quinta-feira, 29 de junho de 2017

AS SETE COLUNAS DA IGREJA DOMÉSTICA (VI)

'A Sabedoria edificou sua casa, talhou sete colunas' (Pv 9, 1)

SEXTA COLUNA: A SANTA COMUNHÃO

Bem compreendida, por si mesma a comunhão pode sustentar o templo do sol da feli­cidade da família. Pois, na Santa Comunhão, a aliança fiel dos pais é selada com o San­gue do Cordeiro; todos os seus cuidados e fadigas são libertados do peso terreno e fecun­dados pela graça. Então de novo se hospeda nos corações Aquele que outrora assistiu com sua mãe as bodas de Caná e também ago­ra ainda sempre abençoa pais e filhos, sempre que O convidam para casa. Do Tabernáculo manda o espírito de paz e de união.

Qual novo 'Belém, lugar do pão', é bafejado pelo mesmo sopro de paz, que o cântico dos Anjos difundiu naquela feliz paragem, na noite sagrada de Natal. Por meio de cada Santa Comunhão esta paz penetra profundamente como um bem precioso na alma. Os sentimentos divi­nos tornam-se nossos. Os pensamentos de Deus tornam-se também nossos. A caridade e a paciência do Senhor passam para nós, de modo que se torna mais fácil compreender e suportar-se mutuamente. A Carne e o Sangue do Homem-Deus desperta em nós uma nova vida, uma vida divina. Pouco a pou­co nos transforma e nos reforma. Necessariamen­te, irresistivelmente, misteriosamente, como o sol na primavera faz renascer e florescer a floresta calva e morta.

Um laço íntimo, forte e firme, de união e amor mútuo assim se tece entre Deus e os corações e entre os membros da família en­tre si. É uma santa família de Deus! Em si e por si a Santa Hóstia já é um belo símbolo desta unidade. De muitos grãos ela se fez uma. Como já fala aos nossos co­rações, simplesmente como símbolo! Mais ainda! Como alimento, na Santa Comunhão, já se torna, na mesa comum, portadora e in­termediária da união suprema entre Deus e o homem e dos homens entre si e assim da paz entre todos.

A velha arte cristã exprime significa­tiva e profundamente este pensamento, dando à custódia, onde se guardam as Santas Hóstias, a forma de uma pomba. Cristo, a verdadeira pomba, que traz a paz, oculta-se no vaso sagrado. Este o leva no banquete sagrado, como bem precioso, ao seio da famí­lia, aos corações dos grandes e pequenos. Quem já não teria experimentado frequente­mente esse efeito abençoado da Sagrada Comunhão?

Na infância vi muitas vezes o bom mestre de uma cidade da Renânia, com a espo­sa, na mesa da Comunhão. Quando os fi­lhos cresceram, também lá se viam. Lembro-me ainda como toda a cidade se alegrava com isso e se edificava com o piedo­so exemplo. Veio então o kulturkampf ['luta pela cultura'; movimento anticlerical e de forte oposição à Igreja Católica, iniciado pelo chanceler alemão Otto von Bismarck em 1872] e, com ele, duras e penosas provações, tempestades que desaba­ram sobre a família. Nada, porém, os podia abalar. A paz e o amor tinham fixado morada nesse lar feliz.

Também vós vindes ao banquete sagra­do? Por que tão raramente? Adotai pelo menos esta regra para vós e para os vossos: nenhum dia sem oração, nenhum domingo sem Santa Missa, nenhum mês sem Sagrada Comunhão! Quanto mais vezes, tanto me­lhor! Haveis de reconhecer cada vez mais quanta força e graça residem neste Sacramen­to de amor, que o Salvador instituiu como uma coluna firme, que nos tempos maus sustenta a vida vacilante da família. 'Comei o pão (do céu); tomai-o ousadamente: A vossas almas traz força e vigor! Nas fadigas fiel e firmemente, até a morte, sempre forte, para fazer as obras do Senhor' [Texto transcrito da obra Parsifal: ópera de autoria do compositor alemão Richard Wagner].

Sei que não tendes nenhum desejo mais íntimo e profundo que o de ver vossos filhos um dia felizes. Justamente, ó mãe, porque to­mas particularmente a sério teus deveres ma­ternos, é que sentes tantas vezes dolorosa­mente a tua impotência. Sentes quanta força íntima te falta ainda sobre teus filhos; o po­der de tua personalidade não consegue exer­cer sobre os mesmos uma influência duradou­ra. Há educadores assim: sem muito falhar nem bater, conseguem tudo.

Sabes onde o aprenderam? No Cora­ção do Salvador, na Santa Comunhão, na luta constante consigo mesmo e com Ele para alcançar sabedoria, virtude e graça. Conheci uma mãe que, além da comunhão frequente, reservava regularmente um quartozinho de hora durante o dia, para ficar em silêncio. Era habitualmente pouco depois de meio dia. Retirava-se então para o seu quarto e fechava a ponta. Aprouve um dia às crianças ver o que a mãe lá fazia. Pelo buraco da fechadura a vi­ram prostrada ao chão, orando de mãos postas. 'Mamãe, por que estavas rezando?' per­guntaram-lhe depois os filhos. 'Estava rezando para que Deus me dê força e luzes para educar bem meus filhos e fazê-los felizes!' Credes que isso também lhe seria possível?

(Excertos da obra 'As colunas de tua Casa - um Plano para a Felicidade da Família', do Vigário José Sommer, 1938, com revisão do texto pelo autor do blog)

quarta-feira, 28 de junho de 2017

ORAÇÃO: SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS...


Sagrado Coração de meu Jesus, salvai-me! 
 Sagrado Coração de meu Criador, santificai-me! 
Sagrado Coração de meu Salvador, libertai-me! 
Sagrado Coração de meu Juiz, perdoai-me! 
Sagrado Coração de meu Pai, governai-me! 

Sagrado Coração de meu Mestre, ensinai-me! 
Sagrado Coração de meu Rei, ungi-me! 
Sagrado Coração de meu Benfeitor, enriquecei-me! 
Sagrado Coração de meu Pastor, guiai-me! 
Sagrado Coração de Jesus Menino, envolvei-me! 

Sagrado Coração de Jesus no Sacrifício da Cruz, velai por mim! 
Sagrado Coração de Jesus no Santíssimo Sacramento, permanecei em mim! 
Sagrado Coração de Jesus em todos os mistérios e estados, dai-Vos a mim! 
Sagrado Coração de Jesus, Deus feito Homem, vinde morar em mim! 
Sagrado Coração de incomparável bondade, tende piedade de mim! 

Sagrado Coração magnífico, resplandecei sobre mim! 
Sagrado Coração caridoso, compadecei-Vos de mim! 
Sagrado Coração misericordioso, intercedei por mim! 
Sagrado Coração pacientíssimo, cuidai de mim! 
Sagrado Coração fidelíssimo, perseverai por mim! 

Sagrado Coração dulcíssimo, abençoai-me! 
Sagrado Coração pacífico, acalmai-me! 
Sagrado Coração belíssimo, purificai-me! 
Sagrado Coração nobilíssimo, enobrecei-me! 
Sagrado Coração bendito, remédio de todos os nossos males, curai-me! 

Sagrado Coração, fornalha ardente de amor, consumi-me! 
Sagrado Coração, modelo de toda perfeição, iluminai-me! 
Sagrado Coração, origem de toda felicidade, fortalecei-me! 
Sagrado Coração, fonte de eterna benção, chamai-me 
e uni-me a Vós nesta vida e por toda a eternidade!

