de modo todo particular ao padre, e que se assusta com a mais leve ofensa de Deus. Ainda mais. Esta incúria, este abandono de si mesmo, vem a tal ponto se agravar que lhe faz até mesmo negligenciar o Sacramento da Penitência, pelo qual Cristo, da maneira mais eficaz, supriu, na sua misericórdia insigne, a fraqueza humana.

31. Não se poderia negar e é para deplorar amargamente: Não é raro que um homem encontre acentos inflamados para afastar os outros do pecado, e não tema, entretanto, para si coisa semelhante, e se endureça nas suas faltas. Exorta os outros a que não se demorem em se purificar pelo rito sacramental das manchas da alma, enquanto ele mesmo neste ponto é de uma tal indolência, que espera meses inteiros para o fazer. Derrama óleo e vinho salutares nas chagas de outros, e fica ele mesmo ferido à margem do caminho sem se preocupar em fazer um apelo à mão de um confrade que o socorra e que está, por assim dizer, ao seu lado! Ai como daí já resultaram e ainda hoje resultam, aqui e acolá, indignidades diante de Deus e da Igreja, males para o povo cristão e o sacerdócio! 

32. E nós, caríssimos filhos, ao pensar, por dever de consciência, nestas coisas tão tristes, temos a alma toda cheia de amargura e nossa voz se expande gemendo. Infeliz do padre que desconhece a sua posição e que mancha por suas infidelidades o nome do Deus Santo, a quem ele deve ser consagrado! Nada mais triste que a corrupção dos melhores: 'Sublime é a dignidade dos padres, mas profunda é a sua queda, se pecam; alegramo-nos com a sua elevação, mas trememos pela sua queda. Há menos alegria por ter sido elevado, que tristeza por ter caído das alturas' (S. Hierom. in Ezech., 1. XXIII, c. 44, v. 30). Infeliz, pois, do padre que, esquecido de si mesmo, perde o zelo da oração, despreza o alimento das leituras piedosas, que jamais se volta para si mesmo para escutar a voz acusadora da sua consciência! Nem as feridas de sua alma que se vão envenenando, nem os gemidos da Madre Igreja, tocarão o desgraçado, até que o firam estas ameaças terríveis: Excaeca cor populi hujus et aures ejus aggrava; et oculos ejus claude: ne forte videat oculis suis, et auribus suis audiat et corde suo intelligat, et convertatur, et sanem eum (Is 6, 10). 

33. Que o Deus rico em misericórdia afaste de vós, filhos caríssimos, este augúrio triste. Sim, o pedimos a este Deus que vê o nosso coração e que o sabe isento de amargura para quem quer que seja, mas cheio de um amor de pastor e de pai para com todos. Quae est enim nostra spes, aut gaudium, aut corona gloriae? nonne vos ante Dominum nostrum Jesum Christum? (1 Tes 2, 19). 

34. Mas todos, onde quer que estejais, vedes que dias maus a Igreja deve hoje viver por um oculto desígnio de Deus! Considerai e meditai como é santo o dever a que estais obrigados, pois, honrados com tão alta dignidade, deveis esforçar-vos para estar sempre com a Igreja e assisti-la nas suas provações e sofrimentos. O clero, hoje mais do que nunca, tem necessidade de uma virtude não medíocre, de uma virtude absolutamente exemplar, ardente, ativa, inteiramente disposta, enfim, a fazer grandes coisas e a sofrer muito por Cristo. E nada há que peçamos tanto a Deus e que desejemos com mais ardor a todos e a cada um de vós.

