segunda-feira, 15 de março de 2021

A VIDA OCULTA EM DEUS: NECESSIDADE DAS PURIFICAÇÕES PASSIVAS


Para amar a Deus e para amar as almas de maneira adequada, precisamos de um coração puro e desinteressado. Pureza dos sentidos e pureza de espírito e de intenção: essas são as duas condições e também os dois frutos da verdadeira afeição.

O amor que Deus infunde em nossas almas é totalmente espiritual; é uma participação do seu Espírito. Uma vez que Deus nos fez compostos de corpo e alma, de matéria e espírito, toda afeição sobrenatural deve normalmente afetar nossa sensibilidade. Não é só a alma que ama, é todo o homem. E se o pecado original não viesse perturbar a ordem estabelecida entre as nossas faculdades, não teríamos que nos preocupar em regular nossa sensibilidade de acordo com a lei da razão e da fé. Esse ordenamento ocorreria por si mesmo e muito bem.

Mas, uma vez que a ordem foi perturbada, a primeira tarefa que se impõe é restaurá-la. Visto que nossos sentidos buscam satisfação independentemente da razão e, muitas vezes contra ela, eles devem ser disciplinados primeiro por esforço paciente e perseverante. Eles são servos, não senhores. Eles têm que informar e executar, e não lhes cabe comandar e muito menos perturbar. Todas as vezes que eles tendem a se afastar do caminho certo, temos que trazê-los de volta, de bom grado ou à força. E a melhor maneira de domesticá-los é privando-os: no início, eles murmuram, grunhem e até buscam se revoltar. Mas se a vontade permanece firme, termina a insubordinação. Aos poucos, eles tendem a se calar e a obedecer. Em troca, de vez em quando, a vontade permite que chegue até eles, na medida do possível, um pouco daquela felicidade com que o amor divino a inebria e isso é, para os sentidos, uma prova antecipada das alegrias mais puras que o Céu lhes reserva após a ressurreição.

Mas a graça continua a sua obra, atuando de fora para dentro, dos sentidos para a memória e, sobretudo, para a imaginação. A luta torna-se mais difícil e também mais demorada. O inimigo que temos de derrotar é um inimigo de incrível agilidade e mobilidade. No momento em que julgamos que o temos finalmente dominado, ele foge do controle. E, no entanto, é da maior importância submetê-lo ao regime do amor. Em particular, cabe à imaginação dispor os materiais necessários com os quais o nosso espírito possa realizar todas as suas obras. Por sua vez, o espírito os utilizará para dar relevo, cor e vida aos seus pensamentos, aos seus desejos, às suas vontades. As ordenações do espírito passam pela imaginação e cabe a ela colocar em movimento todas as faculdades de sua execução.

Nunca é demais dizer o quanto é importante para a alma que deseja servir a Deus, tanto interna como externamente, disciplinar este poder precioso mas terrível, submetendo-o a mortificações. É necessário, portanto, que a imaginação também aprenda - sobretudo ela - não a preceder mas a seguir, não a mandar mas a obedecer, a não buscar o que lhe agrada, mas a se contentar com o que lhe é dado. Se a Vossa graça, ó meu Deus, visando purificá-la mais profundamente, a faz mergulhar longos dias em amargura, sofrimento e trevas, ela deve aceitar esta provação como um justo castigo por seus desvios, como um redirecionamento necessário para os seus caminhos oblíquos e tortuosos, e como uma preparação essencial para o papel que doravante terá de desempenhar sob as ordens do vosso amor. Esta educação divina durará o tempo que for necessário para que os fins que Deus busca sejam assegurados. Mas, por outro lado, quanto enleio para a alma interior quando, uma vez concluída esta tarefa, se vê libertada finalmente da inoportuna - para não dizer louca - sujeição à imaginação, e torna-se então rainha em sua própria casa, e ali reina obedecida, respeitada, amada!

Mesmo quando a sensibilidade estiver bem submetida às ordens do amor de Deus, não estará proferida a última palavra de sua obra purificadora. O trabalho mais necessário ainda não foi feito ou, pelo menos, ainda não terminou. Pois a desordem entrou no homem e se estabeleceu nele por meio das faculdades superiores e será, portanto, necessário que a graça se eleve novamente àquelas alturas, para penetrar nas profundezas humanas, para reparar o que o pecado destruiu e para restabelecer em harmonia o que era divisão e confronto. Em vez de se tornar a medida das coisas, a inteligência terá que se adaptar a elas. Ela deverá ingressar na escola das realidades divinas e aprender com as mentes mais dóceis e penetrantes que as estudaram ao longo dos séculos, num esforço profundo de vê-las como Deus que as criou as vê, isto é, de dentro! Deve sobretudo submeter-se à Vossa própria escola, ó meu Deus, Vós que sois a Verdade eterna.

O que pressupõe conhecer sobretudo é Vos conhecer. Mas ninguém Vos conhece como Vós mesmo e, assim, só Vós podeis dizer realmente quem sois. É claro que as as criaturas falam muito sobre Vós mas como vão revelar o que, no fundo, ignoram, ou seja, a Vossa vida íntima? Também é verdade que, por Vossa bondade, dignastes enviar-nos os Vossos profetas e o Vosso próprio Filho amado para que Vos explicasse. Mas era absolutamente necessário que Ele e todos os profetas usassem palavras humanas para cumprir tal missão sagrada, pois falavam então como homens se dirigindo a outros homens. Como explicitar o Ser Infinito que sois por algumas palavras da pobre linguagem humana! Vós as extrapolam em muito e, assim, o que elas nos falam de Vós, longe de suprir os nossos anelos, apenas os excitam e os avivam cada vez mais.

O ideal seria, então, que pudéssemos entrar na Vossa escola e nos tornássemos Vossos discípulos diretos, uma vez que quereis ser o nosso Mestre. Mas, para tal, impõe-se uma rigorosa purificação de nossas faculdades superiores, até o mais íntimo de nossa alma. Porque sois, meu Deus, puro espírito e espírito de santidade. E para ser admitido na Vossa escola, para Vos ouvir, para Vos compreender, para gostar de Vós, temos também de ser criaturas puramente espirituais. Entretanto, uma vez que a nossa alma esteve mergulhada por tanto tempo na matéria, revestiu-se de todas as suas formas. E, assim, já não sabe mais compreender e gostar, senão de acordo com aquilo que está na ordem das coisas sujeitas aos sentidos. E de tanto viver sob o sensível, esqueceu-se de sua própria vida que é a vida espiritual. É necessário, então, que a infusão do Vosso amor possa purificá-la e então restaurá-lo por dentro. Obra difícil e de transformação dolorosa, mas preciosa e necessária.

(Excertos da obra 'A Vida Oculta em Deus', de Robert de Langeac; Parte II -  A Ação de Deus; tradução do autor do blog)