(Oração adaptada da obra 'Adoremus: Manual de Orações e Exercícios Piedosos', de Dom Eduardo Herberhold)

ABERRAÇÕES LITÚRGICAS (VIII)

Eis a Missa do Senhor transformada em performance momesca. Seria esse homem um dançarino tosco, personagem insípido de uma coreografia mequetrefe? Ou seria apenas um ator sem brilho incapaz de sair do seu vedetismo crônico? Ou meramente uma figura bizarra cumprindo a sua sina constrangedora? Não, este homem é um sacerdote católico. In persona Christi ele é o homem incomum chamado em missão para tornar viva e fazer presente neste mundo de dores a luz da palavra de Deus, a luz que é o próprio Cristo. Desorientado, momesco, fragilizado, torna-se apenas réu de sua própria insensatez.

(Padre José Cruz / Portugal)

segunda-feira, 26 de junho de 2017

PALAVRAS DE SALVAÇÃO

O amor basta-se a si mesmo, em si e por sua causa encontra satisfação. É seu mérito, seu próprio prêmio. Além de si mesmo, o amor não exige motivo nem fruto. Seu fruto é o próprio ato de amar. Amo porque amo, amo para amar. Grande coisa é o amor, contanto que vá a seu princípio, volte à sua origem, mergulhe em sua fonte, sempre beba donde corre sem cessar. De todos os movimentos da alma, sentidos e afeições, o amor é o único com que pode a criatura, embora não condignamente, responder ao Criador e, por sua vez, dar-lhe outro tanto. Pois quando Deus ama não quer outra coisa senão ser amado, já que ama para ser amado; porque bem sabe que serão felizes pelo amor aqueles que o amarem.
(São Bernardo)

domingo, 25 de junho de 2017

'NÃO TENHAIS MEDO!'

Páginas do Evangelho - Décimo Segundo Domingo do Tempo Comum


O Evangelho deste domingo nos infunde o sopro da Verdade de Deus. Todas as nossas ações, gestos, pensamentos, palavras, silêncios, desejos, intenções, atos e omissões, praticados a cada segundo, durante toda a vida de cada um de nós, são conhecidos por Deus como escritos em manchetes nas estrelas: 'Até os cabelos de vossa cabeça estão contados' (Mt 10, 30). Nada, absolutamente nada, ficará envolto em penumbra ou esquecimento; todas as coisas serão refletidas no espelho da verdade divina, como oráculo universal: 'nada há de encoberto que não seja revelado, e nada há de escondido que não seja conhecido' (Mt 10, 27).

A certeza final é que deveremos prestar contas de cada palavra, de cada gesto, de cada intenção. Tudo será pesado na balança do juízo particular. A resposta à graça concedida e o mal devido ao pecado; a caridade anônima ou o juízo temerário, a palavra de conforto ou o gesto de revolta. O valor de uma alma é infinito, pois se trata de um ato puro da criação do Pai, na escolha personalíssima de Deus como criatura destinada a partilhar a eternidade com Ele no Céu. Mas o legado desta graça é cumprir fielmente os desígnios de Deus para as almas de sua predileção.

O pensamento da eternidade transforma em palha e espuma os tesouros, grandezas e glórias do mundo. Deus nos escolheu não para sermos peregrinos nesta terra, mas como herdeiros do Céu. E,assim, em cada pensamento ou palavra, o fim último deve ser sempre a busca da vida eterna em Deus, conforme nos fala o Apóstolo: 'Com temor e tremor trabalhai por vossa salvação’ (Fl 2,12). E esta busca passa pelo horror ao pecado e a tudo que nos aniquila como Filhos de Deus: 'Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma! Pelo contrário, temei aquele que pode destruir a alma e o corpo no inferno!' (Mt 10, 28).

'Não tenhais medo!' (Mt 10, 31). O triunfo da alma é seguir o Cristo, Caminho, Verdade e Vida. Quem tem Deus no coração, ama a Verdade e a pratica em tudo e em todos. Quem ama a Verdade, faz a Vontade do Pai que está nos Céu; quem nega a Verdade, é réu de pecado eterno: 'todo aquele que se declarar a meu favor diante dos homens, também eu me declararei em favor dele diante do meu Pai que está nos céus. Aquele, porém, que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus (Mt 10, 32 - 33). Iustus ex fide vivit — O justo vive pela fé.

sábado, 24 de junho de 2017

NATIVIDADE DE SÃO JOÃO BATISTA


Além de Jesus e de Maria, apenas o nascimento de João Batista (24 de junho) é comemorado pela Santa Igreja Católica, glória ímpar para aquele que foi aclamado, pelo próprio Cristo, como 'o maior dentre os nascidos de mulher' (Mt 11,11).

'Houve um homem mandado por Deus. Seu nome era João… Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz' (Jo 1,6-8)

'Eis que eu envio o meu mensageiro à tua frente. Ele preparará o teu caminho diante de ti' (Mt 11,7).

'Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre, e Isabel ficou repleta do Espírito Santo' (Lc 1,41)

'Eu sou a voz que clama no deserto: aplainai o caminho do Senhor' (Is 40,3)


'Eu vos batizo com água, mas vem Aquele que é mais forte do que eu, do qual não sou digno de desatar a correia das sandálias; Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo' (Lc 3, 16). 


OS TRÊS FALSOS CAMINHOS DA VIDA INTERIOR

1. O diletantismo espiritual

A vida interior não é uma fonte de emoções religiosas que se basta a si mesma. Muitos cristãos, ansiosos de perfeição, dão muita importância a tais gozos, como se eles mostrassem o nível ou traduzissem o desenvolvimento de nosso progresso espiritual. A emoção sensível - segundo eles pensam - em nossas relações com Deus, seria o testemunho, a prova de intimidade, tal como se nas relações humanas o verdadeiro afeto fosse medido pelas efusões sentimentais que pode provocar. 

Seguindo o paralelo entre o amor humano e o amor divino, tendo por base perspectivas, em geral, falsas, não é raro pensar-se que é impossível que haja obstáculos na procura, na busca de Deus, como se na vida não víssemos surgir a cada passo coisas temíveis e inesperadas no arroubo das paixões mais nobres e mais desinteressadas. E já que Deus está presente em todas as partes e que, ininterruptamente, estão em tudo a Beleza infinita e a Bondade ilimitada, nossa sensibilidade deveria sentir sempre a embriaguez dessa presença e a sedução de tantos esplendores. Daí o fato de muitos se afastarem, abandonarem a vida interior, porque não encontraram a exaltação sensível que se haviam prometido, ou que lhes fora prometido. 

É comum vermos novelistas e até autores de obras espirituais, apresentarem a união com Deus como um perene festim de bodas. A decepção que experimentam transtorna muito àqueles que, confiados, atenderam ao convite. A ascese e a mística falam outro idioma. Sem a renúncia não há vida interior. Digo 'vida interior' porque não é preciso muita renúncia para que nos emocionemos com a simplicidade de Belém ou para que nos alegremos com os cantos e as luzes de uma missa pascoal. 

Santo Inácio de Loiola dá duas séries de regras para o discernimento do espírito, para adorar o que, na consolação (a expressão já está consagrada) vem de Deus, e o que, pelo contrário, não é mais que ilusão. Ora, nunca se pode exprobrar a Santo Inácio porque, em sua espiritualidade, tenha deixado à parte o esforço pessoal. Santa Teresa de Ávila considera a mortificação como uma condição indispensável da oração. E a renúncia das 'noites' de São João da Cruz, alcança proporções aterradoras.

Essa renúncia impõe-se tanto na oração e na sua preparação imediata como no comportamento geral da vida. Renúncia do espírito na atenção, do coração nos afetos, do corpo nos prazeres e comodidades. Não existe vida interior sem uma ascese do coração, da inteligência, dos sentidos. O diletantismo intelectual ou sentimental nada tem a ver com a vida interior. Que as emoções religiosas constituem manifestações acessórias da vida interior, nada mais exato; porém a realidade espiritual excede-os em todos os sentidos. 