35. Em vós, portanto, brilhe com resplendor inalterável a castidade, que é mais belo ornamento de nossa ordem sacerdotal. Pela beleza desta virtude, o padre se torna semelhante aos anjos e aparece também mais digno da veneração do povo cristão e produz frutos santos em maior abundância. Fortifique-se e sempre se desenvolva entre os padres o respeito e obediência que prometeram solenemente àqueles que o Espírito Santo estabeleceu para governar a Igreja. Sobretudo, que de coração e de espírito se apeguem pelos laços de fidelidade, cada dia mais estreitados, às obrigações de respeito e de submissão que, com toda justiça, se devem à Santa Sé Apostólica. Reine em todos vós uma caridade que não busca os próprios interesses, a fim de que reprimais os aguilhões da inveja, a ambição e a cobiça que seduzem os homens. Vossos esforços, numa fraterna emulação, sejam para o acréscimo da glória divina. 

36. A grande multidão dos doentes, cegos, coxos, paralíticos, multidão tão infeliz, espera o benefício de vossa caridade. Esperam-nos sobretudo estas legiões da juventude, esperança querida da sociedade e da religião, hoje assediada por todos os lados pela corrupção e a mentira. Aplicai-vos com ardor não só a ensinar o catecismo. Mas, de novo, instantemente e mais do que nunca vo-lo recomendamos, procurai merecer de todos a confiança por todos os meios que vos sugerirem o vosso zelo e a vossa prudência. Assistir, proteger, curar, pacificar; em tudo isto não tenhais outro desejo, outra sede, senão ganhar ou conservar as almas para Jesus Cristo. Oh! com que ardor, com que atividade e com que audácia os inimigos trabalham e se agitam para perdição de uma imensa multidão de almas!

37. Sobretudo é por esta caridade tão grande que a Igreja Católica goza de renome e se gloria de seu clero. Este clero anuncia a paz cristã, leva a civilização aos povos selvagens. Por seu apostolado laborioso, não raro fecundado com a efusão de sangue, se estende cada vez o reinado de Cristo entre estes e a fé cristã brilha e resplandece em novos triunfos. E, caríssimos filhos, se aos serviços prestados pela vossa caridade correspondem com a inveja, a injúria e a calúnia, como acontece muitas vezes, não vos deixeis abater pela tristeza, não vos canseis de fazer o bem (2 Tes 2, 13). Tende diante dos olhos estas falanges de homens tão notáveis pelo seu número como pelos méritos, e que, à imitação dos apóstolos, no meio dos mais cruéis opróbrios suportados pelo nome de Cristo, ibant gaudentes, maledicti benedicebant, porque somos nós filhos e irmãos dos santos cujos nomes resplandecem no livro da vida e dos quais celebra a Igreja os méritos: non inferamus crimen gloriae nostrae (1 Mac 9, 10). 

III. MEIOS DE RENOVAÇÃO ESPIRITUAL 

38. Quando o espírito da graça sacerdotal for renovado e desenvolvido em todos os membros do clero, as outras reformas, sejam quais forem, que projetamos, serão, com o auxílio de Deus, muito mais eficazes. Por isto pareceu-nos bem acrescentar ao que já dissemos atrás alguns conselhos práticos sobre os meios de conservar e sustentar esta graça. 

Retiro Anual

39. Em primeiro lugar, há um exercício conhecido e recomendado por todos, mas que nem todos igualmente praticam: é o retiro, durante o qual a alma se entrega aos exercícios chamados espirituais. Deve ser feito quanto possível cada ano ou privadamente ou, o que seria preferível, em comum. Este segundo modo ordinariamente é mais fecundo em resultados. Tudo, segundo as prescrições episcopais. Nós mesmos já fizemos sentir as vantagens desta prática quando tomamos, na mesma ordem de ideias, certas decisões relativas à disciplina do clero romano. 

Retiro Mensal 

40. Não será de menor proveito para as almas, que um retiro deste gênero se faça cada mês durante algumas horas, em particular ou em comum. Sentimo-nos felizes em atestar que este uso já foi introduzido em diversos lugares pela iniciativa dos bispos, e que, muitas vezes, este mesmo exercício foi presidido por eles.

