sexta-feira, 13 de agosto de 2021

O SÍNODO DO CADÁVER

Um dos episódios mais bizarros da história da Igreja consistiu na pantomina de um julgamento realizado sobre o cadáver de um papa. Sim, o ódio diabólico e a vingança brutal podem atingir os limites do imponderável. O papa Formoso I (891 - 896) foi o pontífice da Igreja num período crítico, marcado por desordens políticas de toda ordem no continente europeu e, mais particularmente, por uma disputa acirrada entre Roma e Constantinopla sobre qual deveria ser efetivamente a sede da Igreja Ocidental.


Neste contexto político de polarização absurda, o papa Formoso faleceu em outubro de 896. O seu sucessor - Bonifácio VI - faleceu apenas duas semanas após ocupar a cátedra de Pedro, sendo sucedido por Estêvão VI (896 - 897), que promoveu, então, o chamado 'sínodo do cadáver' (synodus horrenda), amparado por um preciosismo técnico de um farsante:  Formoso I seria um papa inválido porque não poderia ser bispo de Roma (premissa do papado) por ser bispo de outra diocese (diocese do Porto) e, mais ainda, sendo condenado e destituído de todas as suas prerrogativas, os atos do papa Formoso seriam anulados, o que incluiria a consagração do próprio papa Estêvão VI como bispo que havia sido feita por Formoso I, livrando, assim, o sucessor da mesma penalização que estava sendo então atribuída a Formoso (ou seja, Estêvão VI também era papa sem ser bispo de Roma, por impedimento devido ao fato de também ser bispo de outra diocese, indicado e consagrado à época pelo papa Formoso I).

O sínodo foi realizado como um teatro de horror. O cadáver de Formoso I foi exumado e conduzido à Basílica de São João de Latrão, em Roma. O cadáver foi adornado com todos os adereços papais e posicionado sobre um trono para, presencialmente e ainda que morto, Formoso I pudesse ser julgado por ter usurpado ilegalmente o papado por já ser bispo na época em que foi eleito.


O julgamento resultou na condenação formal do papa Formoso I e a consequente anulação de todas as suas medidas, atos e decisões como papa, que foram declaradas inválidas. A pantomina trágica se consumou com medidas adicionais: as vestes papais foram arrancadas do cadáver, três dedos foram cortados de sua mão direita (utilizados nas consagrações que havia feito) e o corpo foi enterrado em um cemitério destinado a indigentes, para ser removido poucos dias depois para ser jogado no rio Tibre.

A revolta pública contra esse espetáculo macabro levou à destituição de Estêvão VI. Seu sucessor, Teodoro II (897) convocou um outro sínodo, em novembro de 897, que anulou o 'sínodo do cadáver', reabilitou a figura do papa Formoso I cujo corpo, que havia sido recuperado das águas do rio Tibre e reenterrado, foi exumado mais uma vez e enterrado definitivamente, agora com os devidos paramentos pontifícios, na Basílica de São Pedro, em Roma.