2. A pontualidade

No polo oposto ao dos diletantes em religião que andam à cata de emoções, e para se preservarem da ilusão das consolações sensíveis, encontram-se outros que colocaram a vida interior na regulamentação dos atos cotidianos. A fidelidade em praticá-los constitui para eles a essência da vida espiritual. Considerar, antes de tudo, a religião como um dever que se tem de cumprir é, sem dúvida, algo de prudente e vantajoso. Este método evita o capricho e insiste sobre as verdades austeras do cristianismo. Mesmo sendo rígida, tal firmeza não está isenta de elevação.

Mas pode-se cumprir a lei com toda fidelidade sem por isso gozar de vida interior. O soldado que obedece ao regulamento, cumpre com seu ofício; mas isso não implica necessariamente que a execução de tais ordens enriqueça muito, digamos, nem seu coração, nem sua inteligência. A execução pontual não é a vida interior; mas pode e deve normalmente conduzir a ela. Não é raro encontrar homens abnegados, de um desprendimento fora do comum, mas que não possuem nenhuma vida interior, ao menos conscientemente. Nem por isso deveríamos desprezar ou subestimar seu espírito de sacrifício ou sua santidade. No sentido em que estamos falando, vida interior e santidade não são a mesma coisa. 

Nos vales e planícies por onde correm os rios que deságuam no Mediterrâneo, desde a Província até as costas da Síria, encontramos, a miúdo, leitos de rios obstruídos por penhascos e pedras, arrastados até ali pelas torrentes invernais, e que permanecem secos, desnudos e áridos durante quase todo o ano. Ora aqui, ora ali, uma vegetação rasteira ou uma touceira de juncos, ou ainda alguns louros-rosa atestam a presença de vestígios de umidade. Vários metros abaixo do solo, no entanto, correm lençóis de água abundante e fresca. Muitos viajantes, e até os próprios moradores do lugar nunca suspeitaram dessa efervescência interna e das reservas de fertilidade que se escondem sob aquele árido caos; da existência dessas águas que cruzam aquelas terras sem enriquecê-las e que os habitantes deixam perder-se sem aproveitá-las. 

O mesmo ocorre com as virtudes de que acabamos de falar. Uma aridez exterior recobre essa riqueza e essa efervescência que passam despercebidas aos íntimos e até aos próprios olhos dos que a possuem. O evangelho não nos mostra o reino de Deus como um conjunto de regras a seguir. Nosso Senhor compara o reino com uma semente, com uma levedura, com uma realidade que se alimenta e cresce, não por justaposição externa, mas por uma assimilação interna. A primeira imagem que apresenta aos que O interrogam sobre Sua doutrina - alguns dos quais até então não a haviam encontrado, como os judeus de Cafarnaum, Nicodemos e a Samaritana - é a da vida. Aos fariseus, aos quais amaldiçoou, jamais Jesus admoestou por suas irregularidades ou infrações ao código religioso. E até aqueles que não haviam sido corrompidos pelo orgulho farisaico, nem sempre estavam ao abrigo da aridez provocada por uma regularidade que havia mecanizado em excesso sua atividade espiritual.

Somos verdadeiramente os filhos da casa. De modo que nos portamos menos como servos, aos quais o Senhor dá Suas ordens, do que como filhos e filhas que se empenham em compreender o pensamento de Seu amantíssimo Pai. A vida interior nos leva a viver como filhos de Deus. No cristianismo trata-se menos de reconstruir um mosaico de acordo com o modelo do que desenvolver; graças a uma tarefa constante e quase sempre dolorosa, o germe que trazemos conosco, e deixar irradiar em nós 'a luz verdadeira que ilumina a todo o homem'. A regularidade pura, e simples, em si mesma não dá a ideia da riqueza de nossas relações de filhos com 'nosso Pai que está nos céus'. 

3. O alheamento à realidade

Outro erro na vida interior seria o alheamento às realidades mundanas. Às vezes, considera-se a vida interior como se se tratasse de uma evasão das nossas ocupações e dos nossos afetos. É uma tentação sedutora, não há que negar, a de abandonar esta intrincada trama dos nossos negócios humanos em procura de uma vida angélica, livre de todos os entraves materiais. Porém nós não somos anjos e nem temos que chegar a sê-lo; Cristo é nosso modelo e Ele não foi anjo e sim homem. Ele nos redimiu, encarnando-se, tornando-se um de nós e submetendo-se a todas as nossas debilidades, exceto o pecado. 

Submergir-se em uma solidão interior ou exterior que afaste por completo dos semelhantes, dos trabalhos, isto só por uma vocação excepcional; não é o caminho normal pelo qual deve dirigir-se o conjunto dos cristãos. Para a grande maioria, a solidão - o retiro fechado, por exemplo - não deve ser mais que um recolhimento passageiro. Se a vida interior exigisse o afastamento de nossas ocupações e afetos, ela seria exclusivamente daqueles que se apartaram das complicações da existência, como os sacerdotes e religiosos.

Cristãos há que, às vezes, pensam dessa maneira; e por isso afastam-se da vida interior como de um terreno reservado e que jamais lhes seria franqueado. A negligência e a humildade mal entendida, produzem este resultado. Nosso medo ante o esforço acalma-se quando pensamos que, ao menos, isso não nos é exigido de vez que nossa própria vocação, ou nossa qualidade de simples cristãos é um obstáculo, ou melhor, é incompatível com as exigências da vida interior. Uma humildade mal entendida, espantando-se de ver abrir-se ante nós perspectivas até então ignoradas, pode também desviar-nos da vida interior; para os outros as ambições heroicas; para nós, a modéstia dos caminhos já traçados. 

É um erro evidente. Esta situação a que nos leva e que nos fomenta a preguiça não está dentro da linha cristã. E não aproveitar totalmente das riquezas espirituais oferecidas por Deus, porque desdenham-nas os que nos cercam, não é praticar a humildade. A humildade cristã recolhe avidamente as mais altas ambições; chega até a falar a Deus chamando-O de 'Pai nosso'. Ao nos colocar no mundo, Deus tem um plano do qual participamos. Nosso dever não está em evitá-lo, mas em cumpri-lo. Não estamos no mundo para fugir deste plano, mas para santificá-lo. Para o homem e a mulher casados, a família, os filhos, a profissão, não são obstáculos, muito ao contrário, devem constituir o caminho que leva a Cristo. Afastar-se deste caminho - a menos que se trate de um chamado especial - não é o meio adequado para realizar o cristianismo. 

Procurar a Deus longe das condições em que Ele nos colocou é correr o risco de perdermo-nos em vãos esforços. As criaturas com as quais lidamos podem chegar a subjugar-nos; mas, por outro lado, afastando-nos delas podemos encontrar apenas o vácuo. O homem que não ama ao seu próximo, ou cujo amor não se manifesta em serviços efetivos, bem pode crer que ama a Deus, mas corre o perigo de se deixar levar por quimeras e de esvair-se na sua própria ilusão. Os erros na vida interior são comuns. Naquele recinto recôndito, no qual só Deus pode penetrar com perfeição, não se encontra a solidez tranquilizadora dos quadros exteriores. E apesar disso, para julgarmos o valor de nossa vida interior, devemos chegar a esse controle das nossas atitudes, servindo-nos das realidades de cada dia. 

Os grandes místicos nos recomendam que meçamos os mais extraordinários estados da alma de acordo com a maior ou menor fidelidade em cumprir os deveres de cada dia; a disposição de ânimo manifestada no seu comportamento é que indica se é bom o caminho seguido. O cumprimento fiel da vontade de Deus, eis o critério que devemos adotar para discernir o valor real de nosso interior. E este critério já nos ensinava o Mestre: 'Nem todo o que diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus; e sim o que faz a vontade de Meu Pai que está nos céus' (Jo 12,46).