Associações Sacerdotais 

41. Temos também em mente recomendar as associações em que os padres, como é conveniente a irmãos, se unam por laços particularmente bem estreitos, com a aprovação e sob a direção da autoridade episcopal. Convém, certamente, que se agrupem em associações, já para se garantirem mutuamente os recursos na desgraça, já para a defesa da integridade da sua honra e das suas funções contra os artifícios do inimigo, já por qualquer outra razão semelhante. Entretanto, importa bem mais que se associem, tendo em vista o desenvolvimento e cultura da ciência sagrada, visando sobretudo aplicar-se com um fervor cada vez maior aos deveres da sua santa vocação, e melhor trabalhar pela salvação das almas, pondo em comum ideias e esforços. Os anais da Igreja atestam que nas épocas em que os padres daqui e dali viviam em comum, este gênero de associações foi mais fecundo e de mais felizes resultados. Por que não se poderia restabelecer em nossos dias algo de semelhante, levando em conta a diversidade dos países e das funções? Não se terá pois o direito de esperar para a felicidade da Igreja as mesmas vantagens de outrora? 

42. Efetivamente não faltam associações deste gênero, munidas da aprovação dos bispos. São tanto mais úteis quanto nelas se entra logo no começo do sacerdócio. Nós mesmos, no tempo de nosso episcopado, encorajamos uma delas que a experiência nos mostrou ser de muita vantagem, e ainda agora continuaremos a cercá-la bem como todas as outras semelhantes de toda nossa benevolência. Estes esteios da piedade sacerdotal e outros do mesmo gênero que uma prudência esclarecida sugerir aos bispos, segundo as circunstâncias, apreciai-as, filhos caríssimos, e utilizai-as de tal maneira que, cada vez mais, digne ambuletis vocatione qua vocati estis (Ef 4,1). Honrareis o vosso ministério e cumprireis a vontade de Deus, que é a vossa santificação. 

CONCLUSÃO

43. Tal é, efetivamente, o objeto dos nossos pensamentos e solicitudes. E eis por que, com os olhos levantados para o céu, renovamos muitas vezes por todo o clero a mesma súplica de Jesus Cristo: Pai Santo, santificai-os: Pater Sancte, sanctifica eos (Jo 17, 11-17). Alegramo-nos ao pensar que um grande número de fiéis, de todas as condições, se preocupam vivamente com o vosso bem e o da Igreja e se unem a nós nesta oração. E também grato nos é saber que há muitas almas generosas, não somente nos claustros, mas ainda mesmo na vida do século, que, nesta mesma intenção, não cessam de se oferecer a Deus como vítimas santas. Que o Altíssimo aceite como um perfume suave as suas orações puras e sublimes e não deixe de ouvir as nossas mais humildes súplicas. Que, na sua bondade e Providência, venha em nosso auxílio, nós o pedimos e, que do Coração Sacratíssimo de seu Amado Filho, venham sobre todo o clero tesouros de graças, de caridade e de todas as virtudes. 

44. Enfim, muito grato nos é, caros filhos, exprimir-vos de todo coração nosso reconhecimento pelos votos de felicidade que nos oferecestes no ardor de vossa piedade filial, pelo quinquagésimo aniversário de nosso sacerdócio, votos que, retribuindo, também por vós os formulamos. Queremos confiá-los à Augusta Virgem Maria, Rainha dos Apóstolos, para que se realizem com maior plenitude. Ela, na verdade, mostrou, pelo exemplo aos apóstolos, as felizes primícias do sacerdócio, e como deviam perseverar unânimes na oração até que fossem revestidos da virtude do Alto, E esta virtude certamente ela lhes obteve por suas orações em maior abundância. E ao mesmo tempo a incrementou e fortificou por seus conselhos, a fim de assegurar maior fecundidade aos seus trabalhos. E, finalmente, desejamos, filhos caríssimos, que a paz de Cristo reine em vossos corações com a alegria do Espírito Santo. E com estes votos vos damos a todos, de todo coração, a bênção apostólica.