(Excertos da obra 'Cristãos no mundo', do Padre E. Roche, trad. de Jovany de Sampaio, 1948)

sexta-feira, 23 de junho de 2017

BREVIÁRIO DIGITAL - ILUSTRAÇÕES DE NADAL (II)

Parte I - Nascimento, Infância e Início da Vida Pública de Jesus

Annunciatio
*
1. Evangelho (Lc 1): A Anunciação

In Die Visitationis
*
2. Evangelho (Lc 1): O Dia da Visitação

Natiuitas Christ
*
3. Evangelho (Lc 2): A noite do Nascimento de Jesus 

De Pastoribus
*
4. Evangelho (Lc 2): Nascimento de Jesus - Adoração dos Pastores


Circuncisio Christi
*
5. Evangelho (Lc 2): A Circuncisão

Aduentos Magorum
*
6. Evangelho (Mt 2): A Epifania do Senhor - A Visita dos Magos

Adoratio Magorum
*
7. Evangelho (Mt 2): Adoração dos Magos

 Purificatio
*
8. Evangelho (Lc 2): A Purificação

Cum doctoribus disputat IESVS
*
9. Evangelho (Lc 2): Jesus entre os Doutores da Lei

Ioannes concionatur
*
10. Evangelho (Mt 3. Mc 1. Lc 3. Jo 1): A Pregação de São João Batista

CARTA A DIOGNETO (II)

A 'Carta a Diogneto' é o registro mais antigo que se conhece sobre a vida das primeiras comunidades cristãs. Trata-se de um manuscrito em grego, provavelmente do século II, que foi escrito para descrever, de forma sintética, a natureza e as características da igreja cristã primitiva, enfatizando a sua superioridade em relação ao judaísmo e ao paganismo vigente. O documento, encontrado casualmente por Tomás de Arezzo em Constantinopla, no ano de 1436, constitui mais uma síntese discursiva do que propriamente uma carta, e teria sido escrita por Quadrato na forma de uma apologia endereçada ao imperador Adriano (Diogneto seria, na verdade, um título honorífico dado ao imperador e não um nome próprio).

A Carta é subdividida em 12 tópicos ou pequenos capítulos. O primeiro capítulo constitui uma introdução (exórdio); nos capítulos 2 a 4, o autor refuta a idolatria e a prática ritualística dos judeus. Os capítulos seguintes (5 e 6) contêm o núcleo central da exposição, focado na vida dos primeiros cristãos, que desempenham no mundo a mesma função que desempenha a alma para o corpo. Nos capítulos 7 a 10, são expostos os princípios e as bases catequéticas da fé e da religião cristã. Os dois capítulos finais versam sobre a busca do conhecimento da fé cristã e inclui uma exortação ao próprio destinatário da apologia pela conversão à nova religião.

CARTA A DIOGNETO (II)

Capítulo VII – Origem divina do cristianismo

De fato, como já disse, não é uma invenção humana que lhes foi transmitida, nem julgam digno observar com tanto cuidado um pensamento mortal, nem se lhes confiou a administração de mistérios humanos. Ao contrário, aquele que é verdadeiramente senhor e criador de tudo, o Deus invisível, ele próprio fez descer do céu, para o meio dos homens, a verdade, a palavra santa e incompreensível, e a colocou em seus corações. 

Fez isso, não mandando para os homens, como alguém poderia imaginar, algum dos seus servos, ou um anjo, ou algum príncipe daqueles que governam as coisas terrestres, ou algum dos que são encarregados das administrações dos céus, mas o próprio artífice e criador do universo; aquele por meio do qual ele criou os céus e através do qual encerrou o mar em seus limites; aquele cujo mistério todos os elementos guardam fielmente; aquele de cuja mão o sol recebeu as medidas que deve observar em seu curso cotidiano; aquele a quem a lua obedece, quando lhe manda luzir durante a noite; aquele a quem obedecem as estrelas que formam o séquito da lua em seu percurso; aquele que, finalmente, por meio do qual todo foi ordenado, delimitado e disposto: os céus e as coisas que existem nos céus, a terra e as coisas que existem na terra, o mar e as coisas que existem no mar, o fogo, o ar, o abismo, aquilo que está no alto, o que está no profundo e o que está no meio. 

Foi esse que Deus enviou. Talvez, como alguém poderia pensar, será que o enviou para que existisse uma tirania ou para infundir-nos medo e prostração? De modo algum. Ao contrário, enviou-o com clemência e mansidão, como um rei que envia seu filho. Deus o enviou, e o enviou como homem para os homens; enviou-o para nos salvar, para persuadir, e não para violentar, pois em Deus não há violência. Enviou-o para chamar, e não para castigar; enviou-o, finalmente, para amar, e não para julgar. Ele o enviará para julgar, e quem poderá suportar sua presença? Não vês como os cristãos são jogados às feras, para que reneguem o Senhor, e não se deixam vencer? Não vês como quanto mais são castigados com a morte, tanto mais outros se multiplicam? Isso não parece obra humana. Isso pertence ao poder de Deus e prova a sua presença.

Capítulo VIII – A Encarnação

Quem de todos os homens sabia o que é Deus, antes que ele próprio viesse? Quererás aceitar os discursos vazios e estúpidos dos filósofos, que por certo são dignos de toda fé? Alguns afirmam que Deus é o fogo – para onde irão estes, chamando-o de deus? Outros diziam que é a água. Outros ainda que são elementos criados por Deus. Não há dúvida de que se alguma dessas afirmações é aceitável, poderíamos também afirmar que cada uma de todas as criaturas igualmente manifesta Deus. Mas todas essas coisas são charlatanices e invenções de charlatões. Nenhum homem viu, nem conheceu a Deus, mas ele próprio se revelou a nós. Revelou-se mediante a fé, unicamente pala qual é concedido ver a Deus. 

Deus, Senhor e criador do universo, que fez todas as coisas e as estabeleceu em ordem, não só se mostrou amigo dos homens, mas também paciente. Ele sempre foi assim, continua sendo, e o será: clemente, bom, manso e verdadeiro. Somente ele é bom. Tendo concebido grande e inefável projeto, ele o comunicou somente ao Filho. Enquanto o mantinha no mistério e guardava sua sábia vontade, parecia que não cuidava de nós, não pensava em nós. Todavia, quando, por meio de seu Filho amado, revelou e manifesto o que tinha estabelecido desde o princípio, concedeu-nos junto todas as coisas: não só participar de seu benefícios, mas ver e compreender coisas que nenhum de nós teria jamais esperado.

Capítulo IX – A economia divina

Quando Deus dispôs todo em si mesmo juntamente com seu Filho, no tempo passado, ele permitiu que nós, conforme a nossa vontade, nos deixássemos arrastar por nossos impulsos desordenados, levados por prazeres e concupiscências. Ele não se comprazia com os nossos pecados, mas também os suportava. Também não aprovava aquele tempo de injustiça, mas preparava o tempo atual de justiça, para que nos convencêssemos de que naquele tempo, por causa de nossas obras, éramos indignos da vida, e agora, só pela bondade de Deus, somos dignos dela. Também para que ficasse claro que por nossas forças era impossível entrar no Reino de Deus, e que somente pelo seu poder nos tornamos capazes disso. 

Quando a nossa injustiça chegou ao máximo e ficou claro que a única retribuição que poderiam esperar era castigo e morte, chegou o tempo que Deus estabelecera para manifestar a sua bondade e o seu poder. Ó imensa bondade e amor de Deus! Ele não nos odiou, não nos rejeitou, nem guardou ressentimento contra nós. Pelo contrário, mostrou-se paciente e nos suportou. Com, misericórdia tomou para si os nossos pecados e enviou o seu Filho para nos resgatar: o santo pelos ímpios, o inocente pelos maus, o justo pelos injustos, o incorruptível pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais. De fato, que outra coisa poderia cobrir nossos pecados, senão a sua justiça? Por meio de quem poderíamos ter sido justificados nós, injustos e ímpios, a não ser unicamente pelo Filho de Deus? 

Ó doce troca, ó obra insondável, ó inesperados benefícios! A injustiça de muitos é reparada por um só justo, e a justiça de um só torna justos muitos outros. Ele antes nos convenceu da impotência da nossa natureza para ter a vida; agora mostra-nos o salvador capaz de salvar até mesmo o impossível Com essas duas coisas, ele quis que confiássemos na sua bondade e considerássemos nosso sustentador, pai, mestre, conselheiro, médico, inteligência, luz, homem, glória, força, vida, sem preocupações com a roupa e o alimento.

Capítulo X – A essência da nova religião

Se também desejas alcançar esta fé, primeiro deves obter o conhecimento do Pai. Deus, com efeito, amou os homens. Para eles criou o mundo e a eles submeteu todas as coisas que estão sobre a terra. Deu-lhes a palavra e a razão, e só a eles permitiu contemplá-lo. Formou-os à sua imagem, enviou-lhes o seu Filho unigênito, anunciou-lhes o reino do céu, e o dará àqueles que o tiverem amado. Depois de conhece-lo, tens ideia da alegria com que será preenchido? Como não amarás aquele que tanto te amou? Amando-o, tu te tornarás imitador da sua bondade. Não te maravilhes de que um homem possa se tornar imitador de Deus. Se Deus quiser, o homem poderá. 

A felicidade não está em oprimir o próximo, ou em querer estar pro cima dos mais fracos, ou enriquecer-se e praticar violência contra os inferiores. Deste modo, ninguém pode imitar a Deus, pois tudo isto está longe de sua grandeza. Todavia, quem toma para si o peso do próximo, e naquilo que é superior procura beneficiar o inferior; aquele que dá aos necessitados o que recebeu de Deus, é como Deus para os que receberam de sua mão, é imitador de Deus. Então, ainda estando na terra, contemplarás porque Deus reina nos céus. 

Aí começarás a falar dos mistérios de Deus, amarás e admirarás os que são castigados por não querer negar a Deus. Condenarás o erro e o engano do mundo, quando realmente conheceres a vida no céu, quando desprezares esta vida que aqui parece morte, e temeres a morte verdadeira, reservada àqueles que estão condenados ao fogo eterno, que atormentarás até o fim aqueles que lhe forem entregues. Se conheceres este fogo, ficarás admirado, e chamarás de felizes aqueles que, com justiça, suportaram o fogo passageiro.

Capítulo XI – O discípulo do Verbo

Não falo de coisas estranhas, nem busco coisas absurdas. Discípulo dos apóstolos, torno-me agora mestre das nações e transmito o que me foi entregue para aqueles que se tornaram discípulos dignos da verdade. De fato quem foi retamente instruído e gerado pelo Verbo amável, não procura aprender com clareza o que o mesmo Verbo claramente mostrou aos seus discípulos? O Verbo apareceu para eles, manifestando-se e falando livremente. Os incrédulos não o compreenderam, mas ele guiou os discípulos que julgou fiéis, e estes conheceram os mistérios do Pai. Deu enviou o Verbo como graça, para que se manifestasse ao mundo. Desprezado pelo povo, foi anunciado pelos apóstolos a acreditado pelos pagãos. 

Desde o princípio e apareceu como novo e era antigo, a agora sempre se torna novo nos corações dos fiéis. Ele é desde sempre, e hoje é reconhecido como Filho. Por meio dele, a Igreja se enriquece e a graça se multiplica, difundindo-se nos fiéis. Essa graça inspira a sabedoria, desvela os mistérios e anuncia os tempos, alegra-se nos fiéis, entrega-se aos que a buscam, sem infringir as regras da fé nem ultrapassar os limites dos Padres. Celebra-se então o temor da lei, reconhecesse a graça dos profetas, conserva-se a fé dos evangelhos, guarda-se a tradição dos apóstolos e a graça da Igreja exulta. Não contristando essa graça, saberás o que o Verbo diz por meio dos que ele quer e quando quer. Com efeito, quantas coisas fomos levados a vos explicar com zelo pala vontade do Verbo que no-las inspira! Nós vos comunicamos por amor essas mesmas coisas que nos foram reveladas.

Capítulo XII – A verdadeira ciência

Atendendo e ouvindo com cuidado, conhecereis que coisas Deus prepara para os que o amam com lealdade. Transformam-se em paraíso de delícias, produzindo em si mesmos uma arvora fértil e frondosa, ornados com toda a variedade de frutos. Com efeito, neste lugar foi plantada a árvore da ciência e a arvora da vida; não é a arvora da ciência que mata, e sim a desobediência. Não é sem sentido que está escrito: No princípio Deus plantou a árvore da ciência da vida no meio do paraíso, indicando assim a vida por meio da ciência. Contudo, por não tê-la usado de maneira pura, os primeiros homens ficaram nus por causa da sedução da serpente. De fato, não há vida sem ciência, nem ciência segura sem verdadeira vida, e por isso as duas árvores foram plantadas uma perto da outra. 

Compreendendo essa força e lastimando a ciência que se exercita sobre a vida sem a norma da verdade, o Apóstolo diz: 'A ciência incha; o amor, porém, edifica'. De fato, quem pensa que sabe alguma coisa sem a verdadeira ciência, testemunhada pela vida, não sabe nada: é enganado pala serpente, não tendo amado a vida. Aquele, porém, que sabe com temor e procura a vida, planta na esperança, esperando o fruto. Que a ciência seja coração para ti; a vida seja o Verbo verdadeiramente compreendido. Levando a árvore dele e produzindo fruto, sempre colherás o que é agradável diante de Deus, o que a serpente não toca, nem se mistura em engano; nem Eva é corrompida, mas reconhecida como virgem. A salvação é mostrada, os apóstolos são compreendidos, a Páscoa do Senhor se adianta, os círios se reúnem, harmoniza-se com o mundo e, instruindo os santos, o Verbo se alegra, pelo que o Pai é glorificado. A Ele, a glória pelos séculos. Amém.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

CARTA A DIOGNETO (I)

A 'Carta a Diogneto' é o registro mais antigo que se conhece sobre a vida das primeiras comunidades cristãs. Trata-se de um manuscrito em grego, provavelmente do século II, que foi escrito para descrever, de forma sintética, a natureza e as características da igreja cristã primitiva, enfatizando a sua superioridade em relação ao judaísmo e ao paganismo vigente. O documento, encontrado casualmente por Tomás de Arezzo em Constantinopla, no ano de 1436, constitui mais uma síntese discursiva do que propriamente uma carta, e teria sido escrita por Quadrato na forma de uma apologia endereçada ao imperador Adriano (Diogneto seria, na verdade, um título honorífico dado ao imperador e não um nome próprio).

A Carta é subdividida em 12 tópicos ou pequenos capítulos. O primeiro capítulo constitui uma introdução (exórdio); nos capítulos 2 a 4, o autor refuta a idolatria e a prática ritualística dos judeus. Os capítulos seguintes (5 e 6) contêm o núcleo central da exposição, focado na vida dos primeiros cristãos, que desempenham no mundo a mesma função que desempenha a alma para o corpo. Nos capítulos 7 a 10, são expostos os princípios e as bases catequéticas da fé e da religião cristã. Os dois capítulos finais versam sobre a busca do conhecimento da fé cristã e inclui uma exortação ao próprio destinatário da apologia pela conversão à nova religião.

CARTA A DIOGNETO (I)

Capítulo I – Exórdio

Excelentíssimo Diogneto,

Vejo que te interessas em aprender a religião dos cristãos e que, muito sábia e cuidadosamente te informaste sobre eles: Qual é esse Deus no qual confiam e como o veneram, para que todos eles desdenhem o mundo, desprezem a morte, e não considerem os deuses que os gregos reconhecem, nem observem a crença dos judeus; que tipo de amor é esse que eles têm uns para com os outros; e, finalmente, por que esta nova estirpe ou gênero de vida apareceu agora e não antes. Aprovo este teu desejo e peço a Deus, o qual preside tanto o nosso falar como o nosso ouvir, que me conceda dizer de tal modo que, ao escutar, te tornes melhor; e assim, ao escutares, não se arrependa aquele que falou.

Capítulo II – Refutação da idolatria

Comecemos. Purificado de todos os preconceitos que se amontoam em sua mente; despojado do teu hábito enganador, e tornado, pela raiz, homem novo; e estando para escutar, como confessas, uma doutrina nova, vê não somente com os olhos, mas também com a inteligência, que substância e que forma possuem os que dizeis que são deuses e assim os considerais; não é verdade que um é pedra, como a que pisamos; outro é bronze, não melhor que aquele que serve para fazer os utensílios que usamos; outro é madeira que já está podre; outro ainda é prata, que necessita de alguém que o guarde, para que não seja roubado; outro é ferro, consumido pela ferrugem; outro de barro, não menos escolhido que aquele usado para os serviços mais vis? 

Tudo isso não é de material corruptível? Não são lavrados com o ferro e o fogo? Não foi o ferreiro que modelou um, o ourives outro e o oleiro outro? Não é verdade que antes de serem moldados pelos artesãos na forma que agora têm, cada um deles poderia ser, como agora transformado em outro? E se os mesmos artesãos trabalhassem os mesmos utensílios do mesmo material que agora vemos, não poderiam transformar-se em deuses como esses? E, ao contrário, esses que adorais, não poderiam transformar-se, por mãos de homens, em utensílios semelhantes aos demais? Essas coisas todas não são surdas, cegas, inanimadas, insensíveis, imóveis? Não apodrecem todas elas? Não são destrutíveis? A essas coisas chamais de deuses, as servis, as adorais, e terminais sendo semelhante a elas. 

Depois, odiais os cristãos, porque estes não os consideram deuses. Contudo, vós que os julgais e imaginais deuses, não os desprezais mais do que eles? Por acaso não zombais deles e os cobris ainda mais de injúrias, vós que venerais deuses de pedra e de barro, sem ninguém que os guarde, enquanto fechais à chave, durante a noite, aqueles feitos de prata e de ouro, e de dia colocais guardas para que não sejam roubados? Com as honras que acreditais tributar-lhes, se é que eles têm sensibilidade, na verdade os castigais com elas; por outro lado, se são insensíveis, vós os envergonhais com sacrifícios de sangue e gordura. Caso contrário, que alguém de vós prove essas coisas e permita que elas lhe sejam feitas. Mas o homem, espontaneamente, não suportaria tal suplício, porque tem sensibilidade e inteligência; a pedra, porém, suporta tudo, porque é insensível. Concluindo, eu poderia dizer-te outras coisas sobre o motivo que os cristãos têm para não se submeterem a esses deuses. Se o que eu disse parece insuficiente para alguém, creio que seja inútil dizer mais alguma coisa.

Capítulo III – Refutação do culto judaico

Por outro lado, creio que desejais particularmente saber por que eles não adoram Deus à maneira dos judeus. Os judeus têm razão quando rejeitam a idolatria, de que falamos antes, e prestam culto a um só Deus, considerando-o Senhor do universo.Contudo, erram quando lhe prestam um culto semelhante ao dos pagãos. Assim como os gregos demonstram idiotice, sacrificando a coisas insensíveis e surdas, eles também, pensando em oferecer coisas a Deus, como se ele tivesse necessidade delas, realizam algo que é parecido a loucura, e não um ato de culto. 

'Quem fez o céu e a terra, e tudo o que neles existe', e que provê todo aquilo de que necessitamos, não tem necessidade nenhuma desses bens.Ele próprio fornece as coisas àqueles que acreditam oferece-las a ele. Aqueles que creem oferecer-lhe sacrifícios com sangue, gordura e holocaustos, e que o enaltecem com esses atos, não me parecem diferentes daqueles que tributam reverência a ídolos surdos, que não podem participar do culto. Os outros imaginam estar dando algo a quem de nada precisa.

Capítulo IV – O ritualismo judaico

Não creio que tenhas necessidade de que eu te informe sobre o escrúpulo deles a respeito de certos alimentos, a sua superstição sobre os sábados, seu orgulho da circuncisão, seu fingimento com jejuns e novilúnios, coisas todas ridículas, que não merecem nenhuma consideração. Não será injusto aceitar algumas das coisas criadas por Deus para uso dos homens como bem criadas e rejeitar outras como inúteis e supérfluas? Não é sacrílego caluniar a Deus, imaginando que nos proíbe fazer algum bem em dia de sábado? Não é digno de zombaria orgulhar-se da mutilação do corpo como sinal de eleição, acreditando, com isso ser particularmente amados por Deus? 

E o fato de estar em perpétua vigilância diante dos astros e da lua, para calcular os meses e os dias, e distribuir as disposições de Deus, e dividir as mudanças das estações conforme seus próprios impulsos, umas para festa e outras para luto? Quem consideraria isto prova de insensatez e não de religião? Penso que agora tenhas entendido suficientemente por que os cristãos estão certos em se abster da vaidade e do engano, assim como das complicadas observâncias e das vanglórias dos judeus. Não creias poder aprender do homem o mistério de sua própria religião.

Capítulo V – Os mistérios cristãos

Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem por sua terra, nem por sua língua, nem por seus costumes. Eles não moram em cidades separadas, nem falam línguas estranhas, nem têm qualquer modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, nem se deve ao talento e à especulação de homens curiosos; eles não professam, como outros, nenhum ensinamento humano. Pelo contrário: mesmo vivendo em cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes de cada lugar quanto à roupa, ao alimento e a todo o resto, eles testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal.

Vivem na sua pátria, mas como se fossem forasteiros; participam de tudo como cristãos, e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é sua pátria, e cada pátria é para eles estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Compartilham a mesa, mas não o leito; vivem na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm a sua cidadania no céu; obedecem às leis estabelecidas, mas, com a sua vida, superam todas as leis.

Amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, ainda assim, condenados; são assassinados, e, deste modo, recebem a vida; são pobres, mas enriquecem a muitos; carecem de tudo, mas têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, recebem a glória; são amaldiçoados, mas, depois, proclamados justos; são injuriados e, no entanto, bendizem; são maltratados e, apesar disso, prestam tributo; fazem o bem e são punidos como malfeitores; são condenados, mas se alegram como se recebessem a vida. Os judeus os combatem como estrangeiros; os gregos os perseguem; e quem os odeia não sabe dizer o motivo desse ódio.

Capítulo VI – A alma do mundo

Assim como a alma está no corpo, assim os cristãos estão no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo; os cristãos, por todas as partes do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não pertencem ao mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os cristãos são visíveis no mundo, mas a sua religião é invisível. A carne odeia e combate a alma, mesmo não tendo recebido dela nenhuma ofensa, porque a alma a impede de gozar dos prazeres mundanos; embora não tenha recebido injustiça por parte dos cristãos, o mundo os odeia, porque eles se opõem aos seus prazeres desordenados. 

A alma ama a carne e os membros que a odeiam; os cristãos também amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; os cristãos estão no mundo, como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita em uma tenda mortal; os cristãos também habitam, como estrangeiros, em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada no comer e no beber, a alma se aprimora; também os cristãos, maltratados, se multiplicam mais a cada dia. Esta é a posição que Deus lhes determinou; e a eles não é lícito rejeitá-la.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

LUZ NAS TREVAS DA HERESIA PROTESTANTE (XV)

Chegamos à 13ª objeção* que é: dar um texto que prove a existência do Purgatório. A esta objeção ajuntaremos a 15ª, provando que devemos orar pelos mortos, e a 18ª, que se refere ao limbo.

Estas três objeções referem-se ao mesmo assunto e constituem uma mesma verdade. Satisfaremos plenamente ao amigo protestante, falando: 1º do Purgatório; 2º do Limbo; 3º da oração pelos mortos. Provada a existência do Purgatório, que é, para os pecadores (de faltas leves), como o pórtico do céu, e demonstrada a necessidade de uma completa pureza conservada ou adquirida para entrar no céu, chegaremos logicamente à existência do limbo e à necessidade de orar pelos defuntos.

I. A existência do Purgatório

É uma verdade positivamente revelada por Deus, que não admite dúvida. Só um cego não enxerga, e só um homem obcecado não compreende textos claros e positivos da Bíblia, os quais estabelecem e formam este dogma católico. Escute, meu caro protestante, verificando bem os textos. Disse Jesus um dia, à multidão do povo que acabava de ouvir o sublime sermão das bem-aventuranças: 'Reconcilia-te com teu adversário. Enquanto estás no caminho com ele, para não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao ministro e te encerrem na prisão. Em verdade te digo que, de modo nenhum, sairás dali enquanto não pagares o último ceitil' (Mt 5, 25-26).

Examine bem este texto, e com sinceridade diga-me de que é que se trata aqui. É claro, pelo texto e pelo contexto, os antecedentes e as conclusões, que não se trata aqui de uma comparação. Jesus acaba de dizer que os seus discípulos devem ser o sal da terra e a luz do mundo (Mt 5, 13), continuando a traçar as normas a seguir para evitar o inferno e chegar ao céu. 'Digo-vos', diz o Mestre, 'que se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no céu' (Mt 5, 20). Eis o céu bem indicado.

O inferno não o é menos: 'Se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti, pois te é melhor que se perca um de teus membros do que todo o teu corpo seja lançado no inferno' (Mt 5, 29). Eis como, na mesma instrução, Nosso Senhor trata do céu, do inferno e do purgatório; pois o texto citado refere-se claramente ao purgatório. De fato, não pode tratar-se de uma prisão imposta pela justiça humana: isso é da autoridade policial, e o Mestre não trata disso nem nunca tratou; fala do seu reino espiritual.

Aliás o contexto mostra claramente que não se trata de uma cadeia material – pois com um advogado, protetores e amigos retira-se da cadeia até um criminoso, ou mitiga-lhe a pena. Não se tratando, pois, nem do inferno nem de uma cadeia material, deve-se tratar de uma prisão onde o pecador entra, e só sai depois de ter pago até ao último ceitil. Ninguém sai do inferno, porque é eterno: 'Retirai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno' (Mt 25, 41).

Trata-se, pois, de uma prisão temporária onde as almas sofrem, por certo tempo, em expiação de seus pecados; onde são purgadas das suas faltas leves, que não merecem o inferno, mas impedem de entrar no céu. Non intrabit eam coinquinatum (Ap 21, 27) – Nada de impuro entrará no céu. Pode-se resumir este argumento, dizendo que há almas que não são bastante santas ou puras para entrar no céu, e santas e puras demais para serem condenadas ao inferno.

Nem céu, nem inferno: para onde irão elas então? Peço ao meu amigo protestante dar uma resposta. A única resposta a dar é esta que o divino Mestre dá no texto citado: 'Será lançado na prisão, donde não sairá enquanto não tiver pago o último ceitil' (Mt 5, 26). Esta prisão não pode ser o céu. O céu não pode ser uma prisão, nem lugar de expiação. Não é o inferno, pois o inferno é eterno, e ninguém dali sai. Este lugar é o purgatório.

A palavra purgatório não figura textualmente na bíblia como aí não figura a palavra Bíblia; porém o lugar está claro e positivamente indicado: é uma prisão onde a alma é purgada de suas faltas leves. Onde expia e paga até o último ceitil. Ninguém pode contradizer esta doutrina. O protestante, protestando contra o purgatório, porque tal palavra não figura na bíblia, deve também protestar contra a bíblia, pois em lugar nenhum tal palavra figura na sagrada escritura, como aí não figuram as palavras evangelista, presbiteriano, batista, sabatista, etc. 

II. Outras provas

Desenvolvi este primeiro texto, não por ser o mais expressivo, mas por estar mais ao alcance de todos. Há muitos outros textos comprovativos que exprimem a mesma verdade. Eis um outro, de não menos valor: 'O que disser uma palavra contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no outro' (Mt 12, 32). Donde se deve concluir que há pecados que são perdoados neste mundo, e outros, no outro mundo. 

De fato, por que falar de perdão no outro mundo, se não houvesse? No céu? Impossível! O pecado não entra no céu; nada de contaminado pode entrar aí, diz São João (Ap 21, 27). No inferno? Aí já não há mais perdão nem remissão. Onde então? É no purgatório... no lugar de purgação. Este purgatório foi descrito por São Paulo; escute bem esta descrição, amigo protestante: 'A obra de cada um manifestar-se-á: porque o dia a declarará, porquanto pelo fogo será descoberta; e o fogo provará qual seja a obra de cada um' (1 Cor 3, 13).

O fogo do inferno castiga, não descobre nada, nem purifica. Não é, pois, deste que fala São Paulo; é, pois, do fogo do purgatório. O Apóstolo continua: 'Se a obra de alguém se queimar sofrerá detrimento; porém o tal será salvo, todavia pelo fogo' (1 Cor 3, 15). E para que se torne bem óbvio que se trata aqui do homem e suas obras, o Apóstolo explica: 'Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito Santo habita em vós?' (1 Cor 3, 16). Note bem a expressão do apóstolo: o tal será salvo, todavia como pelo fogo: de novo não é do céu, onde não há fogo, nem no inferno, onde não pode ser salvo: é no purgatório, onde se purifica, como pelo fogo para ser salvo (1 Cor 3, 15).

III. Mais uns argumentos

Quer mais provas, amigo protestante? Escolhemos mais uma, bem textual. São Paulo descreve aos Filipenses: 'Ao nome de Jesus se dobra todo joelho dos que estão no céu, na terra' (Fp 2, 10). Os amigos protestantes falsificaram o texto e traduziram: no céu, na terra e debaixo da terra; porém isso pouco importa, e até fornece mais uma prova. 

Qual é este lugar, debaixo da terra, onde os joelhos se dobram ao nome de Jesus? O inferno? É impossível: os demônios são uns revoltosos que blasfemam e não dobram o joelho para adorar. Estes infernos, ou o lugar debaixo da terra, é pois, o purgatório. No segundo livros dos Macabeus, conclui o inspirado autor: 'É um santo e louvável pensamento orar pelos mortos, para que sejam livres de seus pecados' (2 Mc 12, 46). Os protestantes rasgaram até o livro, porque condena os seus erros! Porém não deixa de existir e ser a palavra de Deus, para os católicos.

Que quer dizer isso? Quer dizer que os mortos podem estar num lugar que não é nem o céu, nem o inferno, dois lugares onde não precisam mais de orações; mas num lugar de expiação, onde devem pagar, como diz o Salvador, até o último ceitil; e este lugar é o purgatório. Paremos aqui com os textos. As provas citadas são positivas, irrefutáveis e estabelecem, em termos claros, a existência do purgatório. Pouco importa que o nome não figura na Bíblia, basta o lugar estar indicado. E este lugar existe, deem a ele o nome que quiserem.

IV. A existência do limbo

Vamos agora às provas da existência de outro lugar, que não é nem o céu, nem o inferno, nem o purgatório. A existência do limbo é igualmente negada pelos protestantes, embora esta negação seja contra o bom senso e contra a Bíblia. A razão é sempre a mesma: o catolicismo diz que o limbo existe; é o bastante para que o protestante negue a asserção. Por que nega? Porque a palavra limbo não figura na Bíblia.

Bela razão; então tudo o que não figura na Bíblia não existe? A Bíblia não fala de aviões, nem de submarinos, nem de carabinas, nem de canhões, entretanto tais objetos existem, e nenhum protestante teria a coragem de negá-lo. As armas de defesa são aí nomeadas. É o bastante. São armas, e, embora o nome próprio não figure na Bíblia, as armas então conhecidas aí figuram.

Escute, amigo protestante, e juntos vamos descobrir o famoso limbo. Cristo, morrendo na cruz, disse ao bom ladrão: 'Na verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso' (Lc 23, 43). O amigo protestante nunca se lembrou talvez do que seria tal paraíso? Será o céu? Impossível, pois o céu estava fechado para o pecado original, e só seria aberto na ocasião da ascensão do Salvador.

Subindo ao alto, diz o Apóstolo, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens. Ora, isto, que subiu, que é, senão o que também antes tinha descido às partes baixas da terra?Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as coisas (Ef 4, 8-10).Será o Purgatório que prometeu ao bom ladrão? Impossível, pois o Purgatório é ainda um castigo, e o salvador prometeu uma recompensa. 

Qual é então o tal paraíso, que não é nem o céu, nem o purgatório? A Igreja Católica responde: é o limbo. Está vendo que o tal limbo não é uma invenção, uma inovação e uma criação da Igreja: é uma verdade claramente expressa no evangelho. A verdade aí está: falta só o nome. E a Igreja, para evitar a confusão na doutrina, deu a este paraíso provisório o nome de limbo. O limbo, do latim limbus – auréola, é pois, o lugar de espera, o paraíso provisório, onde os justos da antiga lei esperavam a vinda do Messias e a abertura do céu, e onde hoje crianças mortas sem batismo gozam de uma felicidade natural.

V. Outras provas ainda

Há muitas outras provas de igual valor comprobatório. Na história do mau rico e do pobre Lázaro, o evangelho fala do 'seio de Abraão' (Lc 16, 22) como lugar de felicidade, onde estava Lázaro, em recompensa dos sofrimentos da vida, e indica que o mau rico estava no inferno e entre os dois lugares havia, diz Abraão, 'um grande abismo' (Lc 16, 26). Lázaro não estava no céu, é certo; pela mesma razão que o bom ladrão, estava num paraíso, aqui chamado seio de Abraão: qual é este lugar? É o limbo! Só pode ser o limbo. Podem chamar este lugar paraíso, seio de Abraão, ou limbo; pouco importa o vocábulo empregado, o lugar está claramente indicado no evangelho. 

VI. Crianças mortas sem batismo

A doutrina católica ensina que as crianças mortas sem batismo não vão para o céu, nem para o inferno. O bom senso e as escrituras nos indicam as razões. Jesus Cristo disse que só entra no céu quem renascer da água e do Espírito Santo (Jo 3, 5). Ora, as crianças não renasceram na água e no Espírito Santo, o que se faz pelo batismo, que não receberam. Não podem, pois, entrar no céu.

Não podem, tampouco, serem condenadas ao inferno. Os réprobos ou réus do eterno delito são blasfemadores do Espírito Santo (Mc 3, 19); os escandalosos (Mt 18,8); os transgressores de sua lei de justiça e de amor (Mt 25, 46). Ora, as crianças, sem a discrição de razão, são incapazes desses pecados passíveis de condenação eterna, embora não tenham recebido, pelo batismo, a promessa da vida eterna. Não podem, pois, ser condenadas ao inferno. 

Para onde irão então? Irão para o limbo. Irão para um lugar onde não há as delícias do céu, nem as penas do inferno e este lugar é designado pela Igreja: o limbo. Doutrina bela, consoladora, lógica, apoiada sobre as Sagradas Escrituras, embora o vocábulo aí não se encontre; porém é o bastante que a verdade esteja aí expressa, cabendo aos homens dar um nome a esta verdade, a fim de evitar confusões e erros. 

Eis o resumo desta bela doutrina: o céu é o lugar onde Deus se manifesta face a face e o dá como recompensa aos justos ou santos. O limbo, onde não se sofre, nem se gozam as delícias sobrenaturais do céu, mas onde as almas vivem felizes, numa beatitude natural. É aí que os justos da antiga lei esperavam a redenção; e onde hoje são recolhidas as crianças sem batismo. O purgatório, ou lugar de purgação, de expiação, onde as almas pagam até o último ceitil as faltas leves cometidas. O inferno, ou lugar de reprovação, onde os réprobos são horrivelmente atormentados num fogo que nunca se apaga, e num desespero que nunca terá fim.

VIII. A oração pelos mortos 

A conclusão é a 15ª objeção protestante, pedindo um texto que prove que devemos orar pelos mortos.
Sim, amigo crente, devemos orar pelos mortos; é um dever de justiça e de caridade. Antes de tudo, convém notar o que nós chamamos a comunhão dos santos. Tal comunhão é como a base da obrigação de oração pelos mortos. A Igreja de Cristo é composta de três partes, ou de três categorias de membros: a Igreja triunfante, dos santos do céu; a Igreja padecente, das almas do purgatório; a Igreja militante, dos cristãos, na terra.

Estas três categorias formam uma única família de Deus na terra; um só corpo, cuja cabeça é Cristo. 'Ainda que muitos', diz São Paulo, 'somos um só corpo em Cristo, e cada um de nós membros uns dos outros' (Rm 5, 12). Esta união não é uma utopia, é uma realidade. Os santos do céu oram por nós, que aqui labutamos na terra; nós invocamos aos santos, que são nossos amigos e irmãos, e oramos pelas almas do purgatório que lá sofrem e expiam as faltas da vida. É o laço de caridade que une todos os que professam a mesma fé no mesmo Deus.

Eis o que a Igreja nos ensina, que o bom senso nos indica e o que a Bíblia nos mostra pelo seu ensino e pelos exemplos de santos. Escute bem este trecho, amigo protestante. Judas Macabeu mandou quase doze mil dracmas de prata para Jerusalém, a fim de serem oferecidos sacrifícios pelos pecados dos defuntos, dizendo ser um pensamento santo e salutar orar pelos defuntos, para que sejam livres de seus pecados (2 Mc 12, 46). É verdade que os protestantes, para se verem livres de um texto tão expressivo e esmagador, rasgaram os livros dos Macabeus.

Devemos orar pelos mortos, a exemplo de São Paulo, que implorou com fervorosa oração a misericórdia de Deus pelo seu intrépido amigo Onesíforo já falecido: 'o Senhor lhe conceda que, naquele dia, ache misericórdia diante do Senhor' (2 Tm 1, 18; 4, 19). Os eruditos e sinceros protestantes são obrigados a confessar a verdade deste dogma salutar. 'A oração pelos mortos' - diz Forbes - 'usada desde o tempo dos apóstolos, nunca deveria ser rejeitada como inútil pelos chefes da Reforma' (Cons. Controv., 1858).

E Tcheldon, outra sumidade intelectual, ajunta: 'A oração pelos mortos é uma das práticas mais eficazes da religião cristã' (Unterredung, 1822). O famoso Collier, grande teólogo protestante, remata todos, dizendo: 'Negando a oração pelos mortos, rompemos desta maneira com a igreja universal, mutilando nossa crença e repelindo um dos artigos da fé cristã'. Paremos aqui. A verdade é clara e refulgente demais, para precisar dar mais provas.

A caridade é eterna e não se apaga pela morte. É, pois, lógico que ela continue a derramar os seus benefícios sobre aqueles que nos deixam. São os nossos irmãos, sempre hão de ser; têm, pois, direito às nossas preces; e nós temos o dever de orar por eles. Eis provadas as três verdades em foco: a existência do purgatório; a existência do limbo; a necessidade de orar pelos mortos. Se o amigo crente não as compreender, é porque não quer. E contra a má vontade não há remédio. Brilhe a luz em todo o seu esplendor: o cego não a enxergará nunca!

* Estas 'objeções' foram propostas por 'um crente' como um desafio público ao Pe. Júlio Maria e que foi tornado público durante as festas marianas de 1928 em Manhumirim, o que levou às refutações imediatas do sacerdote, e mais tarde, mediante a inclusão de respostas mais abrangentes e detalhadas, na publicação da obra 'Luz nas Trevas - Respostas Irrefutáveis às Objeções Protestantes', ora republicada em partes neste blog.

(Excertos da obra 'Luz nas Trevas - Respostas Irrefutáveis às Objeções Protestantes', do Pe. Júlio Maria de Lombaerde)